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Nenhures

Jornal A Bola - Armazém Leonino

O meu pai António nunca leu um jornal desportivo – lá em casa lia-se o “Século” de manhã e o “Diário de Lisboa” à tarde, e as coisas da bola eram-lhe indiferentes, até incomodativas. Nas férias, em São Martinho do Porto, eu ia-lhe buscar os jornais à papelaria na “rua dos cafés” e ele dava-me dinheiro para que eu também comprasse “A Bola”, que saía 3 vezes por semana. Ele achava piada (ou seja, bem) que eu lesse jornais, eu queria-os pelos nomes do ciclismo, do “Tour” e também da “Vuelta”, com os quais decorávamos as caricas para os “grandes prémios” nas pistas de praia, e também pelas notícias de Deus Nosso Senhor Vítor Damas, do Yazalde, do Nelson, do Marinho e Manaca, do Dinis e Bastos e Alhinho, e depois do Fraguito (sempre) de meias-caídas, também do Carlos Lopes, Fernando Mamede, Aniceto Simões, Nelson Albuquerque, da belíssima Conceição Alves, Jorge Theriaga, Manuel Brito, Ramalhete, Rendeiro, Sobrinho, Xana e Livramento e tantos outros.

Assim cresci, desde a escola primária, a ler “A Bola” daquela ínclita geração de jornalistas, aqueles que também animavam a memorável coluna “hoje jogo eu”, em que botavam o olhar sobre o mundo, deriva então tão escassa: o director Carlos Miranda, das epopeias do ciclismo, o jovem Santos Neves dos automóveis, o entrevistador Rebelo Carvalheira que veio a morrer assassinado nuns quaisquer meandros, o intelectual da bola Victor Santos, o genial benfiquista-comunista irónico-mor Carlos Pinhão, o direitista estorilista Alfredo Farinha, o sisudo camarada Homero Serpa, o analista Aurélio Márcio, vários tantos outros, e punhados de correspondentes, locais ou de “lá fora”, como então se chamava ao estrangeiro (José Augusto na malvada URSS, Renato Caldeira no longínquo e inatingível Moçambique, Bruno Santos em Paris de França, Duda Guennes, que falava em Lisboa do Brasil, sei lá quantos mais). “A Bola” era um bocado, até bastante, vermelha (o que lhe dava bastante crédito junto do meu pai, comunista encartado) e imensamente encarnada. E era um belíssimo jornal.

As décadas passaram. Ali nos finais de 80s, já nas mudanças geracionais, para lá entraram camaradas olivalenses, o Afonso de Melo, que fora meu adversário de subbuteo, o João Matias, meu vizinho de rua, amigo e colega de turma de liceu e faculdade. O encanto desvanecera-se, talvez porque o jornal já diário, sem largar tinta nos dedos de quem o folheava, e nem aquele lençol sempre esvoaçante, ou até porque eu crescera. Mas era jornal. Ainda.

Depois foi decaindo. Imenso, imensamente. Há décadas que não o compro, apenas folheio, nos cafés. E nele clico, espreitando até com fastio, após ler o “Record”, jornal com o qual tenho relação utilitária. Mas com “A Bola” tenho esta relação, a da enorme primeira paixão feita amor desavindo. Mas ainda ciumento. E a sua degenerescência dói-me.

Nos últimos dias vem noticiando (sublinho, noticiando) a transferência de um treinador (Jesus) para o estrangeiro. Não aventa a hipótese. Não ecoa rumores. Não explicita vontades. Nem afirma cenários. Coisas que cabem no jornalismo. Mas não faz isso. Anuncia, ou seja, noticia o processo em curso. Um processo que, dizem de Paris de França, é “ridículo”, desadequado à realidade. Há quem diga que “não há fumo sem fogo”. Mas o certo é que há, e qualquer leitor o poderá dizer, quem ateie … fumos. O velho “A Bola” hoje em dia é isto, tipos a atearem fumos. Mentiras. E há muito tempo que o é. Ou seja, apenas um jornal que encena “factos” para se vender. A autoridade para a comunicação, a ordem dos jornalistas (ou sindicato ou lá o que é) nada dizem. Os tribunais também nada … Se algum jornal/jornalista mente sobre cultura (saiu um livro, um filme, abriu uma exposição, que, afinal, não existe) é rebaixado. Se sobre clima, falhando escandalosamente o boletim meteorológico, é gozado. Se sobre política é desacreditado. Se sobre economia pode até ser processado. Mas se mente sobre a bola, se “A Bola” mente sobre o futebol – e os clubes estão na bolsa, as mentiras sobre os plantéis têm influência na bolsa – isso passa incólume. Ninguém protesta. Nem, e isso é uma vergonha, os colegas da corporação. Nem o Estado que deveria ser regulador. Pois é só bola (mas depois vão-se abanicar nos triunfos patrióticos).

A minha “A Bola”, o meu primeiro amor, tornou-se uma velha prostituta. De esquina, barata. E eu tenho imensa pena. E, envergonho-me até disso, nojo.

(Postal no "O Flávio")

borges

Ontem foi o dia argentino. Acabei-o a refolhear Borges. E logo a lembrar-me porque foi tão pouco querido de alguns: “Cada dia que passa o nosso país é mais provinciano. Mais provinciano e mais presunçoso, como se fechasse os olhos. Não me surpreenderia que o ensino do latim fosse abandonado pelo do guarani.” (no “O Livro de Areia”).

(Postal no "O Flávio")

antonio sergio

Já nem me lembrava que António Sérgio havia sido efígiezado nas notas, recorda-me o google. Vem a imagem a propósito disto: "…porque em questão de fé toda a discussão é vácua. Quando um dos interlocutores de uma palestra qualquer declara que para ele certo ponto é de fé – creio eu que o coloca, por esse simples ditame, fora de qualquer discussão; e se o outro, depois, quer discutir ainda, toma uma atitude francamente absurda. Não discutirei, por consequência, a fé de ninguém …".

(“Sobre o método mais próprio para converter o incréu”, Ensaios VI, Editorial Inquérito, 1946, p. 254)

(Postal no "O Flávio")

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Quando eu era miúdo havia os marxistas, nas suas diferenças: Zhivkov ordenou o assassinato do Papa; Brejnev gulaguizava os povos de leste; Mao havia massacrado o seu povo e Pol Pot fazia-o; os Baader-Meinhof aterrorizavam, tal como os etarras e as brigadas vermelhas; Neto era o que era. Mas também vinham Berlinguer, até talvez Marchais, Willy Brandt, Amílcar Cabral, Palme, Allende, Carrillo. Que pensavam coisas diferentes, entre si e daqueles outros. Que o diziam, propunham, clamavam. Até denunciavam. Ouviam-se (mesmo sem redes sociais e a infinita tv por satélite). A gente destrinçava. Percebia quem era o inimigo raivoso, furioso. E aquele que apenas tinha perspectivas diferentes. Mário Soares não era Arnaldo de Matos, o MES não era a LCI ou a UDP.

Agora, na sua pluralidade, a cosmologia política adversa é o islamismo. Tem imensas diferenças entre si. E integra algumas fracções vindas deste demónio da modernidade, o integrismo/fundamentalismo. Aquilo que agora é mesmo diferente é que não ouvimos os líderes das maiorias pacíficas que habitam aquela cosmologia a constantemente denunciarem, criticarem, perseguirem a matilha assassina. “Isto não é o islão”, balbuciam, por vezes, quase como se a pedido. A gente sabe que são direcções políticas (há quem lhes chame clero) mais descentralizadas do que os nossas. Mas o seu silêncio é ensurdecedor. E é também ele que alimenta as generalizações, o preconceito. Não é a “nossa” ôntica maldade ..

(Postal no "O Flávio")

teixo.jpg

Volta e meia surge alguém a gozar com os nomes de moçambicanos. No rossio da actualidade, o facebook, o modo disso é sempre o mesmo, símbolos jocosos enquadrando fotos dos BIs, que algum engraçadinho disponibilizou. É uma cena triste (para além da apropriação da documentação alheia). Pois as origens dos nomes são várias e o gozo só mostra a ignorância dos candidatos a cómicos: desde a atribuição autoritária e desrespeitosa nos tempos da administração colonial (o que não incide sobre as novas gerações, claro) até à tradução para português dos nomes nas línguas moçambicanas. Mas o motivo do riso muitas vezes é apenas a incapacidade de sair do hábito, rir-se do que parece diferente mas não é: acabo de ler alguém a gozar com um nome que agrega raiz, espera e mandioca. Mas diante de alguém chamado Esperança Trigo Fonte, por exemplo, ninguém sorri.

Depois há o que devia ser óbvio, as coisas do real servem para darmos nomes às pessoas. A mim, quando nasci, os meus pais, decerto que esperançosos, deram-me este nome, José Flávio. Ou seja, Acrescento Louro (depois saí-lhes isto, azar o deles). Com os nomes de família que tenho (Taveira, Pimentel, Teixeira), se fosse moçambicano “originário”, nascido em 1964, poderia ter sido registado, em apropriação literal, qualquer coisa como Deusdeu Este Louro Tseke Piripiri Teixo.

Muitos se ririam. Mas não se riem do meu nome. Apenas porque não o percebem. Nem, e isso é bem mais triste, percebem os seus próprios nomes.

(Postal no "O Flávio").

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