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Nenhures

Nenhures

26
Abr17

Os Militares no 25 de Abril

jpt

 

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No FB vejo agora esta foto, realçando Salgueiro Maia durante as operações do 25 de Abril de 1974 na baixa lisboeta. Acompanhada de um breve texto supra-elogioso daquele militar. Sou muito sensível à coragem física, “máscula” dizia-se antigamente, antes da consciencialização das questões de género. E diante de uma fotografia destas não deixo de me perfilar, “é de homem!” exclamo, esquecendo-me das tais questões …

Todos os anos Salgueiro Maia é (re)afirmado como símbolo da data fundadora da democracia, o tempo vai passando e os elogios engrandecem-se (“a ele devemos a liberdade” e vários similares, li-os ontem no FB). A gente precisa de símbolos para conseguir pensar e, até, para sentir. E ainda mais, muito mais, de homens simbólicos, os santos das coisas profanas.

O capitão Maia foi sendo elevado a símbolo da data.  De facto esta “salgueiromaiaficação” do 25 de Abril não foi coisa imediata. É coisa que terá cerca de 20 anos ou pouco mais, germinada talvez após a sua precoce morte. Muito devida à incompetência intelectual e à malevolência assassina daquele que foi o primeiro símbolo, o capitão Carvalho. E à subsequente dificuldade da indústria simbólica em encontrar outro artefacto que pudesse substituir, a contento, o, afinal, terrorista comunista Carvalho. A opção acontecida muito se terá devido aos tratos de polé que Maia sofreu às mãos da hierarquia militar, que o comandou de modo vil. Muito pelo seu espírito castrense, avesso à actividade política, a proclamações públicas e ao queixume. Com toda a certeza porque morreu novo. E também pela centralidade (geográfica, até) da sua acção naquela data – outros militares fizeram (arriscaram) acções do mesmo teor mas não lhes coube o centro da capital. Ou seja, o que ele fez “foi de homem” (ok, “foi de pessoa”), mas não foi mais do que alguns outros dos seus camaradas cometeram.

Em nada disto que avanço quero apoucar a sua memória (nem da data). Mas esta “santificação” é desnecessária, até porque, em última análise, instaura-se um regime democrático para evitar este tipo de discursatas mistificadoras. A democracia deve honrar os seus cidadãos que cometem actos de vulto mas não precisa de mais cultos ao dr. Sousa Martins.

E é assim que olho a foto. E  depois reparo que o capitão Maia avança para os opositores, com coragem (“cojones”, desculpar-me-ão a elisão dos ditames de “género”) mas em processo de negociações. O que matiza um bocado o sublinhado visual. E lembro-me de um episódio: em 1999 o Instituto Camões – Centro Cultural Português em Maputo, do qual era então responsável, organizou um ciclo de comemorações dos 25 anos do 25 de Abril. Dele constou a bela exposição “25 de Abril”, produzida pelo Museu da República e da Resistência. Num desses dias visitei-a longamente, acompanhado de um amigo, um então capitão, exactamente da minha idade, na época em Moçambique em missão de cooperação. Foi um prazer. Pois ele apresentava detalhes do acontecido, ecos que ouvira sobre as operações, explicitava movimentações, armamento. E identificava algumas personagens militares ali em campo. E lembro-me bem de ele dizer quais os que haviam sido do mesmo curso da academia, ou quase, os que haviam servido juntos, etc. Eram camaradas mas eram também algo mais, qual uma fratria, oficiais da mesma geração (ainda para mais mesclada numa tenebrosa guerra). O confronto, dizia ele, o fogo real, ali na baixa, seria muito difícil ocorrer. Não impossível, mas muito difícil. Pelo podre do regime. Pelo desnorte naquele dia dos seus mandantes. E pela omnipresença da tal “fratria”.

Foi um acto corajoso? Claro. Militares a acabar um regime que os compelia a uma guerra, que se eternizava e que alguns vinham compreendendo como anacrónica e injusta. A gente agradece. E louva. Mas não precisa (ou não devia precisar) destas místicas de calendário. A simplificarem a história. Moralizando-a.

(Postal no "O Flávio")

21
Abr17

As Condecorações

jpt

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No próximo Maio a igreja católica vai condecorar duas das três crianças-soldados (da fé), os irmãos Francisco e Jacinta Marto, que o clero português utilizou faz agora 100 anos. A actividade faz parte dos procedimentos habituais daquela congregação, e a ela diz respeito. Mas o mau gosto é evidente. Não só o discurso supersticioso, que é típico, mas também o sufragar, anacrónico, da apropriação dos infantis.

Seria bom que o Estado se mantivesse a alguma distância desta manifestação, com o pudor da decência. E que as empresas, em particular as de noticiários, também. Mas é duvidoso. A farsa patrioteira deverá vir ao de cima.

(1º postal do O Flávio)

14
Abr17

Rebelo de Sousa e a escravocracia

jpt

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Uma visita de Estado presidencial tem uma agenda política (enfim, presume-se …). E uma agenda de eventos, que àquela está associada, explícita ou simbolicamente. O nosso PR foi ao Senegal e foi visitar a “casa dos escravos” na ilha Gorée, património mundial UNESCO, local simbólico do secular tráfico escravista transatlântico. Porquê? Para quê?

Ao ler agora a notícia vem-me à memória as inúmeras recentes visitas de governantes portugueses a Moçambique, expressando um relativo bom ambiente entre os países e os respectivos poderes. Só para referir os governantes de topo, em 1997 Sampaio esteve, também, em Quelimane, cidade que foi, até XIX, um entreposto de comércio escravista. E não aludiu ao facto, e ainda bem, que a viagem foi um momento importante de recomposição das relações entre os países. Mais simbolicamente, Guterres em 1998 e Cavaco Silva em 2008 visitaram a Ilha de Moçambique, também ela durante séculos local de prática e de (tentativa de) controlo do comércio de escravos. E muito menos visitaram o fronteiro e maravilhoso Mossuril, onde está a dita “Rampa dos Escravos” (se verdadeira ou mítica nunca o pude comprovar), pequeno mas muito importante porto de embarque de escravos. Um tráfico que não era só feito por portugueses, mas por uma série de comerciantes transoceânicos africanos, europeus e índicos, fornecidos por comerciantes do interior continental. Mas, claro, exponenciado pela febril procura dos mercados americanos e índicos. Ou seja, o poder português não levantou o assunto, a memória histórica. Privilegiando o reforço das relações, e nisso muito concordo. E talvez por não haver consenso entre as suas equipas sobre que tipo de abordagem ter. Talvez …

Rebelo de Sousa levanta agora o assunto no Senegal. Para quê, porquê? Que quis ele avançar? Qual o enquadramento que ele próprio quis dar, ou que a sua equipa de assessores que preparou a visita quis estabelecer? Mais, nas próximas visitas às ex-colónias portuguesas que ele virá, decerto, a fazer, que tipo de discurso lhe irá ser cobrado sobre esta matéria? À primeira vista isto foi, a um nível superficial da política, um puro disparate. Um voluntarismo, inebriado.

Mas falar do comércio de escravos e do tráfico de escravos (ou seja, do que foi legal e o do que foi ilegal) poderá ser uma boa coisa. Não para que Portugal peça “desculpas”. Pedir desculpa pelo passado longínquo secular é uma aberração, uma verdadeira indignidade intelectual. Transpira uma sacralização de uma identidade nacional, traz uma antropomorfização das sociedades, que não passa no crivo de um mero letrado. Nós não somos os nossos antepassados longínquos. Mas também porque não temos interlocutores a quem pedir a tal “desculpa”. O comércio e o tráfico de escravos foi uma gigantesca rede secular, multipolarizada, assente em diferentíssimas concepções de humanidade.

Agora o que é importante é reconhecer o quão estrutural foi o comércio escravista na sempre louvada “gesta” portuguesa. Como foi ele objectivo, estatal e privado, durante séculos, como absorveu os recursos humanos estatais, como rivalizou com Lisboa, como articulou com Lisboa. Como foi motriz da presença portuguesa em África, essa que continua a ser dita “cristocêntrica”, “civilizadora”. Como essa actividade estruturou as mentalidades, o modelo de relacionamento com as populações africanas (escravizáveis; comerciantes de escravos), algo bem perene. E como esse enorme comércio fundou uma verdadeira escravocracia, o capitalismo balbuciante da monarquia constitucional de XIX, que tantas loas (ao “fontismo” por exemplo) vamos lendo. Que o poder português, que o nosso PR, conduza o país a uma reflexão muito mais certeira sobre a sua história, sobre as suas constituintes, e sobre aquilo que motorizou as suas relações com as áreas africanas, que isso seja transportado para as escolas (que História se continua a aprender?), para os quotidianos dos adultos, isso é importante. Para que percebamos melhor a história, o que nos constitui as ideias sobre os outros. E, também, porque os outros nos olham e percebem de formas tão diversas das nossas expectativas (tão assentes no misticismo lusotropical/lusófono).

Mas que Rebelo de Sousa vá a Gorée encetar o discurso do poder português sobre a escravismo português com esta falsificação da história, - "Portugal reconheceu injustiça da escravatura quando a aboliu em 1761", repegando o velho mito do abolicionismo pombalino, que de facto foi uma política de fomento do comércio de escravos e da optimização económica destes na economia de plantação no Brasil -. uma meia-verdade para enganar, qual a velha missanga barata do comércio escravista? É inenarrável. Politicamente uma asneira, repito. E intelectualmente vergonhoso. Uma tragédia? Não, uma farsa.

(Publicado no "Courelas")

08
Abr17

O estado dos cientistas

jpt

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Janto com um amigo, académico. Diz-me que prepara um projecto de investigação, que para a sua realização irá candidatar-se a um programa de financiamentos públicos chamado Horizonte 2020. Diz-me também que as questões burocráticas, de preenchimento da candidatura, são um pouco difíceis. As quais se tratam em portal electrónico próprio, no qual ele já se inscreveu.

Diz-me também que o acesso individual a este portal de financiamento de projectos de investigação científica se faz pelo Número de Identificação Fiscal de cada cientista candidato. Entenda-se, o acesso à actividade de cada um neste portal de financiamento à ciência faz-se pela apresentação do respectivo NIF.

Fico estupefacto. A individualidade do cientista (candidato a financiamento) não é expressa electronicamente pelo seu nome. Ou simbolizada por uma senha que tenha escolhido, num livre-arbítrio expressando o seu imaginário ou realidade (eu lembro, entre outras, as minhas nropabalamabolamainhaca, já abandonadas). Ou, vá lá, o seu número de bilhete de identidade/cartão de cidadão, expressando a sua cidadania, afirmando o indivíduo cidadão com direitos e deveres desta república.

Já não é assim. A individualidade do cientista (candidato a financiamento) é mostrada à instituição financiadora da ciência através do seu número de pagador de impostos!

Muitos textos de muitos autores li referindo esta evolução do sistema capitalista/economia de mercado (há quem lhe chame pós-moderna, pós-industrial, pós-colonial, pós-etc.) que transforma (avilta, dizem) os cidadãos em meros consumidores, como factor de transmutação cultural/existencial necessário ou favorável à estabilidade e potenciação do modus vivendi. Mas neste caso o que vejo, porque o Estado (financiador da ciência) mo grita, é a redução do cidadão (cientista), e assim até a da ciência (dos cidadãos), a utente, pagador de impostos. E diante disto não há um “indignista”, um de prosápia de subversivo, um cientista social analítico, crítico, seja lá o que for, que se arrepie.

Vão felizes, assim utentes. Submersos neste véu ideológico. Dizia-se antes cúmplices. Ou mesmo colaboracionistas. E dançam, os cúmplices. Inscrevem-se, candidatam-se. Apresentando o NIF … Colaboram. E vão saracotear-se alhures.

05
Abr17

Torna-viagem

jpt

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(O Pedro Correia convidou-me para colocar um texto no Delito de Opinião. Enviei este “torna-viagem”)

Um tipo emigra. Fica nisso duas décadas, imigrado já adulto, envelhecendo, e assim se apresta aos cinquentas. Nesse entretanto rodeia-se, reconfigura-se. Mudam-se-lhe interesses e modos. Condizentes com o local onde se aboletou, com toda a certeza. A mim, lá no sul que me acolheu, tornaram-se uns mais rudes e os outros mais profundos. Para estes despertado muito pelos (muito) amigos construídos nesse caminho, gente de biografias densas e rugosas, de atenções múltiplas, a fazerem um ambiente bem mais intenso do que o salão luso, o “Terreiro do Paço” de Minho ao Algarve, mais ainda os promontórios lisboetas e afins, onde tudo parece, se visto lá de longe, algo coreografado.

Nessas décadas ali, se entre os nossos, patrícios, sempre foi comum o lamento, até lamúria, com a perspectiva do regresso à (cada vez menos) casa. Se por lá se anunciava e praticava o convívio fácil, desinibido, a entreajuda, o “amigo de amigo…”, mesmo que quantas vezes desiludindo, a cada um que tinha de regressar ao país, ou mesmo a cada visita de férias, se somavam as conversas sobre o gelo português, a solidão da vida que aqui ocorre. O anúncio, temor, que na “pátria”, por mais “amada” que seja, o ombrear escasseia. Os que iam voltando, os que já haviam voltado e depois revoltado, deixa(va)m sempre o aviso: em Portugal nada e ninguém é como lá fora. Pois, por poucos anos que tenham passado, aquando do retorno os amigos de ontem afinal desaparecem neste hoje d’agora, quanto muito uns jantares na chegada, quais comités de recepção, e depois o silêncio. Nem tecer nem cerzir comunhões. Pois a vida não o permite, vão as pessoas amargas com as crises – essa afinal singular, única, pois há pelo menos quinze anos que sempre gemida, em uníssono e contínuo, pelos residentes.

Quem volta(va) às pequenas cidades logo surgia queixando-se do vazio, da modorra, das polémicas e entusiasmos/irritações por coisas nada, em país de tantas facilidades. Os caídos em Coimbra logo azedos com aquele nicho de homo academicus provinciano, castrador. Os aportados ao Porto notando ainda assim mais cálidos os de lá, mas resmungando o quão estratificada é a cidade, nisso fechada a quem ali se quer acolher, coisas decerto do velho burgo de burgueses. E sobre Lisboa nem falar, cidade de gente ácida, desabrida, pois já urbe. E toda ela julgando-se sem tempo para si e para os outros, lesta a desamigar-se dos velhos amigos, inepta para os novos, devido ao trânsito, aos arrabaldes e condomínios, às distâncias que também são estatutos, importâncias. E impaciências. Ou também, sempre eu o disse, à malvada idade. Com tudo isso quando ainda por lá cada antevisão do regresso vinha com arrepio.

Depois calhou-me a mim assumir-me o atemorizado “torna-viagem”. Caído nesta mesma capital, agreste e superficial. E desarvorado de utilidade, daquela a que me habituara, até pressuroso em brandi-la, pois aqui vou sem o manancial de informações a partilhar, de conhecimentos peculiares para difundir ou contactos para recomendar, que algo me abrilhantavam no convívio de Maputo e arredores. Nem emprego para brandir nem a mesa farta, e até burilada, que me havia acompanhado. E, talvez pior ainda, carregando agora uma bolsa muito leve. Assim um “torna-viagem” basso, deshumorado, verve trôpega. Os meses foram passando, até os anos já, impávido o tempo. Mas os amigos, antigos, alguns até nisso imenso, outros novos, sempre aparecem, desafiam, almoçam, adoecem, discutem, curam-se, jantam, aguentam, lêem, riem-se, morrem, propõem, bebem, preocupam-se, preocupam-me. Vivem-me, vivo-os.

Afinal era mentira, aquela ladainha entoada lá longe, a da solidão que aqui nos esperaria. Cantávamo-la como exorcismo. Das saudades. Deste ombreio. Este aqui viçoso. Que saibam disto os que lá estão longe.

Bloguista

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