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Nenhures

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(Este postal refere o artigo do The Guardian “Teresa May was to scared to meet the Greenfeld survivors“).

X é um jornalista que foi muito animador do bloguismo (e logo no tempo em que a sua corporação ainda bramava contra a nova era da palavra pública) e, depois, de outras formas de expressão na internet. Nisso foi, durante anos, um tipo simpaticíssimo comigo, acolhendo e ajudando. Estou muito grato. Fui agora ver o seu mural de FB e descubro que já não estamos ligados (se calhar, surpreendo-me, terei sido eu a cortar, em dia de mau-humor. Se calhar foi ele, por desinteresse). E é por isso que não o nomeio, pois este postal não é ad hominem, não é mesmo ad hominem. Fui lê-lo porque o vejo (é a minha interpretação) como exemplo da palavra internética atreita ao PS, mas sem a pompa do académico-político ou a verve dos assessores, e tive a curiosidade de lhe ver a linha de recepção do acontecido em Pedrógão Grande e arredores. Talvez porque jornalista, concedo, centra-se na crítica (visceral) ao trabalho da imprensa. Mas imediatamente antes do incêndio reproduzira um postal de um prestigiado vulto da academia portuguesa, partilhando o artigo cuja ligação encima este texto, ambos realçando uma mesma parcela do texto. Vou ver a origem da sua partilha, o mural da intelectual portuguesa, e comparo, em ambos os casos, com a forma como analisam o que aqui aconteceu. É a minha, amadora e atomística, forma de procurar o ambiente geral à “esquerda”.

Vejamos: no dia 14 a torre Greenfell arde em Londres, uma tragédia horrível, potenciada pela incúria das instituições estatais e a ganância dos empresários construtores. No dia 16, dois dias depois, o Guardian (o “meu” jornal britânico, como o Mail & Guardian é o meu sul-africano) publica este artigo. Duríssima análise, imputando responsabilidades por aquela centena de mortos aos governos conservadores. Cito o que os dois compatriotas entenderam realçar “That tower is austerity in ruins. Symbolism is everything in politics and nothing better signifies the May-Cameron-Osborne era that stripped bare the state and its social and physical protection of citizens. The horror of poor people burned alive within feet of the country’s grandest mansions, many of them empty, moth-balled investments, perfectly captures the politics of the last seven years.” O “meu” Guardian não deu tréguas, o seu luto não é o silêncio. É o escrutínio, no momento, com os dados disponíveis. A exigência, ao poder político e à administração pública. Uma análise dos processos sociais e políticos que conduzem às catástrofes. E isso é, por ambos, realçado, partilhado, assim explicitamente louvado.

Mas, no mesmo fim-de-semana, logo de seguida às suas partilhas, acontece a desgraça em Portugal. O que leio naquele mural? O lamento pela fúria dos elementos; o elogio do recolhimento, a correlação entre respeito pelas vítimas e contenção, a qual é apresentada explicitamente como exigência do silêncio; a partilha do texto de F. Câncio no DN que logo se apressou a reduzir o acontecido a uma inevitabilidade climática; uma crónica própria dita na imprensa radiofónica 2 dias depois do acontecido consagrando a tese de que as causas da catástrofe foram apenas naturais e aludindo ao aquecimento global. A crítica à imprensa – com o espantoso momento em que vitupera a falta de deontologia dos profissionais porque continuaram a filmar mortos apesar das “ordens da GNR” que os queriam proibir disso (é preciso repetir? uma crítica, vinda da intelectualidade de esquerda, aos jornalistas porque não acatam ordens da polícia para parar de filmar uma catástrofe!) (é preciso que eu repita outra vez?). E, exactamente dois dias depois das mortes, a elogiosa partilha de quem escreve (no DN, de novo) “é o momento de ajudar, não de criticar“. Culminando, insisto, 2 dias depois das mortes (exactamente os 2 dias que dista o artigo do Guardian do incêndio londrino, friso), com a recusa do “aproveitamento político” da situação, considerando-o “nojento“. Ou seja, dizendo nojenta a análise política do acontecido. Quanto ao meu (ex)blogoamigo-FB continuou, por seu turno, batendo forte e feio na Judite de Sousa e similares. Ao resto dizendo nada.

O tão louvado espírito do Guardian? Deve ser só para acima do canal da Mancha. Ou, vá lá, da velha Vilar Formoso. E é este o ambiente geral, abaixo de Vilar Formoso. Os laicadores, no FB (alguns, lamento dizê-lo, meus conhecidos) e fora dele, ululam e laicam. E vão impantes, eles e os laicados.

eucaliptal.jpg

No final dos anos 1980s foi o “surto” das celuloses. Eram mecenas apetecidos, patrocinavam actividades. Era um maná, dizia-se. De facto não precisavam de publicidade para nada, era mesmo a criação da boa imagem, da naturalização da eucaliptização. Os da minha geração lembrar-se-ão disso. Para mim foi também foi esclarecimento político radical: era o tempo em que se vendia a ideia de que Portugal não tinha dimensão para ser agrícola, devendo ser silvícola e “de serviços”, e depois aquilo do Sillicon Valley da europa. Eu, tal como algumas pequenas franjas urbanas, ouvira o excelente Ribeiro Telles do PPM, a única voz pública ecologista, e que algo colheu do impacto dos movimentos ecologistas europeus daquela década, apesar do seu perfil diferenciado face a esses. Depois surgira o governante Carlos Pimenta, enérgico. E que veio a ser, convenientemente, enviado para Bruxelas. Nisso eu deixara-me de quaisquer dúvidas sobre o quão abominável era o poder de Cavaco – que viria a acabar anos depois entre Duartes Limas, Nunos Delerues e ainda da missa não sabíamos quase nada, das trocas da “Mariani” ao conselheiro Dias Loureiro passando por aquela cloaca toda – quando o ministro Mira Amaral declarou que os eucaliptos eram o nosso “petróleo verde”. E passara a votar PS.

Uma década depois, já o PCP havia criado a fraude “verdes”, usurpando um importante espaço simbólico (e roubando, via parlamento, o erário público e abastardando o sistema político, expressando o seu escarro ditatorial pela democracia parlamentar), o jotinha Sousa Pinto, durante andanças do parlamento europeu, seduziu Mário Soares para a sua léria “causas fracturantes”. O velho sábio percebeu o filão político que ali estava, e patrocinou-o no já pântano de Guterres, o que implicou a adopção de algumas causas urbanas apetecíveis ao agit-prop e ao colher de simpatias nas novas gerações. Estratégia cuja refracção promoveu a coligação dos grupelhos de inspiração estalinista, maoísta e trotskista, que desse momento se alimentou. Os núcleos da pequena-burguesia urbana, funcionalizada ou a isso almejando, aderiram a esse feixe de causas, muito derivadas da importação da agenda identitarista americana – algo interrompida quando a causa da legalização do cannabis não ascendeu devido ao surgimento da crise mas é óbvio que vem aí a da racialização da sociedade -, apetecível aos quadros universitários que a compunham (e compõem). E também valorizadas porque apreensíveis pela corporação jornalística, oriunda dos mesmos estratos sociais e, sendo generalista e menos dotada de capital cultural, consumidora e reprodutora de questões de aparente simplicidade pois sempre traduzíveis em termos “morais” e apelando à simplificação topológica “direita-esquerda”.

Refiro isto pois significou a absorção de energias políticas num “nicho ecológico” social português do qual se poderia esperar a emergência de sensibilidades e até movimentos ecologistas. Que alertassem, debatessem e colocassem no centro da agenda política a questão da flora nacional, do ordenamento territorial. Houve e há associações e sensibilidades ecologistas, há discurso, há até imprensa (e houve bloguismo…), mas têm pouca repercussão. Entretanto o país organizou a Europália, comemorou os “descobrimentos”, propagandeou a lusofonia e a CPLP, fez a EXPO-98, entrou no euro, Timorou, avançou para o Euro-2004, acreditou-se enriquecido, e depois rebentou-lhe a crise, distraído que vinha. Retraiu-se. Agora até avançou para tentar prender uma ligeira franja da oligarquia que tem predominado.

Mas não olha para a grande revolução que lhe acontece há décadas, a silvícola – ululamos que somos campeões de futebol mas ninguém se interroga, ou apenas refere, que somos campeões do eucalipto, o país do mundo com maior percentagem de território em eucaliptal! Tem especialistas, tem testemunhas. Mas não os ouve. Aos que falam da dramática involução da flora, do apego ao produtivismo silvícola. São questões complexas e dolorosas, e não reduzíveis em simplicíssimos termos de “moral” ou de “esquerda/direita”. Terá muito de conhecimento científico mas tem também muito de decisão sobre modelos de desenvolvimento do país, que naquele não se esgotam.

E a questão não se alimenta dos partidos nem os alimenta. É certo que o PCP (ainda que abastardando a questão pela sua canibalização simbólica do movimento ecologista) sempre tem combatido este movimento do “eucaliptal”, ainda que não lhe dando o relevo político que a sua centralidade nacional exige. O PS e o PSD estão colonizados por interesses económicos. E estão esvaziados de verdadeiros núcleos de debate ideológico (entenda-se, sobre estratégias desenvolvimentistas), são botes de cabotagem, nada mais. O CDS esvaziou-se após décadas de solavancos de Paulo Portas (alguém ouve falar em democracia-cristã? há alguma reclamação de uma via conservadora?) e enreda-se no oxímoro do sex-appeal ponderado, maculado pelo abate de sobreiros. O PPM morreu, andando por aí uma apropriação tão básica que indigna, o Partido dos Animais (no qual votei) é, afinal, um ruminante, o Partido da Terra é mera areia. A ecologia, ou seja, o ordenamento do país, a preservação/desenvolvimento da flora e do país não é assunto dominante. E não colhe votos. Porque nós, eleitores, não votamos segundo esse tipo de considerações, escolhemos pelas promessas de redistribuição dos fundos estatais e pela aparência e retórica dos cabecilhas.

E o “petróleo verde”, ele-próprio e todo o abandono e inquestionamento do interior que ele simboliza, continua a espalhar-se. E a ser, até, usado como símbolo do benfazejo. Neste país, no qual a produção das celuloses poderá ter lugar, a simples ideia de que este epíteto é valorizador, ainda utilizável, significa o vazio da discussão, da desistência da população e da conivência e incapacidade dos políticos. 30 anos depois de Mira Amaral ainda se ouve Paulo Fernandes, responsável da Altri, receber António Costa, fazer-lhe exigências, ainda que sendo financiado, e brandir, melífluo, o “Petróleo Verde”. Diante do silêncio, incapaz, do primeiro-ministro. Este apenas mais um na fileira dos abstencionistas. Políticos de cabotagem. Que governam, com nosso acordo, esta República dos Eucaliptos, tal como outros títeres o fizeram nas repúblicas das bananas.

Deixo breves programas da RTP, 5 minutos, para que não se diga que há radicalismos políticos envolvidos:

Compreender os incêndios florestais de 2013. A eucaliptização do país.

Associações ambientalistas acusam o Governo de querer destruir a floresta com nova lei

(Postal no "O Flávio")

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(ao correr das teclas):

1. Grande fotografia na capa do Público (de Paulo Pimenta): o horror, cru, sem ser preciso violentar sensibilidades e intimidades. E a mostrar também que, mesmo nesta era de superavit de imagens, nada substitui a imagem que é fotografia, a profissão do fotorepórter.

 

2. Uma coisa desta magnitude foi uma catástrofe. Há imensos fogos todos os anos, mas nunca como este, com esta desgraça. Uma conjugação de factores climáticos única, maldita, a provocar algo extraordinário. Assacar as culpas ao governo é um pensamento pobre, qual uma acusação de feitiçaria. Nisso de encontrar causas humanas, dolosas, para todos os fenómenos malévolos. De aplacar deuses e espíritos (e as nossas consciências) com um sacrifício, imolar um bode expiatório feito gente. E há já muita gente nisso … Houve erros? (sobreviventes dizem que foram enviados pela GNR para a estrada assassina), descoordenação, falta de meios ou de informação, alguma incapacidade face ao descalabro? Talvez sim, talvez não. Mas não foi isso que causou algo tão assim.

3. Uma desgraça destas exige pensar. Pensar “fora da placa” – ou seja, pensar fora do “consenso”, esse também maldito mito que entorpece. Ontem dois bons textos de Henrique Pereira dos Santos, digo eu que sou totalmente leigo na matéria: no Corta-Fitas; e no Público.

4. Causas sociais? Ângelo Ferreira (que foi bloguista) escreve hoje o seu espanto/desagrado, relatando que ontem numa freguesia de Aveiro, apesar da desgraça e do luto nacional decretado, passaram a tarde a lançar foguetes dadas as festas tradicionais (algum santo, decerto). Melhor imagem para o desprezo insensível do litoral urbano para com o mundo do interior, ainda ruralizado? Capeado pelo interesse muito actual, até folclórico, pelas feirinhas nos xópingues do queijo curado, do fumeiro, e do turismo rural de alguma burguesia. A queimada que Portugal é desde há algumas décadas vem muito disso, do olhar para o Atlântico virando costas para o interior: com raiva, aqueles que vieram pobres, “filhos” dos das courelas ou de malteses ou ratinhos. Com o desprezo de sempre, dos “filhos” de lavradores ou morgados, e dos arrivistas.

5. Políticos? A população está chocada, e teme que coisas destas se repitam. E chora a terra queimada, sempre. Tem que ser sossegada e esclarecida. Ou seja, sem demagogia. Os políticos têm que esclarecer e ser escrutinados. O Presidente Rebelo de Sousa disse em 2016 que iria privilegiar o acompanhamento desta questão.  Não lhe compete legislar ou executar. Mas pode induzir, sensibilizar. E, politicamente, pressionar. Falou mal agora, quando no meio dos acontecimentos explicitou a desnecessidade de qualquer avaliação dos procedimentos havidos? Falou pessimamente. Mas acima de tudo, para que se possa escrutiná-lo, tem que nos dizer que acções tomou neste último ano, junto do governo, da assembleia, da administração pública, da sociedade civil, para cumprir a promessa que fez aquando dos incêndios do ano passado. Mesmo que tenha que violar o tal sigilo do Conselho de Estado. Mesmo que isso cutuque outras instituições e pessoas. Ele é o Presidente, tem que ser ouvido e escrutinado, para se salvaguardar. Não é preciso muito, duas páginas A4 chegam, explicitando acções e propostas feitas ou ouvidas, seus interlocutores, resultados esperados e havidos. Tem assessores para fazer isso, rapidamente (durante o luto, mesmo). Não se trata de diplomacia externa, de defesa nacional ou mesmo de política económico-financeira, questões em que o sigilo total ou relativo se impõe. É a administração do país, a política agrícola e silvícola, o ordenamento territorial. Fale. Fale-se.

6. O PM Costa foi ministro da administração, sabe da matéria, e quando chegou a PM prometeu combater (eliminar, quase) os fogos. Já circulam por aí as medidas tomadas dizendo-as responsáveis deste colapso, exactamente replicando o que Costa e o PS (e o BE) fizeram no governo anterior, ao qual diziam directamente responsável pelos fogos. O PM tem que ser escrutinado, não culpado. E neste caso não é no parlamento, é diante de todos para nosso sossego. Deveria explicitar concisamente (mesmo que o tenha vindo a fazer ao longo do tempo, recorde-nos agora) quais as medidas tomadas, as legisladas e executadas, quais os seus objectivos e os seus resultados até agora, um ano e meio depois de ter tomado o poder. A ministra da tutela disse, também há ano e meio, da extrema evolução da segurança e da capacidade organizacional devido às medidas que tomou. Esclareça isso, nas tais duas páginas A4 para nós-povo, e em detalhe para um alargado leque de agentes e estudiosos especialistas. Discutam isso. Mas antes de discutir informe-nos. E diga (digam) também que medidas falharam, ou não se conseguiram estabelecer, ou estão a meio – pois há uma desumanidade no discurso político, de anunciar completudes. Isso não existe. A mesma coisa para o secretário de estado, cujo perfil foi muito humanizado, pois chorou, pois soube-se que já passou por trauma semelhante. Diga, curto, conciso, franco, o que já fez, o que não conseguiu fazer, o que pretende fazer. E que dúvidas tem. Têm.

A culpa não é deles. Isto é uma questão de décadas, estrutural. Social, para dizer melhor. Como são presidente e governo têm, na crise, de nos dizer, verdadeiramente, sem abraços, beijos ou auto-retratos, falando de “pessoas para pessoas” o que fizeram, o que pensam fazer.

7. Como velho bloguista tenho um mural de FB muito diversificado. Inúmeros ex-bloguistas, jornalistas, académicos, profissionais da palavra. Talvez por indução do algoritmo-FB, que tende a esconder aqueles com quem não interagimos, mas talvez não, nessa mole de gente interessante aquela fracção mais ligada afectiva e ideologicamente ao poder actual foi pouco expressiva neste fim-de-semana. Surpreendi-me, até porque costumam aparecer na minha lista de actualizações (feeds) analisando e opinando sobre várias matérias. Não tanto nesta. Surgem-me hoje, criticando Judite de Sousa, uma qualquer pergunta que fez à ministra, e uma reportagem populista ao que parece. Encontraram nela a sua catarse. E o bode expiatório alternativo. É paupérrimo, intelectualmente paupérrimo. E é, até, moralmente abjecto.

(Postal no "O Flávio")

paulinho

(Paulo Gentil; fotografia de Sérgio Santimano)

(18 de Junho, foi há dois anos que morreu o Paulinho, a deixar-nos cá. Então escrevi este texto no ma-schamba. Como está de difícil acesso, só por busca, aqui o recoloco. Maneira de partilhar que dele tenho imensas saudades. Imensíssimas ...)

(Sérgio Godinho - Com um brilhozinho nos olhos)

Esta é uma das canções da minha vida. Em tempos recuados também, mas não desde há décadas, por ser um carinhoso cantar desta partilha companheira de um charro, da procurada leveza amigada, isso mesmo que um dia fomos cantar à Aula Magna lisboeta, quando o Sérgio Godinho fora preso no Brasil, ainda os tempos daquela ditadura, por razões de posse de umas gramas de erva. Mas já então, e agora ainda mais, mesmo mesmo nada disso pois muito mais, que a canção subia a hino, como o foi, por dizer isto " É que hoje fiz um amigo / E coisa mais preciosa no mundo não há (...) / Guardei um amigo / Que é coisa que vale milhões", e era e é mais do que o suficiente para a fazer este isso tão grande ...

Agora as décadas passaram, chegou a idade e já não é o meu tempo de fazer amigos. Mas sim, como hoje, o de os perder, partidos para sempre, e eu a cantar embargado "É que hoje perdi um amigo / E coisa mais preciosa no mundo não há (...) / que é coisa que vale milhões". Avançou o Paulinho, o meu querido Paulinho, tinha que ser. E assim, como já o disse, sentindo-o muito, a savana está a ficar desarborizada, sem sombras e sem refúgios. E um homem desabrigado, enquanto aqui vai ficando.

Conheci-o já depois daqueles tempos épicos, "os anos de chumbo" que narram em Moçambique, doirados para os homens que o são por mais duros e injustos que fossem, esses tempos e até aqueles homens. Talvez melhor dizendo, tempos doirando os homens, coisa complexa para quem não conhece o país e se apresta em juízos, que nada mais são do que posconceitos, assim falhos.

Apanhei-o, apanhámo-nos, depois, já naquela tão aparente modorra do Maputo da paz. As nossas mulheres mui amigas, as nossas filhas crescendo juntas (e como tanto as amamos!, pais velhotes ...), um punhado de amigos em conjunto, este a desvanecer-se tão depresssa, e como dói isto do Kok e do Jorginho também já terem avançado, e mais para mim, não tanto para ele, o Luís, esse que me devastou, me mudou para tão pior, quando foi e eu não consegui estar. E o nosso Sporting, coisa sempre jocosa, mais o resto tudo. Pretextos, e ainda bem que assim foi, para a gente tantas vezes se sentar juntos, partilhando. O jarro de vinho, com alguma parcimónia, sempre o notei, mais um charro ou outro, da parte dele, eu mais naquelas apneias dos uísques e assins. E à nossa volta cada um ao seu ritmo.

E nisto eu a aprender Moçambique. Ele o mais moçambicano que apanhei, um profundo zambeziano do zumbo ao índico, do maputo ao rovuma, apaixonado pelo seu país. Pois um conhecedor, amante. Avançasse eu, ou outrem, para a distante província, para qualquer recôndito distrito, havia sempre alguém que ele conhecia, um contacto a fazer, a facilitar as dificeis condições, ainda para mais porque, e quantas vezes mo aconteceu, "és amigo do Paulo Gentil? então estás em casa, do que precisas?", seja lá onde fosse, fosse lá quem fosse ... Pois nele havia um conhecimento denso do país feito saber da história, aquela dos ditos "chuabos", da escola de Chimoio, dos tempos da independência, da guerra civil, na qual andou mesmo mesmo como "camarada comissário político" (como lhe respondia eu ao "professor" nas nossas chamadas telefónicas), e do daquilo do depois, do mundo "ongs", do desenvolvimento, um conhecimento que era o das pessoas que a fizeram, à tal história, e que a estão a fazer, algo que nós, antropólogos, chamamos etnográfico.

Um saber feito de memória prodigiosa mas acima de tudo de sabedoria, e não estou a ser redundante. De respeito e, acima de tudo, de um enorme interesse por quem o rodeava. Mais ainda de louvar pois em homem nada plácido, um gajo de irritações, mau-feitio, como o deve ser homem que o é, homem de feitio. Mas homem, e isso sabiam, sabiamo-lo, nós os outros. Por isso mesmo, pelo apreço e cuidado por todos os com quem ombreava, algo a que também se pode chamar só respeito ou mesmo amor, o digo, o sei, o mais moçambicano, o maior moçambicano, que cruzei. E assim, só por assim o ser, ainda que sarcástico, irónico, mesmo até malandro, sendo, e por todos sabido e vivido, homem de amigos, tantos amigos, eu apenas um deles, mas assim a sentir-me tão especial, decerto como todos os outros. Homem ... como tão poucos.

Apanhei-o agora no fim, aqui na Lisboa dele tão longínqua. Chegado cansado, pois este mesmo fim, mas o mesmo trato, nada rasurado, o mesmo humor, o mesmo afã do mundo. E conto-o para que os camaradas de Maputo o saibam, os possam assim acompanhar, a alguns destes seus últimos passos. Fui ter com ele ao hospital, aos Capuchos, à primeira consulta, cheguei e aperto de mão pois nada de abraços (e nem o abracei, caralho ...). O médico, um tipo chamado Brotas, muito porreiro, a dizer que entrássemos juntos na consulta, e a gente a negar-se, eu num "não é preciso, só estou a acompanhar" e à terceira insistência do médico, obviamente preocupado, o Paulo logo letal "Zé, o tipo deve julgar que a gente é um casal", coisa dos tempos d'agora-aqui, e a gente a rir-se, sem maldade, apenas de nós próprios, e mais dele próprio, agora-assim, foda-se que estava a morrer. Que coragem!

Avançou-me até à Póvoa de Santo Adrião, onde a família tinha casa, arrabalde lisboeta que eu desconhecia. Logo ao melhor restaurante da zona, o "Floresta", a fazer amizade com os empregados, eles seduzidos. A comer nada mas com todo o prazer. Eu a beber a minha angústia. Depois, no segundo dia que lá fui parei, sozinho, no quiosque (a barraca, como se diz na terra) da rua dele, a comprar tabaco, e a miúda "então, o seu amigo hoje não vem?", e ele já era do bairro, gostado e precisado! E eu, que aqui vivo, e tantos outros, e ninguém nos liga ...

Dias depois outra consulta, apenas para mais delongas para um homem já sem tempo. No fim perguntei-lhe "camarada comissário político e agora? onde queres ir?", e ele a querer sair dali, daquela Póvoa de Santo Adrião, até à Lisboa ali depois dos montes. "Feira do Livro" disse-me. Avisei-o que era um subir e descer cansativo para ele e, raisparta, de que vale lá ir, nós sem dinheiro, para além de que aquilo para mim é só comprar livros para a estante, pois tantos já em casa sem serem lidos, e posso-lhos emprestadar, é só ele vir buscar. E ele a rir-se "gosto disso!, é isso mesmo, quero comprar livros para a estante", assim a pensar o futuro, e eu a esmaecer diante de tanta força. Mas ainda era cedo, meio da manhã, a Feira ainda fechada. Fomos almoçar, "talvez ao rio, não?" propus, mas logo lhe dizendo "que nos interessa o Tejo a nós, vindos do Índico?" E assim fomos ao mercado de Alvalade, uma espécie do mercado do peixe lá de Maputo onde acabámos no restaurante local. Eu a presumir um peixinho grelhado, adequado julguei eu. Mas nada disso, "uma cataplana de gambas e peixe" escolheu e assim foi, ele a picar algo com o prazer da vida e eu a alambuzar-me, enquanto lhe prometia metade do frasco de piripiri que o Elísio me trouxe agora de Maputo ...

Comemos e falámos. Do futuro. Um pouco disto de Nyusi mas muito mais do como estamos, que vamos fazer, nós-próprios. Ele preocupado comigo, com a minha família "Zé ....!!!" a obrigar-me a pensar, "que estás a fazer?". E eu preocupado, "como estás de reforma?" "de dinheiro?", como "vai ser o regresso?", a esperança quase desesperada a fazer-me ainda mais imbecil. Ele a exigir pagar naquele dia, e assim foi. E a navegar esse futuro que aí vem. Ambos sem reformas, sem bens alguns, sem emprego, sem nada disso. Camaradas manos. "Estamos fodidos, camarada!!" disse-lhe. E ele, quase a morrer, a rir-se devagar, num concordante "estamos!". Pois o Paulo, depois da adesão, dos 40 anos de militância, da guerra feita, e depois de tanto distrito calcorreado, de tanta ong trabalhada, daquilo do desenvolvimento, de tanto contacto, de tanta amizade, nada acumulou. Nada quis. Nada apropriou, nada aproveitou. A sua maneira de andar direito, erecto. De amar, solidário. Orgulhoso.

Pois todo se deu, assim fruindo. Todo conheceu, assim fruindo.

E eu, agora, hoje, não o vou comparar com os outros. Pois nem o merecem. Fico-me a chorá-lo. Homem a chorar a falta que ele me vai fazer.

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Isto da bola é tramado. Sportinguista abomino o Benfica, ainda mais do que o Porto, ainda que este seja óbvio avatar do demo. As vitórias desse Benfica (em especial no futebol sénior) estão todas manchadas pela ilegalidade e pela imoralidade, não há dúvida sobre o assunto, é ôntico. Por vezes a empiria fundamenta o dogma (a escandalosa manipulação do campeonato dos “túneis”), outras vezes o dogma fundamenta a empiria (o golo ilegal de Luisão empurrando Ricardo e dando um campeonato à imoral agremiação).

Dito isto, anda toda a gente a discutir correspondência privada, coisas de dois agentes benfiquistas, que foi pilhada. São biltres, os correspondentes? Têm ar disso. Mas não se lhes pode devassar a correspondência. Isto da bola é tramado. Porque em nome da “Taça” nos faz suspender todos os princípios. De facto “que se f… a Taça!”.

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