Os Militares no 25 de Abril
No FB vejo agora esta foto, realçando Salgueiro Maia durante as operações do 25 de Abril de 1974 na baixa lisboeta. Acompanhada de um breve texto supra-elogioso daquele militar. Sou muito sensível à coragem física, “máscula” dizia-se antigamente, antes da consciencialização das questões de género. E diante de uma fotografia destas não deixo de me perfilar, “é de homem!” exclamo, esquecendo-me das tais questões …
Todos os anos Salgueiro Maia é (re)afirmado como símbolo da data fundadora da democracia, o tempo vai passando e os elogios engrandecem-se (“a ele devemos a liberdade” e vários similares, li-os ontem no FB). A gente precisa de símbolos para conseguir pensar e, até, para sentir. E ainda mais, muito mais, de homens simbólicos, os santos das coisas profanas.
O capitão Maia foi sendo elevado a símbolo da data. De facto esta “salgueiromaiaficação” do 25 de Abril não foi coisa imediata. É coisa que terá cerca de 20 anos ou pouco mais, germinada talvez após a sua precoce morte. Muito devida à incompetência intelectual e à malevolência assassina daquele que foi o primeiro símbolo, o capitão Carvalho. E à subsequente dificuldade da indústria simbólica em encontrar outro artefacto que pudesse substituir, a contento, o, afinal, terrorista comunista Carvalho. A opção acontecida muito se terá devido aos tratos de polé que Maia sofreu às mãos da hierarquia militar, que o comandou de modo vil. Muito pelo seu espírito castrense, avesso à actividade política, a proclamações públicas e ao queixume. Com toda a certeza porque morreu novo. E também pela centralidade (geográfica, até) da sua acção naquela data – outros militares fizeram (arriscaram) acções do mesmo teor mas não lhes coube o centro da capital. Ou seja, o que ele fez “foi de homem” (ok, “foi de pessoa”), mas não foi mais do que alguns outros dos seus camaradas cometeram.
Em nada disto que avanço quero apoucar a sua memória (nem da data). Mas esta “santificação” é desnecessária, até porque, em última análise, instaura-se um regime democrático para evitar este tipo de discursatas mistificadoras. A democracia deve honrar os seus cidadãos que cometem actos de vulto mas não precisa de mais cultos ao dr. Sousa Martins.
E é assim que olho a foto. E depois reparo que o capitão Maia avança para os opositores, com coragem (“cojones”, desculpar-me-ão a elisão dos ditames de “género”) mas em processo de negociações. O que matiza um bocado o sublinhado visual. E lembro-me de um episódio: em 1999 o Instituto Camões – Centro Cultural Português em Maputo, do qual era então responsável, organizou um ciclo de comemorações dos 25 anos do 25 de Abril. Dele constou a bela exposição “25 de Abril”, produzida pelo Museu da República e da Resistência. Num desses dias visitei-a longamente, acompanhado de um amigo, um então capitão, exactamente da minha idade, na época em Moçambique em missão de cooperação. Foi um prazer. Pois ele apresentava detalhes do acontecido, ecos que ouvira sobre as operações, explicitava movimentações, armamento. E identificava algumas personagens militares ali em campo. E lembro-me bem de ele dizer quais os que haviam sido do mesmo curso da academia, ou quase, os que haviam servido juntos, etc. Eram camaradas mas eram também algo mais, qual uma fratria, oficiais da mesma geração (ainda para mais mesclada numa tenebrosa guerra). O confronto, dizia ele, o fogo real, ali na baixa, seria muito difícil ocorrer. Não impossível, mas muito difícil. Pelo podre do regime. Pelo desnorte naquele dia dos seus mandantes. E pela omnipresença da tal “fratria”.
Foi um acto corajoso? Claro. Militares a acabar um regime que os compelia a uma guerra, que se eternizava e que alguns vinham compreendendo como anacrónica e injusta. A gente agradece. E louva. Mas não precisa (ou não devia precisar) destas místicas de calendário. A simplificarem a história. Moralizando-a.
(Postal no "O Flávio")