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Nenhures

Nenhures

02
Abr18

Sem ter esperado à porta do Frágil

jpt

Varinas no Bairro Alto

(Rua da Atalaia, 105. Fotografia de Garcia Nunes, 1969 (AML). Encontrada no blog Lisboa de Antigamente)

A morte de Manuel Reis (ou "do Manel Reis"), acima de tudo pelas reacções que provocou, causou um eixo de resmungos interessantes pela sua origem intelectual. Um artigo no Público de João Miguel Tavares ("Nós, que esperámos à porta do Lux"), simpático com a pessoa mas adverso às reacções, é o mais sonante. Um postal no FB de Alberto Gonçalves e uma série de comentários até ácidos também no FB vindos de gente que escreve, e bem, em blogs, jornais e redes sociais, juntam-se-lhe. Grosso modo, o tom oscila entre o desdenhoso "nunca ouvira falar em tal homem" e a "análise sociológica" invectivando os "elitistas endinheirados" que agora louvam o falecido, ele próprio "elitista". Não tenho eu o saber para arengar sobre as mutações culturais em Lisboa, e no país, nos últimos vinte anos de XX, nas quais o Manel Reis (ou "Manuel Reis") foi "pivot" - mais "pivot" do que "protagonista", tanto por personalidade como pelas características da sua intervenção. Mas interessam-me os implícitos dessas críticas/resmungos, dado o ambiente intelectual do qual provêm.

Desde logo são oriundos de gente que não é lisboeta. E que se depara(ou) com os tiques da capital. A "cagança", como eu dizia em puto, e que vinte anos de emigração me levaram a chamar "blaseísmo", um "ismo" que procura reconhecer uma (espécie de) ideologia de nacos da classe média lisboeta, em particular nos nichos das "indústrias culturais e educacionais" e em "quadros do funcionalismo público" com aquelas interligados. Pois viver fora deu-me para ainda mais lhes reconhecer os tiques, que os próprios lisboetas impercebem (e negam, se lhos digo): o aparente flanar, que nada flana, que de facto é gente arado, sulcando a "terra" que querem património; este ligeiro arrastar da voz e o encenado esvoaçar do olhar, ambos desfixando interlocutores; o másculo cumprimento "um abraço", prenunciando vigorosas palmadas nas costas, mas que de facto nada mais é do que o adamado "não me toques"; a patética despedida "temos que ir almoçar" que, na realidade, soa "espero bem não te ver mais ...". E um sem-número de pequenos (e não tão pequenos) detalhes que mostram uma "sociedade" (uma cultura comportamental) de pequenos grupos solidários, tendencialmente enquistados, entre-demarcando-se em feroz compita por escassos recursos estatutários (e assim económicos). Coisa que os emigrantes tanto reconhecem quando (por) cá. Tal como, pelos vistos, também o reconhecem os não-lisboetas, tantas vezes ditos "provincianos". De facto, trata-se de uma adversidade ao ideal de uma "sociedade aberta", aquela que alguns (poucos?) sonham e pela qual alguns (ainda menos?) pugnam. Daí um mal-estar face ao "estado da arte" na "pequena Lisboa", que sumarizo citando a grande antropóloga Mary Douglas: "This world we are in still longs for sincerity, and for simple and direct dealings between equals. It still rejects the outward forms of social distinction, and still finds that differences of power and wealth are as effective as barriers to direct communication as ever" (Natural Symbols, 1996, xii - o livro está mesmo aqui ao meu lado, apeteceu-me citá-lo).

Ok, será muito esse mal-estar que leva alguns  a resmungarem com as sentidas loas tecidas por estes lisboetas agora de  meia-idade ao homem que tanto mudou a paisagem cultural, e a maneira de estar e de aparentar estar na Lisboa pós-1980. Mas o engraçado são os implícitos ideológicos que mostram. Os locutores a que me refiro são todos abarcáveis pelas etiquetas "centro" ou "direita" ou "liberais". E nesse sentido é relevante, e até surpreendente, perceber os implícitos que manuseiam. Por um lado, é óbvio um estatismo subliminar. O meu raciocínio é contra-factual, e assim é fácil de negar, mas é tão cristalino que a desvalorização de Manuel Reis ("do Manel Reis") advém do facto ter sido um "empreendedor" (como agora se diz), dinamizador privado de locais e de actividades com efeitos estruturantes, e com dimensões mecenáticas. Se nesse âmbito tivesse, por absurdo que fosse para quem o conheceu, assumido funções estatais (por exemplo secretário de estado ou vereador da cultura), a sua menorização agora recorrente não surgiria. Mas o homem foi "apenas" um privado.

No mesmo âmbito, há um institucionalismo subliminar: tivesse ele fundado uma fundação, ou entrado numa outra existente, ou sido presidente de uma qualquer associação comercial (uma espécie de CIP ou CAP)? Tivesse sido vulto oficial da Europália ou da Lisboa Capital da Cultura, soturno administrador da Expo-98? Com toda a certeza que não o menorizariam tanto. Ou seja, se a então célebre "movida" madrilena (o "Madrid me mata") patrocinada pelo município (o carismático Tierno Gálvan) tinha a "patine" estatal e institucional, assim "nacional", a bem mais modesta lisboeta girou em torno de alguns "pivots", nos quais sobressaiu o agora falecido Manel Reis. E isso, a estes críticos, e apesar deles-próprios, retira-lhe brilho.

Em segundo lugar, há um pungente e surpreendente (pobre)marxismo, uma vulgata classista resumida no "ricos" vs "pobres". As imprecações contra os "endinheirados" "lisboetas", "elitistas" (aqueles que não esperavam à porta do Frágil ou do Lux) que agora lamentam a morte do seu "guru" ou "xamã" não colhe com a realidade de então. Que um jovem caloiro recém-chegado a Lisboa em 1985 ou 1990 desabafasse isso, impedido de entrar num pequeno bar-discoteca, porque desconhecido da casa, tinha todo o cabimento. Que um intelectual o repita em 2018 é uma patetice. Pois é uma profunda ignorância, e não só do que aconteceu na altura. Pois é também uma recusa da análise sociológica, do que era o Portugal de então. Uma sociedade pobre, causticada pelas obrigações impostas pelo FMI (simbolizado por Ernâni Lopes, então demonizado pela esquerda como o foi agora Vítor Gaspar, e que tantos elogios colheu aquando da sua recente morte, o que nos deveria fazer pensar um bocado sobre o governo de PPC). Uma sociedade muito piramidal - o Frágil abriu apenas 8 anos depois do 25 de Abril e quatro anos antes da enxurrada de fundos com a entrada na CEE. E muito estratificada. Era, sim, uma sociedade de privilégios (e de imensos desprivilégios). Quem frequentou aquele Bairro Alto renovado, e uns anos depois desceu para perto do rio (o "Plateau", o "Metalúrgica", o "Bar do Rio", etc.) não era uma elite económica e cultural, os "endinheirados" "elitistas". Eram os filhos da "pequena-burguesia" (a classe média "média", como agora se dirá). Gente dos subúrbios, como nós dos Olivais, ou os de Benfica, ou os filhos do funcionalismo público das Avenidas Novas, etc. E, logo a seguir, ainda nos 80s, a malta que vinha, para nosso espanto, da "outra banda". Era uma sociedade piramidal, ainda não tinha havido a massificação escolar, quem andava por lá pertenceria à franja dos universitários ou, pelo menos, dos que acabavam o liceu, gente das artes e da imprensa ou que a isso aspirava - ou seja, estudantes e gente dos ofícios. Mas esse universo não era o dos "endinheirados", os "ricos", os "privilegiados". E, muito menos, a "elite". Ainda que muitos a quisessem integrar, sonho em todas as gerações, e que alguns muito tenham feito por isso. Seria sim, quanto muito, e grosso modo, o dos "remediados". A tal "classe média", contra a qual não se usam agora similares impropérios, e tão melhor vive ela agora do que no dealbar dos 1980s.

Em terceiro lugar, estes resmungos mostram um desprezo pela história social, e das práticas culturais. A foto acima mostra a célebre Rua da Atalaia em 1969. O Bairro Alto que eu conheci em 1982 foi o da Tasca Azul (o nome oficial era "Arroz Doce"), defronte ao Frágil e propriedade da "Tia" Alice, irmã do Alfredo, o célebre guardião do Frágil (e depois do Lux), um camionista insone que fazia os turnos da noite defronte à porta e guiava de dia. A Tasca Azul que conheci era ainda aquela em que nos sentávamos a beber bebidas escabrosas, vínhamos cá fumar cigarros também escabrosos, e onde, naquela bruma, víamos as mulheres dali, velhas (para nós), gastas, de anca larga, deixar as malas na arca "frigorifica" quando os homens dali as vinham buscar. Para depois voltarem. Abrir ali um bar novo, diferente, exigia mudar o ambiente, escolher o universo da clientela. O que encetou a "gentrificação" (como se diz agora) da actividade comercial do bairro - então hiper-decadente (a qual, uma década depois, se repopularizou, em outros moldes, de anárquica venda de álcool diante da complacência inerte do município). Promovendo uma enorme mudança naquele bairro, na forma como os lisboetas (e vizinhos) olhavam e viviam o(s) bairro(s) histórico(s). Uma década antes da Europália, ainda mais antes da "Capital Europeia da Cultura". E, também, nos tais apenas 8 anos depois do 25 de Abril, do fim do "Deus, Pátria, Autoridade", nas formas como os lisboetas se comportavam, na festa, no namoro, nas cumplicidades, na convivência. Até na "conspiração", então já a dos famigerados "projectos", na elaboração dos "conceitos" (quem é que não tinha, no final dos anos 1980s, um "conceito" próprio para desenvolver?um irritante jargão a esconder o cinzento vácuo e a embrulhar a saudável ambição). No ser e, fundamentalmente, no aparentar ser, essa coisa tão importante. E isso foi uma "revolução" - porque, por mais que os intelectuais portugueses deste XXI queiram, as "revoluções" não são apenas as tomadas do "Palácio de Inverno" ou as decapitações das "Marias Antonietas".

Ok, um tipo quando fala do que viveu com prazer, mesmo que eu fosse apenas um puto anónimo (e muito desajeitado), que teve a sorte de ter uns belos amigos lá nos Olivais, que abriam portas dado o seu brilho público de então (alguns mantiveram-no, outros têm-no entre nós), tem a tendência para dulcificar o ido. Até para o saudosismo. Mas não virá grande mal ao mundo.

Agora grande mal a este mundo vem quando os intelectuais. felizmente libertos da cartilha (pós)marxista dominante, surgem, até inconscientemente, brandindo os nada liberais ressentimentos regionalistas, o estatismo e o institucionalismo, a refutação da análise sociológica, os contributos da história social e cultural, esta que tantos mitos desmonta. E nisso se deixam pensar sob os (transviados) laivos do velho humanismo, isso de um mundo de "ricos" vs. "pobres". Esses condimentos metidos no mesmo caldeirão dão para um manjar que teve um nome no pantagruel político: fascismo.

Conviria que, lá porque não se entrou no Frágil (ou no Lux, no caso dos mais-novos), não se pensasse tão mal.

(Postal no "O Flávio")

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