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Nenhures

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Talvez nada mostre tanto a abjecção intelectual da classe média portuguesa do que esta já tradição: a cada eleição autárquica surgem colecções partilhadas na internet do “ridículo” captado nas campanhas em contextos rurais ou periurbanos. Sim, o poder local tem muito que se lhe diga (mas não será isto). E sim, o seu seguidismo, mimetismo até, ao estilo propagandístico “nacional” é pobre.

Mas este humorzito de merda, este chalacismo com a ruralidade ou, melhor dizendo, com a localidade, com os recursos, características e preocupações muito situados, “territoriais”, é mesmo o espelho da patetice urbana, essa que se julga cosmopolita. A deste netos de migrantes, malteses, chapeleiros, pastores ou seminaristas armados em finórios, envergonhados ou meramente deslembrados das famílias de onde vêm. Para esta gente Portugal é Lisboa (e o Porto) e o resto é bom para ir à praia, para o turismo rural. E como não há taco para grandes coisas então fica-se em casa na internet a gozar com esse resto, a dizê-lo piroso.

São os trocadilhos de merda (Coina é uma constante, e gente que acha de mau tom escrever no FB ou em blog cona ou caralho, não se exime ao ademane paneleiro de brincar com o nome daquela terrra). É o gozo com as características físicas dos candidatos, porque carecas, feios, gordos, velhos ou seja lá o que for, feito por patetas que votam em candidatos urbanos que surgem retocados (e muito) nos materiais propagandísticos, pois apoiados por enxames de assessores, cabeleireiros, massagistas e photoshopeiros. É o abandalhar com os nomes das terras, feito por imbecis que dizem “shopping”, “paper”, “abstract”, “header” e têm as ruas citadinas cheias de lojas com nomes em inglês, e que acham “cool”, um “must” até, ajavardar com a toponímia portuguesa. É o avacalhar das causas e preocupações locais, feito por morcões que depois nem sequer percebem exactamente porque votam nos candidatos para as suas grandes câmaras, a não ser que “este é a favor da/contra a” geringonça.

Talvez o mais significativo que já vi foi este: numa localidade há um cemitério que se tornou insuficiente. Provavelmente é difícil aumentá-lo. O candidato (desconheço por completo os seus hipotéticos méritos, bem como a situação da localidade em causa) escolhe a questão como fundamental, decerto que dialogando com os fregueses/munícipes. Os palhaços das cidades (que as tratam a tratos de polé, já agora) riem-se, basbaques.

Lembro-me de Maputo, onde o cemitério de Lhanguene estava cheio, “sobrepovoado”, o quão até dramático era irmos enterrar os nossos, tão apinhado estava o terreno. Lembro-me do meu bom amigo, que foi excelente vereador, e que tinha esse pelouro. Das dificuldades que teve, e mas contou. Lembro-me do júbilo (sim, júbilo) sentido quando o novo cemitério de Maputo foi inaugurado. Porque era uma tremenda necessidade.

E olho para esta gente aqui, para estes filhos e netos de ratinhos a julgarem-se burgueses, a largarem risos sobre os seus, sobre o “piroso” que julgam reconhecer. Pirosos.

ven

Boaventura Sousa Santos escreve sobre a Venezuela. O texto é uma tal trapalhada que até confunde quem o queira criticar. Mas está lá toda uma mundividência, num autor celebrizado mundo fora, assente numa retórica que é pujante, assim divulgando um pensamento utópico, até onírico, que ficará na histórica intelectual portuguesa (que fique explícito que não lhe encontro méritos frutificadores, mas há muitos que nele se alimentam). Grosso modo, as massas estão alienadas: a) as venezuelanas, pois parecem não estar firmes em torno da sua “revolução bolivariana” apesar das suas condições de vida serem melhores – é o velho argumento que defendia o mundo comunista, sem tirar nem por; b) nós também, vítimas da imprensa mercenária e parcial (essa mesma que também, por ímpios interesses, até chega a criticar a frente popular portuguesa, aka geringonça). O motor fundamental do processo histórico são os EUA, incarnando o “inimigo externo” – independentemente da realidade da pressão norte-americana, isto é o perdurante “anti-americanismo”, velho reaccionarismo oitocentista.

Mas tudo isso é o normal, nada de novo pois está patente no discurso global de BSS (ser-lhe-á até o cerne). O que é interessante é a atrapalhação deste texto, a querer defender o desnorteado regime de Maduro, expressando, de facto, a sua repulsa pela democracia. Ou seja, a sua repulsa pela democracia formal (sublinhe-se o “formal”), velha terminologia antidemocrática que BSS utiliza em textos mesmo de XXI. Pois, de facto, que interessa que as massas votem contra a “revolução bolivariana”? Esta é “virtuosa”, apesar dos “erros”, das más formas de “selecção de candidatos”, do “presidente impreparado”, como o próprio autor afirma. E com tal tem que continuar, apesar dos pesares. Já agora, apesar da repressão sanguinolenta.

Telegraph and Texas Register

(Lista dos mortos americanos na batalha do Alamo, publicado no jornal Telegraph and Texas Register , 1836)

oregonian-newspaper-0108-1919-wwi-casualty-list.pn

(Lista diária de baixas, I Guerra Mundial, jornal americano de Portland)

Por razões outras fui às estantes, ao nicho “E”, naco “Eco”. Deste, entre outros, caiu o livrinho “Cinco Escritos Morais” (Difel, 1998). No primeiro desses escritos, “Pensar a Guerra“, escreveu ele: “Os intelectuais como categoria são uma coisa muito esfumada … Diferente é porém definir a “função intelectual”. Esta consiste em identificar criticamente o que se considera uma satisfatória aproximação ao seu conceito de verdade – e pode ser feita por qualquer pessoa, até por um marginal que reflicta sobre a sua própria condição e que de qualquer modo a exprima, enquanto pode ser traída por um escritor que reaja aos acontecimentos de modo passional, sem se impor a decantação da reflexão.

Por isso … o intelectual não deve tocar o pífaro à revolução. Não para escapar às responsabilidades de uma opção (que pode fazer como indivíduo), mas porque o momento da acção exige que se eliminem as cambiantes e as ambiguidades (e esta é a função insubstituível do decision maker em todas as instituições), enquanto a função intelectual consiste em escavar as ambiguidades e trazê-las à luz do dia. O primeiro dever do intelectual é criticar os seus próprios companheiros de viagem (“pensar” significa desempenhar o papel do Grilo Falante). Pode acontecer que o intelectual opte pelo silêncio por temer trair aqueles com que se identifica, pensando que, para lá dos seus erros contingentes, eles afinal de contas procuram o maior bem para todos. Trágica opção, de que as histórias estão cheias … por [se] pensar que não se podia trocar a lealdade pela verdade. Mas a lealdade é categoria moral e a verdade é categoria teorética. 

Não é que a função intelectual esteja separada da moral. É opção moral decidir exercê-la …. A função intelectual até pode levar a resultados emotivamente insuportáveis … É opção moral exprimir a sua conclusão – ou calá-la (se calhar com a esperança de que seja errada). Tal é o drama de quem, nem que seja por um único momento, se incumbe da tarefa da “funcionário da humanidade”.

Sobre a catástrofe de Pedrógão Grande e áreas vizinhas muito se escreveu. Aqui também, e referi a elisão estatal das estatísticas reais, expressando o desrespeito pelas vítimas. Isso associado à tentativa do estado, desde o dia da catástrofe, em tornear qualquer indagação sobre o funcionamento das estruturas de protecção civil e em impor uma narrativa naturalizadora sobre o acontecido, em tudo reduzir a uma intempérie – pois é óbvio  o incómodo de Costa, político com grande papel nessa estruturação, e de alguns dos seus mais-próximos, agora com funções executivas ou assessoriais. Nisso teve a colaboração de sectores do jornalismo e da academia (aqui mostrei como um jornalista próximo do PS e uma académica de “esquerda” se contradiziam radicalmente, na ânsia de salvaguardar o governo).

São os jornais que avançam finalmente, neste fim-de-semana, números finais e nomes das vítimas. Mas algo contraditórios. As notícias referem ainda que o silêncio estatal demora as acções das seguradoras. Outros brandem hipotéticas questões ligadas a fundos de apoio. De facto, o rescaldo está por fazer. Ou seja, o luto, o luto da sociedade, está por fazer. E as ajudas ao local vão, também por isso, tardando, deixando correr o agora em que são mesmo urgentes. Em suma, o estado demora-se naquela célebre tarefa de “enterrar os mortos, cuidar dos vivos”. Fá-lo para se salvaguardar, e aos seus dirigentes. Nega-se.

mai

Sobre a questão das vítimas de imediato o “aparelho (ideológico, dizia-se) de estado” produz isto. Neste mês e meio as manobras da administração pública, do governo e dos seus apoiantes têm sido denotativas de uma concepção de exercício do poder. Mas esta ideia dos funcionários políticos de que há um “segredo de justiça” a cobrir as vítimas de um incêndio é um caso extremo, um extraordinário e liminar exemplo de uma ideologia estatista, de uma subalternização da sociedade, dos seus grupos e indivíduos. Acima ponho exemplos que julgo característicos: listas (quantas vezes diárias) de baixas militares publicadas na imprensa em XIX e XX, produzidas em sociedades democráticas. Sim, poderão referir que o episódio de Alamo se inscreve no expansionismo dos EUA, que a I Guerra Mundial foi uma guerra imperialista. Mas o relevante é que já então os mortos eram anunciados, ao ritmo do seu conhecimento e com as possibilidades tecnológicas de então. Em cenários de guerra, nos quais há sempre responsabilidade estatal.

O que vemos agora, em XXI, em Portugal, é exactamente o contrário, o elogio e a prática da opacidade estatal. E estamos a falar de mortos causados numa catástrofe natural, e sobre a qual a administração pública tudo insistiu para alijar responsabilidades próprias. E culminando com isto, com o Estado português, este governo e os seus membros, assessores e apoiantes, a defenderem o segredo de justiça para que os mortos não sejam conhecidos pelo “público”, pelos seus compatriotas. Isto é uma total involução, uma radical negação da democracia.

Tenho milhares de ligações no FB, e tenho-as arrumadas por “grupos” (exs. “Moçambique”, “Olivais”, “Blogs”). A uma dessas categorias chamei-lhe “Antropologia”, e nela conjuguei antropólogos, obviamente, e gente de outras áreas das “humanidades e ciências sociais”. São centenas de pessoas, alguns poucos brasileiros, muitos moçambicanos (tantos deles ex-alunos) e portugueses. É sobre estes últimos que recai agora a minha atenção. Percorri as suas actualizações destes últimos dias. Parte substancial deste universo é activa nas redes sociais, empenhadamente opinativa. Politicamente atenta.

Nenhum deles, repito, nenhum deles, insisto, nenhum deles, aludiu a isto! Sei que é um núcleo social, grosso modo, muito estatista. Por razões sociológicas, até de exercício corporativo. E também da história das ideias, no país e na Europa. Mas isto, este detalhe, é tão sintomático que monumento. Pois nenhum deles, e tão assertivos e opinativos tantos deles são, nenhum deles considerou isto como relevante de notar, partilhar, criticar.

Isto é, de facto, o incêndio dos intelectuais. E as baixas são monumentais. Avassaladoras.

(Postal no "O Flávio")

Atravesso a ponte, a velha, a vermelha, entro em Lisboa, telefono-lhe para jantar, não atende, e assim eu vou sozinho para a Ferreira Durão, onde comecei em casal,  há mais de duas décadas. Agora deslastrei-me todo, torna-viagem demente crente nas virtudes da terra queimada. Sento-me na pequena esplanada como se que a sorver a felicidade que ali foi. Descomo e bebo. Ele telefona. (Vais escrever algo? perguntam-me na celebração de hoje). E vai lá ter. Desjanta comigo. “Borrego …” (e é o único que me chama, ainda, borrego, quem mais me dirá assim, tão assim?) “… o que é que te deu?” pergunta-me, finalmente, que nada disse das últimas vezes que estivemos juntos, na sageza de deixar acalmar o negrume que me invadira.  Resmungo o meu queixume, tão óbvio desatino, e ele “pareces uma gaja a falar“, diz-me. Rio-me, é o meu amigo mais bonito, mais belo, são para aí 40 anos disto de o sermos assim (Não, soluço, é-me próximo demais, respondo, cabeceando já), e tenho que lhe aceitar o juízo. Que é certeiro. Avançamos, paramos na loja de conveniência a comprar uísques, coisa que aqui já não se bebe, só comigo que venho do sul, e vamos para o nosso prédio de sempre, de meninos. Onde o meu pai António já morreu e a minha mãe Marília já não vive. Invadimos a velha casa, agora minha. Andares abaixo dorme, repousada, sua mãe. Nós bebemos com a sede dos adolescentes que já cinquentões ainda somos. (Não sei resumir tudo o que foi, gaguejo). Rimos na madrugada, lágrimas mesmo, da tanta alegria, por assim juntos, e ainda. Vasculha-me os vinis dos meus pais, “A Tebaldi!!, aprendi a ouvir ópera com a tua mãe …” mente-me descaradamente, e confrontamo-la com a Callas, altos berros, para espanto e horror dos octogenários sobreviventes da Bolama (haverão de o referir, semanas depois, os que ainda conseguem reter memórias). Como não?, se é ele o mais belo, o mais bonito, dos meus. Choramos com a Tebaldi, talvez do quanto já bebemos (Com quem mais chorarei árias?, teclo eu agora), decerto porque estamos aqui juntos. E eu porque ele é o mais bonito, o mais belo, dos meus. E ele, estou certo, porque eu sou o borrego dele, para ele (Vais escrever algo? perguntam-me na celebração de hoje) (Não, respondo, é-me próximo demais). Ele, já manhã feita, navega elevador abaixo e eu cambaleio corredor afora até ao borco. Feliz, só agora e só assim, pois ele é mais bonito, o mais belo dos meus (Não sei resumir tudo o que foi, gaguejo). (E choro-me. Imenso, pareces uma gaja, diria ele, naquela sua infinita doçura).

fac

António Cabrita escreve sobre o congresso lisboeta ocorrido na passada semana, dedicado a João Paulo Borges Coelho, escritor moçambicano. Com a sua costela de jornalista nota ele: “É uma vergonha haver um escritor do calibre de Borges Coelho (muito resolutamente um dos melhores no espaço da língua portuguesa) que é contemplado com um congresso internacional – com gente que vinha de Moçambique, Brasil e Estados Unidos [e também, pelo menos, da Alemanha, Angola, Espanha, Itália, Polónia, acrescento eu, jpt] –, e não haver espaço nos jornais para uma notícia, não se ter deslocado um único jornalista para cobrir e divulgar o acontecimento.”.

Eu, que não sou jornalista, noto isso mas noto mais. Borges Coelho é um excelente escritor mas é também um historiador emérito e um vulto fundamental na investigação sobre segurança marítima e as questões políticas do Índico actual. É, na velha acepção do termo, um grande intelectual. É um tétrico sinal de moribundismo local, nacional, muito pior do que mera “vergonha”, que não houvesse alguém presente, pois interessado, vindo das áreas da antropologia, da sociologia, da história (da história de África e não só), das relações internacionais, e etc “e tal”, nem mesmo desses híbridos “estudos africanos” (já para não falar do chamado Camões – Instituto de Cooperação, que desses pouco se pode esperar). E é certo que depois todas essas corporações enchem textos a que chamam papers com referências a algo que dizem “interdisciplinaridade”. Mas para irem ali ao Campo Grande, interdisciplinarem, já lhes falta o arreganho … Um tipo nota isso e há sempre um qualquer boçal, funcionário público da academia, que vem dizer que são afirmações de “ressabiado”, “invejoso” ou “ressentido” (o mais abjecto e básico dos psicologismos, pensamento de cloaca que estes graduados não têm vergonha de publicar, explicitando a indigência própria). Eu notei e referi esta absurda ausência e “explicaram-me” que “ah, sabes, esta altura é de férias, é natural que não apareçam“. Mas de facto as férias são 22 dias úteis, a maioria goza-as em Agosto. Quem está de férias são os alunos, as avaliações terão (na sua maioria) terminado. Deveria ser o melhor momento para fazer encontros, seminários, etc. Mas não é.

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