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Nenhures

Telegraph and Texas Register

(Lista dos mortos americanos na batalha do Alamo, publicado no jornal Telegraph and Texas Register , 1836)

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(Lista diária de baixas, I Guerra Mundial, jornal americano de Portland)

Por razões outras fui às estantes, ao nicho “E”, naco “Eco”. Deste, entre outros, caiu o livrinho “Cinco Escritos Morais” (Difel, 1998). No primeiro desses escritos, “Pensar a Guerra“, escreveu ele: “Os intelectuais como categoria são uma coisa muito esfumada … Diferente é porém definir a “função intelectual”. Esta consiste em identificar criticamente o que se considera uma satisfatória aproximação ao seu conceito de verdade – e pode ser feita por qualquer pessoa, até por um marginal que reflicta sobre a sua própria condição e que de qualquer modo a exprima, enquanto pode ser traída por um escritor que reaja aos acontecimentos de modo passional, sem se impor a decantação da reflexão.

Por isso … o intelectual não deve tocar o pífaro à revolução. Não para escapar às responsabilidades de uma opção (que pode fazer como indivíduo), mas porque o momento da acção exige que se eliminem as cambiantes e as ambiguidades (e esta é a função insubstituível do decision maker em todas as instituições), enquanto a função intelectual consiste em escavar as ambiguidades e trazê-las à luz do dia. O primeiro dever do intelectual é criticar os seus próprios companheiros de viagem (“pensar” significa desempenhar o papel do Grilo Falante). Pode acontecer que o intelectual opte pelo silêncio por temer trair aqueles com que se identifica, pensando que, para lá dos seus erros contingentes, eles afinal de contas procuram o maior bem para todos. Trágica opção, de que as histórias estão cheias … por [se] pensar que não se podia trocar a lealdade pela verdade. Mas a lealdade é categoria moral e a verdade é categoria teorética. 

Não é que a função intelectual esteja separada da moral. É opção moral decidir exercê-la …. A função intelectual até pode levar a resultados emotivamente insuportáveis … É opção moral exprimir a sua conclusão – ou calá-la (se calhar com a esperança de que seja errada). Tal é o drama de quem, nem que seja por um único momento, se incumbe da tarefa da “funcionário da humanidade”.

Sobre a catástrofe de Pedrógão Grande e áreas vizinhas muito se escreveu. Aqui também, e referi a elisão estatal das estatísticas reais, expressando o desrespeito pelas vítimas. Isso associado à tentativa do estado, desde o dia da catástrofe, em tornear qualquer indagação sobre o funcionamento das estruturas de protecção civil e em impor uma narrativa naturalizadora sobre o acontecido, em tudo reduzir a uma intempérie – pois é óbvio  o incómodo de Costa, político com grande papel nessa estruturação, e de alguns dos seus mais-próximos, agora com funções executivas ou assessoriais. Nisso teve a colaboração de sectores do jornalismo e da academia (aqui mostrei como um jornalista próximo do PS e uma académica de “esquerda” se contradiziam radicalmente, na ânsia de salvaguardar o governo).

São os jornais que avançam finalmente, neste fim-de-semana, números finais e nomes das vítimas. Mas algo contraditórios. As notícias referem ainda que o silêncio estatal demora as acções das seguradoras. Outros brandem hipotéticas questões ligadas a fundos de apoio. De facto, o rescaldo está por fazer. Ou seja, o luto, o luto da sociedade, está por fazer. E as ajudas ao local vão, também por isso, tardando, deixando correr o agora em que são mesmo urgentes. Em suma, o estado demora-se naquela célebre tarefa de “enterrar os mortos, cuidar dos vivos”. Fá-lo para se salvaguardar, e aos seus dirigentes. Nega-se.

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Sobre a questão das vítimas de imediato o “aparelho (ideológico, dizia-se) de estado” produz isto. Neste mês e meio as manobras da administração pública, do governo e dos seus apoiantes têm sido denotativas de uma concepção de exercício do poder. Mas esta ideia dos funcionários políticos de que há um “segredo de justiça” a cobrir as vítimas de um incêndio é um caso extremo, um extraordinário e liminar exemplo de uma ideologia estatista, de uma subalternização da sociedade, dos seus grupos e indivíduos. Acima ponho exemplos que julgo característicos: listas (quantas vezes diárias) de baixas militares publicadas na imprensa em XIX e XX, produzidas em sociedades democráticas. Sim, poderão referir que o episódio de Alamo se inscreve no expansionismo dos EUA, que a I Guerra Mundial foi uma guerra imperialista. Mas o relevante é que já então os mortos eram anunciados, ao ritmo do seu conhecimento e com as possibilidades tecnológicas de então. Em cenários de guerra, nos quais há sempre responsabilidade estatal.

O que vemos agora, em XXI, em Portugal, é exactamente o contrário, o elogio e a prática da opacidade estatal. E estamos a falar de mortos causados numa catástrofe natural, e sobre a qual a administração pública tudo insistiu para alijar responsabilidades próprias. E culminando com isto, com o Estado português, este governo e os seus membros, assessores e apoiantes, a defenderem o segredo de justiça para que os mortos não sejam conhecidos pelo “público”, pelos seus compatriotas. Isto é uma total involução, uma radical negação da democracia.

Tenho milhares de ligações no FB, e tenho-as arrumadas por “grupos” (exs. “Moçambique”, “Olivais”, “Blogs”). A uma dessas categorias chamei-lhe “Antropologia”, e nela conjuguei antropólogos, obviamente, e gente de outras áreas das “humanidades e ciências sociais”. São centenas de pessoas, alguns poucos brasileiros, muitos moçambicanos (tantos deles ex-alunos) e portugueses. É sobre estes últimos que recai agora a minha atenção. Percorri as suas actualizações destes últimos dias. Parte substancial deste universo é activa nas redes sociais, empenhadamente opinativa. Politicamente atenta.

Nenhum deles, repito, nenhum deles, insisto, nenhum deles, aludiu a isto! Sei que é um núcleo social, grosso modo, muito estatista. Por razões sociológicas, até de exercício corporativo. E também da história das ideias, no país e na Europa. Mas isto, este detalhe, é tão sintomático que monumento. Pois nenhum deles, e tão assertivos e opinativos tantos deles são, nenhum deles considerou isto como relevante de notar, partilhar, criticar.

Isto é, de facto, o incêndio dos intelectuais. E as baixas são monumentais. Avassaladoras.

(Postal no "O Flávio")

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(Fotografia de Rui Duarte Silva, publicada no “Expresso”)

Tendo dedicado a sua recente medalha, obtida na Rússia, a um amigo de infância morto nos incêndios de Pedrógão Grande, e à sua mulher e duas crianças também ali mortos queimados, e acompanhando isso com um texto emotivo, o futebolista Ricardo Quaresma fez algo, e de modo muito genuíno, que está em voga: dar nome e cara às vítimas, sublinhar a individualidade dos perecidos e dos sofredores (algo que também a gente do bairro de origem do homenageado e do futebolista, no meu vizinho Sacavém, também faz, através de um mural, percebo-o nas notícias).

Os memoriais europeus estiveram muito ligados ao ideal nacionalista, como o comprovam nas nossas vilas e cidades (e de vários outros países) os monumentos aos mortos da “Grande Guerra” (a I GM) de cada local, incluindo os seus nomes, e também ao Soldado Desconhecido, ou, nosso caso português, com a toponímia habitada pelos mortos da guerra colonial (recomendo um passeio pelo lisboeta bairro dos Olivais-Norte). E alastrou-se, no seu âmbito, como o comprova o cuidado com a preservação da memória de todos os perecidos no Shoah (e não sei se houve meios de fazer o mesmo com o Porrajmos, o holocausto cigano) ou com os cuidados com o tétrico arquivo fotográfico polpotiano. Ou seja, para além da invocação dos tombados em nome do (pérfido) ideário nacionalista, evoluiu-se para a da memória daqueles feitos tombar em nome doutros ideários. O mote é que a morte causada pela afronta humana alheia é vitimizadora, e de que as vítimas nunca são incontáveis, que há o dever ético de as enumerar, de as individuar, reconhecer cada um dos nossos (humanos) como Alguém que partiu. Já com as vítimas das intempéries, da “fúria dos elementos”, é diferente, aqui e alhures não se sente o ideal da necessidade de a cada um salvaguardar “para todo o sempre”, de a cada um fazer húmus da nossa memória futura: estarão “monumentalizados” os mortos das cheias, da queda da ponte de Entre-os-Rios, do terramoto açoriano, dos incêndios? É possível que não, julgo mesmo que não. Uma diferente concepção antropológica, como se esses mortos sendo fruto do acaso não devam entrar na nossa “memorialização”, não apontem o nosso caminho destino. Mostra-nos o contrário Quaresma, na sua pungente evocação do amigo de infância, “Kostadinov” de alcunha de futebol de rua lá em Sacavém, mostram-nos o contrário os vizinhos que àquela família muralizam, em pintura até “naif”, avessos ao seu esquecimento, à redução do devir ao malvado acaso. Esta extensão da vontade social de memorializar os caídos, de alastrar a cada um vulgar, a cada um das “massas” se se quiser, o que antes se atribuía aos notáveis, a isto de das suas individualidades fazer material para construir o futuro, foi, e é hoje mesmo, projecto dos “progressistas”, daquilo que a topologia mental do nosso contexto social/nacional diz “esquerda”.

Cumprem-se hoje 3 semanas do tétrico incêndio. Ainda não se sabe, neste Estado moderno e “tecnologizado”, exactamente quantos e quais os desaparecidos. Nenhuma instituição estatal homenageou, afixando-os, nomes e caras, memorializando-os, os mortos, nossos compatriotas (ou hóspedes). Nem mesmo um mero rol ou, vá lá, um Número maiúsculo porque final. Nem tão pouco os feridos. Nem sequer é uma questão de discutir a trapalhada organizacional que se vai descobrindo em torno de tudo isto, e das manobras do poder em logo capear o que acontecera. Trata-se de dizer que não é apenas uma questão das intempéries, dos tais elementos “em fúria”. Pois, no mínimo, é uma questão de geografia humana. Ou seja, de uma afronta humana que não é alheia, que é nossa própria, em última análise (e o quão cruel é dizer isso) até dos próprios perecidos adultos, pois cidadãos. Os 64 (?) mortos e os (12?) desaparecidos, cujo nome não sabemos e cujas imagens em vida desconhecemos, mera gente vulgar que foi e partiu, morreu, em última análise, por causa daquilo que todos fizemos com aquela região. E, também, parece que devido à trapalhada que deixámos fazer com as instituições de protecção civil. Não serão esses nossos compatriotas gente para lembrar, cada um deles, para que não nos assombrem o futuro, para que nos construam o futuro, tal como todos os outros presentes em todos os outros memoriais? Ou é gente para esquecer, rápido, varrer para debaixo do sofá da memória, em nome da espuma dos dias dos interesses e paixões “políticas”, que de políticas têm tão pouco, e de interesses, interessados e interesseiros, tanto têm? Onde está agora o tão propalado, noutros momentos, com outros agentes, apreço pelos vulgares, pelas massas, pelas “vítimas”?

Passo para o registo pessoal: limpei agora destas minhas ligações-FB um pequeno punhado de gente, incluindo alguns confrades bloguistas dos velhos tempos do weblog.com.pt, pioneiros do bloguismo português, gente que-quase-que-conheço, que escreviam ontem (sexta-feira, vinte dias depois do massacre social acontecido) que quem falava disto o fazia apenas aproveitando-se para dizer mal do governo, instrumentalizando a desgraça, coisas da “direita”. Não o fiz por uma questão de higiene. Mas porque estou certo de quem consegue olhar para isto dessa forma é, pura e simplesmente, um malvado. Desnecessário à interlocução, desprezível na observação.

Algumas outras pessoas (entre as quais uma queridíssima amiga, lá em Maputo) partilham no FB também um texto do pateta Nicolau Santos (o tal especialista em economia que saudou aquele mitómano que se dizia especialista das Nações Unidas, perdendo nisso qualquer crédito que poderia ter tido). Apago-os também das minhas ligações por serem detentores de miserável ignorância, à excepção dessa minha amiga – a amizade consiste mesmo em amar os defeitos dos amigos. Coexistindo com o desprezo pelos dos conhecidos. O (desonesto) pateta do “Expresso” escreve um texto invectivando todos aqueles, digamos que de “direita”, que durante anos defenderam a redução do Estado e seus serviços e que agora aparecem criticando exactamente o facto do Estado ter menos serviços ou serviços menos eficazes (fala da segurança florestal e militar). A questão é muito simples, e está patente na tão comtiana bandeira do nosso “país irmão” Brasil. É o Estado factor de “ordem e progresso”? Desde XIX que a gente dita mais “progressista” acha que o Estado deve ser agente de “progresso”, directa ou indirectamente. E a gente mais “conservadora” acha que a sociedade promoverá o tal progresso e que o Estado deve ter um papel mais reduzido, sendo fundamentalmente um promotor da “ordem”, da segurança interna, contra as sublevações, o crime e as intempéries naturais. E da segurança externa, contra os inimigos estrangeiros – e daí os cuidados com as forças policiais e de protecção civil, e as forças armadas, respectivamente. E o que acontece agora é que aqueles mais conservadores (e não só eles, claro) dizem que o nosso Estado nem sequer (sublinhe-se o “nem sequer”) é capaz de cumprir as suas funções mais irredutíveis, mais básicas, e tão óbvio é isto. Ser incapaz de perceber isso, ser capaz de cair nas tropelias retóricas (e partilhá-las) dos mercenários das teclas é não só um enorme sintoma de ignorância, de ileitura do básico para quem anda para aí a botar sobre o real, sobre o político e o social, mas também de uma (talvez inconsciente) malvadez. Que me perdoe a minha amiga, que é uma jóia de pessoa. Mas é este o produto do véu da ignorância, como dirá qualquer “progressista” crente na metafísica “alienação”. Não passa do desprezo pela morte dos compatriotas, dos co-humanos, em nome da vil solidariedade com os “seus”. Ainda para mais sendo esses “seus” esta miseranda tribo “socialista”.

(Postal no "O Flávio")

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