[Republicano um texto com 16 anos]
Há cerca de um mês o PR Rebelo de Sousa foi ao Senegal e falou sobre a história das escravaturas. Desde isso houve alguns textos sobre o assunto nos jornais. João Pedro Marques, um incontornável historiador deste temática, e também romancista, tem no “Público” e no “Diário de Notícias” vários artigos. Concordo, grosso modo, ainda que discorde de várias coisas. Por exemplo, o PR afirmou que Portugal foi “pioneiro” na abolição dadas as medidas do marquês de Pombal. Isto é um argumento falacioso, coisa de “história higiénica” – de facto Pombal apenas proibiu a importação de escravos para Portugal (o Reino), procurando o fomento do comércio negreiro para o Brasil. E tentou induzir empresas negreiras portuguesas no Índico (como resumi aqui), para concorrerem com as francesas (e índicas), algo alcançado cerca de 20 anos após a sua morte. Surpreendentemente J.P. Marques atribuiu 20 valores àquelas declarações (a locução de uma consabida fraude). Eu, apenas antropólogo, teria reprovado um candidato com esta argumentação: não haja dúvidas, a avaliação dos discentes é sempre muito subjectiva.
J.P. Marques publicou agora “Porquê e para quê voltar à escravatura 150 depois?“, o qual vem na sequência deste outro artigo. Nestes dois textos apresenta quatro razões para não entrarmos num processo – como querem os (já anacrónicos) multiculturalistas esquerdistas – de desculpabilização, aquilo de “pedir desculpa” pelo passado. Concordo com Marques – ainda que discorde quando diz que o debate sobre o escravismo (a “escravatura”) já foi suficiente. Será normal que a alguém que passou 3 décadas a investigar e a produzir uma incontornável obra pareça que a matéria está algo esgotada. Talvez esteja (ainda que duvide, outras gerações a ela regressarão). E também que o seu eco social é (foi) suficiente. E aqui discordo, sem dúvida. Pois a consciência social, de estudantes e do comum cidadão, da força motriz que a escravidão teve na história pátria é muito diminuta. Mas isso não obsta a que concorde com o núcleo relevante do que diz nestes artigos, sobre a irracionalidade (meu termo) e a perversão política disso do andar a pedir “desculpas” pelos séculos passados.
Neste último artigo Marques recorda a Conferência de Durban de 2001, onde muito se falou de desculpabilizações e indemnizações, a propósito do tráfico de escravaturas. Então eu vivia em Maputo, onde a conferência teve algum eco. A este propósito lembrei-me de um texto (nada em registo sério) que então “emailei” e que depois divulguei quando se entrou na era blogal. Eu gosto dele, e gosto das minhas memórias daquele feliz 2001, memórias que transparecem nos nomes dos meus amigos (reais) que nele surgem, memórias do tempo em que o “Rodízio” da Julius Nyerere era um belo restaurante e eu abonado o suficiente para o frequentar.
E por isso repito-o, ao textito, 16 anos depois:
Mil Desculpas
Madrugámos hoje para não perder tempo. Ontem comprei roupas brancas, a minha mulher já as tinha, acho-as mais apropriadas para isto. O meu sobrinho é que não veio, a mãe dele não deixou, e como não tem papas na língua disse-me logo que não quando fui lá pedir-lhe para que o rapaz nos acompanhasse, que era só o que faltava!, que eu nem tinha o direito de lhe pedir isso. Assim viemos os dois, chegámos à Baixa de manhãzinha, e começámos logo que não há tempo a perder, fomos primeiro às ongs nacionais que por aqui estão instaladas, e depois subimos à Sé para falar com o senhor prior, havemos de descer a avenida para chegar à mesquita velha antes do meio-dia, e ainda temos as empresas, que são quase porta sim, porta sim. No caminho falamos com os transeuntes, e a todos dizemos ao que vimos, que lamentamos muito, que estamos arrependidos, que nem tínhamos pensado bem no assunto, que talvez nem tenha sido por mal, mas que enfim, pedimos muita desculpa por os termos escravizado, e pedimos ainda mais desculpa pelo colonialismo, que se calhar até foi pior nem que seja por mais recente. Sou mais eu que falo, a minha mulher tem estado calada, ela nem queria vir, penso até que já se quer ir embora, mas eu insisti muito e ela veio só para me acompanhar, acha que eu não ando bem, sente-me um bocado deprimido, ainda não percebeu se são os quarenta anos a chegar, ou o meu emprego que não corre bem, se estou cansado de estar por aqui, se calhar até acha que arranjei uma outra, mais novinha, mas está enganada, ando é a matutar nestas coisas do mundo, que é bem complicado, e antes estava distraído. É uma pena, as pessoas não estão muito avisadas, nos escritórios não nos recebem, adiam-nos reuniões para um incerto depois, insisto e digo ao que venho e torna-se mais difícil, mas não desisto, peço desculpas às secretárias, aos contínuos, aos guardas, e depois eles até são simpáticos e trazem-nos à rua, amáveis, e chamam as pessoas que passam para que nos ouçam, mas cá fora também nem todos nos aceitam, os homens fogem dos abraços, as mulheres protestam comigo, dizem-me atrevido, os miúdos, esses vão gozando connosco, mas é normal, são ainda inconscientes, até já está uma boa mão cheia atrás de nós, mas não percebo o que dizem, falam em ronga e changana, e eu peço muita desculpa mas ainda não aprendi as línguas daqui, é uma falta de respeito, prometo que começo amanhã, ainda hoje à tarde se não estiver muito cansado. Encontro o Salimo, um libanês meu conhecido, mas diz-me que não acha piada nenhuma, que estou a gozar com ele, e lá continua, mal-humorado, um homem de negócios, e o Akbar, um paquistanês amigo, também recusa as minhas desculpas, e diz-me para ter juízo, o Ferreira veio ter comigo, saiu do Banco quando lhe disseram que eu estava cá em baixo, e também o Bacelar que ainda aí está, ia a passar de carro, ambos a perguntarem se havia algum problema, mas não os percebo, não querem vir connosco pedir desculpas, eles que até são uns tipos óptimos, não estão sensibilizados para o assunto, deve ser isso. A polícia pediu-me a identificação, foi uma chatice, esqueci-me dos papéis em casa, mas lá perdoaram quando lhes pedi desculpa, duplas desculpas neste caso, apesar de a princípio julgarem que estava a brincar. Foi um erro não trazer os documentos mas vim sem a carteira, pois só depois é que poderei entregar dinheiro para me ressarcir da nossa brutalidade, e parte hei-de dar às ongs que são a sociedade civil, outra parte às igrejas nacionais, e aqui não ligo às diferentes crenças, todos partilham um Deus comum, não é?, só não vou dar à Igreja Universal do Reino de Deus, parece que são muito aldrabões, e a outra parte hei-de dar aos pedintes, mais aos velhos e aos aleijados, coitados. Será um problema com as pessoas com quem vou falando, bem que lhes peço as moradas para depois lhes ir entregar, pessoalmente, o dinheiro, mas não mas dizem, desconfiam. Eu explico que não o posso dar de imediato, não estou muito abonado agora, mas estou à espera de uma consultoria para a U.E. e prometo que depois irei distribuir os dólares que receber. Mas nem assim… Parece-me que ao princípio acharam estranho, mas agora já não, continuo a pedir as desculpas, há ainda tanta gente a que não pude falar, aliás cada vez há mais gente que me quer perdoar, vejam lá a quantidade de pessoas aqui em redor, e sei que estão a gostar da nossa atitude, vejo-o nos sorrisos, ouço-o nos risos, é uma pena a minha mulher ter-se ido embora, bem insisti para que ficasse mas preferiu voltar para casa com a Isabel que apareceu por aqui com a Cristina, compreendo pois estava muito comovida, até chorava, ela é muito sensível. Eu agora vou até ali à Fortaleza, onde tenho que pedir redobradas desculpas, sítio do tão antigamente, e também hei-de ir até à estação, e peço desculpas pelos mortos da I Guerra, essa que trouxemos para cá, e fico contente por outros se me estarem a juntar, chegaram os Fernandos, bons amigos, mas afinal só querem assistir, mas sempre é solidariedade, comunhão, penso que as pessoas em redor também o vão sentir. A rapaziada minha amiga que está por aqui acha que já pedi desculpas de mais, que já chega, convidam-me para almoçar, ou talvez uma cervejinha, mas hoje não é dia disso, ainda há tanta gente para abraçar, fico contente com esta delegação, vieram do Núcleo de Arte, ah, os amigos pintores, ainda bem que vieram, peço-vos desculpa, estão vocês a ver?, tão bem aceites foram, Mestre dê aí mais um abraço, lamento muito…Ir até ao núcleo ver as novas obras, agora mesmo?…é pá, obrigado pelo convite, é uma honra, e é sempre um prazer, irei amanhã com todo o prazer, mas hoje não, desculpem-me, tenho que ficar por aqui, na Baixa…olha as meninas da feira, vou pedir desculpa, estas continuam a ser escravizadas, colonizadas, não Jaime, não estou perturbado, não me aconteceu nada, então que cara é essa meus amigos, só estou a fazer o que o meu governo quer fazer, há-de mandar fazer, o nosso governo somos nós, não somos?, é apenas preciso ter coração grande… Ó Ana, que é isso, não aconteceu nada aqui ao Teixeira, dá cá um abraço de desculpas, mais um beijo, lamento muito, já agora diz-me um poema. Vejam como a cidade é pequena, afinal todos nos encontramos, até cá está o motorista da minha mulher, o Lopes, ó Lopes vem cá, tu és um velho colono, vem também pedir desculpa, que dizes? Vieste buscar-me…? …chamam-me? quem?, problemas que só eu posso resolver …? nada, quem sou eu … não resolvo nada… a sério, ó pá! ó Bacelar não me empurres, ó Fernando não me agarrem, Jaime, está quieto, ó Lopes não me leves… não há problema nenhum, só quero pedir desculpa, é pá! larguem-me, vejam o pessoal a aplaudir, eles estão comigo, não me tirem daqui, não têm direito, eu estou bem, porra vocês estão a magoar-me, só quero dizer que lamento, pedir desculpa, desculpa. Vejam, eu tenho razão, todos a acenarem, a rirem, estão-me a compreender. Ò pá, que raio de amigos fui arranjar, deixem-me…
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Ok, ok, estou mais calmo, vamos lá ao Rodízio, comer bem também alivia, mas é para atacar valentemente no carrinho das aguardentes, não é?? Pagas tu Fernando?, porreiro, que não trouxe a carteira, estou à espera de umas consultorias, já vos contei?? sim!? desculpem lá, repito-me, é da impaciência. Aperitivo? um gin duplo, mas abra já um Esporão reserva para respirar, tinto claro… O qué? … o mercado mundial? ó pá, sobre isso não é para pedir desculpas, não é para falar nisso, eu cá sigo os passos do meu governo, as ideias do Estado, esse no mais tarde ou mais cedo, que é mostra do muito respeitinho, era o que faltava. Desculpas dessa coisa do mercado mundial? Nada, isso é coisa para daqui a umas décadas, outros que as peçam, lá na altura… Qué?…afinal não estou assim tão maluco? Mas é claro que não…também vocês têm cada ideia! Sim, sim, Massinga, queremos rodízio para todos, e bom apetite.
(a propósito da Conferência Mundial Contra o Racismo, organizada pela ONU, Durban, Setembro 2001)