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Nenhures

Nenhures

04
Jul16

Clint Eastwood

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Se na actualidade há algum bardo por aí é este e há muito que o encontrei, a fazer-me a vida. De todos os vivos é o meu cineasta preferido e, também, o meu pensador preferido. E compreendo que nos filmes dele, até nos falhados, fico feliz, suspendo todo o juízo crítico. Ora, não é isso o amor? Segue ele pensando o mundo com uma intensidade e uma densidade ímpares, incompreensíveis para os “bem-pensantes” das ideologias lites e muito para além dos pobres boçais que dele retiram o culto de colts, magnums ou drones. Julgo que a paupérrima apreensão da obra de Clint é mesmo o espelho do superficialismo militante do hoje em dia.

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Talvez ele nunca se tenha tão condensado como aqui. Em “Unforgiven” – naquele seu final avassalador – Clint, malvado, álcoolico, desesperançado, esmagado pela culpa, destino e responsabilidade, ali postado por mero interesse interesseiro, em busca de uma quantia prometida por um assassinato vingativo, e por tudo isso o único capaz de restaurar uma qualquer justiça e alguma moral, grita “é melhor que enterrem Ned [Morgan Freeman] decentemente … que não mutilem as putas“, e volta-se para trás – para a mole, a “demos”, escondida na noite chuvosa, tal como vive escondida na timorata cumplicidade com o mal dominante, e à qual acabara de ameaçar de matar as famílias e queimar as propriedades. E culmina “ou eu regresso e mato-vos a todos, seus filhos da puta“, e é aí que a bandeira americana, semi-obscurecida pela intempérie noctívaga, qual dantesca, surge, ela sempre ícone do eastwoodianismo, e não só dele – signo ali para a desinterpretação dos militantes profissionais.

Clint está a abandonar a cidade, acabou de matar seis homens, um desarmado a sangue-frio (o dono do bar), outros cinco em duelo. No rescaldo matou Gene Hackmann a total sangue-frio, em tiro queima-roupa de sem-misericórdia  – e mesmo que em filme já de 1992 isto de uma estrela como Eastwood abater deste modo uma outra estrela cinéfila magna como Hackmann é uma ruptura com o cânone, que um filme de Eastwood não é uma inútil pantomina tarantiniana, tem a grandeza de moldar, é produção de mundivisões.

É um momento único, uma síntese antropológica crucial: não só o trivial (aqui na gasta pátria desconhecido e desensinado) de que o real não é bi-cromático, pobre. Mas sim da complexa ética fundamental, de que o mal é constitutivo, essencial, um valor, plástico, melhor, úbere. Bem. E isso confunde. Não  a esta gente, a assertiva, vã. Mas o mundo, lá fora.

Em “Grand Torino” destrói o politicamente correcto, afirmando o quão o verdadeiramente importante está para além da verbalização, o como nada lisa é a realidade. Um filme que é uma lição, reflexão, sobre o que somos mudamos, sobre o rugoso do que expressamos.

Recentemente, em “Atirador americano”, o tão mais-velho vem majestoso. É o grande filme sobre a guerra desde que Kubrick se debruçara em “Full Metal Jacket”, refutando-a. Há aquela coisa da fantasia realista, que sobre o assunto Spielberg mimetizara nos frenéticos e abissais primeiros minutos do “Soldado Ryan” – mas que destroçara logo de seguida no patrioteirismo de rebuçado do resto do filme. Mas agora Clint, o maior de todos nós, humanos, ultrapassa os discursos alheios. Sim, a realização de cume, de um realismo ríspido, cruel, coloca-nos no palco da guerra, como se seus agentes e não meras vítimas. Mas muito, muitíssimo, mais do que isso, e muito mais ainda do que os filmes de mensagem, ali está uma reconstrução cultural fantástica, um etnógrafo assombroso, o cinema antropológico levado ao inultrapassável, um filme sobre “maiorias indígenas” exagero eu.

Diz o herói – e como podem os amantes da Ilíada e da Odisseia refutar os textos actuais sobre heróis, e sua ira até semi-divina? – que luta por “Deus, Pátria e Família” E nós sabemos, até porque os diálogos logo ali o negam, que o seu “deus” quase inexiste e também que a família se lhe desvanece. Fica, apenas, mas um Apenas maiusculizado, a “pátria”, essa que, afinal também canibal, o devasta na guerra, e tão mais aos seus circundantes, desde o irmão à última e esquiva, mas determinante, personagem do filme. É por isso que Clint é não só o Cineasta mas o grande intelectual deste virar de milénio, há décadas a afirmar a ambivalência, a rugosidade e, acima de tudo, as crostas e pústulas dos valores que perseguimos e afirmamos. Sem que isso tudo implique que os abandonemos. E é essa (sua) adesão consciente à ambivalência que se chama coragem. E é isso que o cada vez mais ancião nos lega, em formato de partilha, constante, filme a filme.

Quem me dera poder bradar “Clint rules”. Mas cada vez mais me parece que não, que neste mundo facetado, tantos o tresvêem, impercebendo-o como o verdadeiro iconoclasta de XXI.

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Veio-me tudo isto agora à cabeça. Porque é o 4 de Julho. Mas também porque num tão recente ontem, em dia de grande concílio, no meu aparente meio (profissional) alguém próximo se insurge com os meus ecos, coisas de mais de duas décadas a olhar os ademanes das gentes do meu país. De "tom colonial", dizem-me, num óbvio "neo-colono!", culminaram-me, exasperando-me. Tanto que nem respondi com substância mas apenas com as invectivas merecidas. Dias agora regresso, assim, de longe. Apelando ao Clint, claro, o Eastwood, o tal tipo de direita, fundindo velhos postais que lhe dedicara. Mais albergando-me neste “White Hunter, Black Heart”.

O filme é uma eulogia de John Huston, a propósito do seu “Rainha Africana” (com o herói Bogart e a deusa Hepburn). Para além das peripécias da realização daquele filme em África, do retrato do idiossincrático realizador e sua relação com o mundo de Hollywood, centra-se na sua paixão pela caça: a personagem hustoniana quer matar um elefante “porque é um pecado” e ele o pode fazer, tem para isso poder, uma cena liminar, excelente. A remeter-nos para o mundo, para o além dos valores.

Mas há muito mais, numa sublime aparente contradição, o húmus do filme. O avatar de Huston é um democrata, antifascista (retratam-se os anos 1940s). Insulta uma colona inglesa anti-semita, provoca uma desigual luta com um colono racista inglês, por isso sendo espancado – nisso explicitando a semelhança das atitudes, as do racismo nazi e do racismo colono. É, como os meus tão mais queridos agora, um democrata, de “esquerda” (“liberal”, dir-se-ia nos tempos lá na América), certo que em tom blasé mas basto empenhado. Depois vai à caça, cria uma ligação com o seu guia. Que conduz, patrão paternalista, e por mero egoísmo descuidado, desinteresse desinteressado, à morte. É no fim do filme que Eastwood explicita o título, os tamboristas tamborilando “caçador branco, coração preto“. Apesar das boas causas, daquilo de “esquerda”, da atitude (e do álcool), da aparente generosidade e solidariedade, da composição de fraternidade, igualdade e (desejada) liberdade.

É talvez por isso que nunca Clint entra nas notas de rodapé dos “papers” sobre a “colonialidade” ou sobre o “colonialismo”. E por isso que a “esquerda” sempre tão solidária o diz de “direita”. E, também, por isso que um tipo que lhe vê os filmes tem qualquer coisa de … “colonial” - como a mim, de mim, me dizem. “Neo” ou outra coisa qualquer.

Mas ao negrume no coração, e à bruma nas mentes, é alhures que a encontro.

Adenda: para quem tiver paciência deixo ligação a outro antigo postal, sobre um dos filmes da série "Dirty Harry": "Clint, o "Faxista".

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