De Agustina Bessa-Luís o único livro que li foi Sebastião José. Teria mais ou menos vinte anos. Não gostei - pior, lembro ainda a edição feia e desconfortável da Imprensa Nacional mas nada do seu conteúdo. Na década seguinte, tão elogiada seguia a autora, tentei outros. A todos larguei, desinteressado. "Não é o meu mundo" resmungaria depois, quando dela, da sua obra, alguns me falavam. Mas sem com isso querer significar o que se diz dos seus livros, que ancorados num meio social lá nas cercanias da foz do Douro, pois sempre pouco relevante é o que o escritor ecoa, o interessante é o como refracta, rearranja. Ou seja, o tal cerca da foz do Douro é muito mais o meu mundo - literalmente falando - do que Saigão de Fowler, com o qual Greene me anunciara antes de calcorrear eu esse fastidioso Sebastião José e outros excertos abandonados. Nem o meu mundo era, foi ou é, os mares tempestuosos navegados por Macwhirr, esse com o qual Conrad profetizou como ninguém este XXI. Nem o cérebro de Borges, que chegou à verdade. Nem a Roma de Yourcenar ou o veld de Coetzee ou uma praia magrebina excessivamente soalheira ou o sopé de um vulcão mexicano ou a coragem infinda do tão frágil Jack London, ou um punhado de outros "mundos" que eu lera nesse quinquénio tardo-adolescente, fazendo-me, ou que viria ainda a ler, recebendo-o como se com aquela impressionável idade (Coetzee, claro). Pois esse "mundo" que não é o meu é o gosto - não gostei, não gostava.
As décadas passaram - há pelos menos 25 anos que não abria um livro de Agustina Bessa-Luís, e sei-o bem, que estou a menos de um mês de poder dizer que há vinte e cinco anos fiz trinta anos, e é assustador dizê-lo. Agora a escritora morreu. E acorrem elogios imensos, vindos de personalidades que respeito. "Genial", repetem, "a maior" completam. Frederico Lourenço escreve (no FB) que em jovem desgostava pois sentia falha a arquitectura literária mas que Bénard da Costa lhe ensinou que isso de nada interessa. Se dois vultos destes (e que vultos!) o dizem ... é tempo, passado tanto tempo, de voltar a tentar lê-la, talvez possa, agora mais maduro (?), apreendê-la.
Aqui há poucos livros em casa, três estantes, quase tudo entretanto comprado - pois na partida de Maputo a tralha foi para Lisboa, por lá se acumula a livralhada, em quartos, corredor e cave. Ainda assim há cá um livro "da Agustina", como dizem os cultores, nisso significando a proximidade espiritual, o estatuto de leitor. É o A Quinta Essência, não muito falado - o que não surpreende, tamanha a produção da autora, uma coisa verdadeiramente hercúlea! Tomo alento através da contracapa, da badana, de uma recensão e até de um artigo académico (póscolonial). A trama promete, o desconforto com o 25 de Abril, a ida para Macau (pré-aeroporto) em vingança com o PREC, etc. Entretanto noto que no "Público" um dos autores mais consagrados da "nova geração" (os tipos que ainda não são velhos) a diz "a maior escritora de sempre de língua portuguesa" (o feminino excluirá os homens? ou não, como determina o "falar" actual?). E aduz que é ela, a autora, que escolhe os leitores, uma distinção intelectual (vedada aos mais simplórios, obviamente) para os que não procuram uma "história contadinha de forma certinha." No mesmo Público outro autor, "escritor, poeta" (que definição tão estranha, talvez mesmo falhada ...) e também humorista, diz que a leitura "exige um envolvimento", e nisso deixa implícito que isso não será para todos, percebo-o.
Estou assim preparado e avanço, na sincera esperança de gostar, de me "envolver", de "ser escolhido". Leio o primeiro capítulo, "Um ladrão em casa", 48 páginas. Fico estupefacto. Melhor dizendo, vou ficando estupefacto ao longo das páginas - um estupor, dirão os "escolhidos". Pois é uma redacção. Nem é isso do narrador ser plural e individual, tropeção que será coisa de pouca monta, e ainda menos aquilo da mana Bete a tratar o protagonista na terceira pessoa (e por "menino") mas na segunda pessoa no período exactamente anterior, ou da mulher de um alto funcionário em Hong Kong (ela mesmo) correr o mundo mas nunca ter ido a Macau, e esta é ainda menos, pois coisas incongruentes que apenas beliscam aquele pacto do leitor, "não escolhível", de acreditar no que lê, até porque ela prefere o mano Tomás mas também o mano José Carlos, etc. e tal. Nem é o fazer resumos, "pontos de situação" melhor dizendo - "escrita selvagem a la Dostoiévski", sobre ela também acabo de ler. (E muito menos o "acessor" da página 26 que os revisores da Guimarães Editora deixaram passar apesar desta ser a 5ª edição do livro). Pois isso tudo nem é a tal "arquitectura", serão rodapés, ou mesmo meras rugas ou verrugas de um texto. O que desilude mesmo é aquilo da família apresentada, os Pessanha (ou Santos Pastor), mais o incongruente "ladrão em casa", serem estereótipos. Esboçados apenas, ali no descuido (apressado?, altaneiro?) de quem terá muito para dizer, e decerto que o tem (teve) a crer nos elogios que recebe(u).
Devo eu continuar a ler, passar ao segundo capítulo, quando José Carlos Pessanha, ou Fernandes, como se preferir, avança para Macau (o tal Macau pré-aeroporto)? Devo envolver-me, frisando pertencer aos "escolhidos" pela autora? Hesito, pois o livro tem 374 páginas. Devo continuar e blogar o elogio final, para me mostrar dentro dos tais "escolhidos"? Devo devolver o livro à estante e calar-me, tão mal, tão "baixa classe" parece não conseguir "o envolvimento"? Fecho o livro, passo à banda desenhada. Amanhã (hoje) será outro dia, como se disse no velho cinema.
Na manhã seguinte, o tal hoje, leio Alexandra Lucas Coelho, um bonito texto bastante elogioso sobre a autora. E que me acalma a dúvida. Pois dela diz "Os livros deixavam de lhe interessar no momento em que acabava de os manuscrever, sempre em pouco tempo. Raro emendava, não revia, não deixava marinar, seguia para o próximo." É isso mesmo, raiosparta, a tal sensação que tive, a de ler uma redacção - "blasfémia" dirão os fundamentalistas, "preterido" dirão os seleccionados - cheia de ideias para um livro mas carregadinha de desconseguimentos. Coisas bem mais do que meras imperfeições.
Decido continuar, a tentar aspergir-me, decido. Mas ao reabrir o livro atento na marca que nele deixara. Aqui: "Bete estava um pouco alegre, como se dizia em família, o que queria significar que se embriagara, bebericando whisky puro. Os amigos ingleses, ainda que raros, diziam "intoxicar-se" quando estavam simplesmente bêbedos. Bete tinha o snobismo de só privar com ingleses e adoptar os seus costumes, o chá com leite e a jardinagem [já agora, casara com um, podia vir a propósito referi-lo, digo eu, jpt]. Humilhava os criados diante de toda a gente, o que era possivelmente um traço colonialista. Depois compensava-os largamente." (50). Devo, pergunto-me afinal, deixar-me "intoxicar" com tamanho potlatch de advérbios de modo? Com esta escrita? Não, decido. Que José Carlos Fernandes, ou Pessanha, descendente do Santos Pastor bom, tenha tido o seu sucesso ou insucesso em Macau, e que com isso, nisso, a mundividência demiúrgica tenha soado. Mas não será meu assunto, não é a minha forma. E sigo para outro recanto da (pequena) estante.
Quanto voltar a Portugal lá irei às estantes, gavetas e prateleiras, à procura. Tentar, via Sibila ou similar, ascender aos "escolhidos". Mas, por enquanto, nem pensar. Ficarei neste pobre rebanho dos que querem "histórias contadinhas de forma bem certinha". Pastando, apartado dos seleccionados.