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Dizem os entendidos, e nisso deverão ter razão, que o melhor Craverinha foi o de mais tardia publicação, e de mais íntima verve (o livro "Maria", em seu torno), assim algo desvalorizando, pelo menos comparativamente, as suas primeiras e mais programáticas décadas, aqueles de "Manifesto", o da proclamação da legitimidade cultural e política local. Será, repito, talvez verdade. Mas regresso ao Xigubo, ao velho Craveirinha, então mais novo, claro. E há nacos de uma sapiência ...
"Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos / e na minha boca diluem o abstracto / sabor da carne de hóstias em milionésimas / circunferências hipóteses católicas de pão. / E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo / vendem-me a sua desinfectante benção ... / Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço / em rodelas de latão em vez dos meus autênticos / mutovanas da chuva e da fecundidade das virgens / do ciúme e da colheita de amendoim novo."
É este um trecho do seu célebre - e ideologizado dirão os "estetas" de hoje - "África". Escrito lá pelos anos 1950s, presumo. Informo os que não sabem que "mutovana" é um amuleto. E que quase 70 anos depois continua a ser raro - entre boreais e austrais - quem diga, escreva ou pense algo assim. Principalmente lá pelo sul, cada vez com mais crendices cristãs e/ou corânicas. Mas também muito pelo norte.
Em 1999 o incansável António Sopa organizou este curioso pequeno livro duplo: "Contacto e Outras Crónicas" e, do outro lado em formato invertido, "A Seca e Outros Textos" de Rui Knopfli - uma glosa do "verso e anverso" que os dois autores seriam, mutuamente -, duas colecções de textos, textos de opinião de Craveirinha, idem e breves contos de Knopfli, publicados nas décadas de 50 e 60.
Releio bocados - francamente, pouco me diz este Knopfli, bem diferente de quando poeta. Mas Craveirinha? Ui, aguçado como lhe eram as unhas (alguém se lembrará das suas enormes e tratadas unhas?).
Deixo três breves citações, com dedicatórias. A primeira (de 1957) para todos. A segunda (também de 1957) para os sacralizadores lusos no "empreendedorismo" turístico - e lembrando-os que o texto é do poeta nacional moçambicano, que entre outras coisas esteve preso 4 anos por ser independentista; a terceira (de 1964) - que será necessário extrapolar - vai para os gauchistes multiculturalistas, mais ou menos pós-modernos pós-coloniais. E lembrando-lhes a mesma coisa. Se, claro, forem capazes de simples acto intelectual da extrapolação - coisa que, neste país carregadinho de académicos racialistas, muito duvido.
- "Oh, missão ingrata esta, a de escrever verdades" (p. 19).
- "Todos nós sabemos que Lourenço Marques é das cidades mais visitadas por turistas sul-africanos ... Quando se faz turismo não se pretende encontrar fora da terra natal o que se nos tornou banal na nossa. Se não, qual o atractivo do turismo? ... Não se requer subserviência de idioma ... Os barbeiros, cabeleireiros, alfaiates, hoteleiros e outros que tais, estão menosprezando a esperteza do forasteiro, dando-lhe facilidades a mais na vida. Vamos puxar pelos seus reflexos, fazê-lo descobrir a bela língua portuguesa; língua bonita, língua com história ... Escrevendo os letreiros somente em português continuamos amigos à mesma; a diferença é que passamos a dar ao que é nosso o justo valor: o valor das coisas que nos pertencem e fazem parte cá da Casa. Casa esta que é nossa." (em "Barber's shop, boarding house, ice-cream today e outras barbaridades", pp. 21-22).
- "E é crença de muitos esclarecidos que uma temática estritamente enraízada no folclore de Moçambique só poderá ser interpretada por indivíduos de cor. Não." (em "Canção da Angónia", um elogio a Gouvêa Lemos, p. 25) - e, já agora, se me aparecer aqui algum intelectual a apoucar o uso da palavra "folclore" saiba de antemão que deve é ir estudar em vez de se "armar aos cucos".
Voltar a casa, após um ano. É voltar às estantes, militantemente desarrumá-las, ler bocados, livros a reler, recomeçar os abandonados, reesquecer os esquecidos. Depois, uns dias depois do tal regresso, acampei aqui, esteira e tudo, debaixo das estantes moçambicanas. Reabri e releio, entre tanta outra coisa, dois livros de entrevistas a escritores moçambicanos (melhor dizer, de Moçambique), ambos publicados em 1998, este "Encontro com Escritores" de Michel Laban, 3 volumes, e o "Os Habitantes da Memória", de Nelson Saúte.
Ambos começam com Aníbal Aleluia, o qual infelizmente nunca conheci, falecido antes de eu chegar a Moçambique pela primeira vez. Grande verve, excelente pensamento, e modo absolutamente excêntrico no país. Noto que perdi o seu MBelele e Outros Contos - e irrito-me comigo mesmo, pois é o tipo de livro que dificilmente reencontrarei, num mundo em que abunda tralha "autorada" por gente iletrada e Aleluia não é reeditado. Será lido? Mas vejo via motores de busca, e assim me "des-irrito", que o Nelson Saúte escreveu, e bem, há pouco um "Elogio a Aníbal Aleluia" - que assim recomendo.
Vou agora reler o seu curto "O Gajo e os Outros", o que dele me ficou. E deixo duas citações das suas entrevistas, que muito mostram o perfil: do intelectual e do cidadão. Decerto que foi daqueles homens, inquietos, com quem se aprende. Ao contrário de tantos simpáticos que para aí andam, perorando:
"Fui marcado por um tal de Romão Félix que, sob o pseudónimo de Parafuso, utilizou o método dos blackface minstrels usando um pseudo-linguajar de negro a que muito racicamente chamavam de "pretoguês" para fazer pouco, principalmente, do negro evoluído. Epígonos de Parafusos e macaqueadores de vária espécie recuperam esse linguajar que o nosso poeta nacional [Presumo que Aleluia se refira a Craveirinha] escalpelizou um dia. Na onda de desvios e anfibologias oraculizantes surgem os espíritos levianos e dão-se as mãos em elogios mútuos num cabotinismo concertado. E é assim que esses movimentos parecem vingar, até que um dia apareça um inocente a mostrar a nudez do rei. A tristeza é quando aqueles que de facto têm jeito e sabem distinguir os caminhos a percorrer batem palmadinhas nas costas dos imitadores desajeitados" (em Nelson Saúte, Os Habitantes da Memória, p. 29).
E depois (em Michel Laban, Moçambique: Encontro com Escritores, 37) ao apropriar-se de Guerra Junqueiro para referir a sua terra de então. Mas um dito que devemos reclamar de volta, pois radicalmente nosso, não sei dos outros: "Isso que para ai está é uma bacanal de percevejos numa enxerga podre”.
Anteontem, quarta-feira 31 de Julho, Pedro Ayres de Magalhães fez sessenta anos. Um mero aniversário, uma alheia idade redonda, poder-se-ia dizer. Mas este tem um significado especial, anuncia que a minha geração passou assim, oficialmente, a sexagenária. Pois se Pedro Ayres nunca foi um "homem da frente" - o "front man" da mística rockeira - foi, de facto, o "homem do leme" da geração subsequente ao 25 de Abril. Não me vou por aqui a botar sobre ele: nem o conheço pessoalmente nem sou especialista em música. Mais vale escutá-lo (entrevista radiofónica) ou lê-lo (entrevista à revista Sábado; entrevista ao jornal i). Dizem-me que Edgar Pêra sobre ele fez um filme, mas ainda não vi.
Fico-me pelo registo: um tipo que andou na linha da frente do punk em Portugal (aqui deixo ligação para "Bastardos", um documentário sobre o punk português), desde os seus Faíscas, e seguindo para o grupo iconoclasta Corpo Diplomático. Eram tempos bem diversos - e aconselho mesmo as suas entrevistas, para se entender em particular o universo rural com que estes urbanos se deparavam, o tão diferente país de então, ainda espartilhado e sofrendo as mágoas das guerras coloniais recém-findas. Depois foi a alma-mãe dos Heróis do Mar, que tantos disseram - e continuariam a dizer, se se lembrassem de efemérides ou similares - como fascistas: quando de facto os Heróis anteciparam os anos 90s, esses que só terminaram em 2004, o reencontro do país Portugal consigo próprio e a sua celebração, passada que fora a era do país pária. Uma nação, história e identidade que comemoravam - mesmo que hoje o seu som surja imensamente datado, como "pop" que era -, enquanto também cantavam "este país é uma prisão", no afã de pontapear o provincianismo então hiper-dominante, sufocante mesmo. É certo que os hinos que ficaram dessa era foram os dos Xutos mas a atitude que frutificou nesses anos 1980s foi, em parte - e tão bom seria que mais tivesse sido -, a dos Heróis. Entenda-se, a de Pedro Ayres.
Muito se celebra agora António Variações, feito ícone. Convirá então lembrar que foi Ayres de Magalhães (e o seu quase constante parceiro Carlos Maria Trindade) que lhe produziu o disco final. Como ainda foi ele que, através do Resistência, congregou repertórios e músicos - não só de diferentes estilos mas, algo tão difícil naquele tempo de cesuras constantes, também de diferentes aparências políticas. Assim concertando Portugal. Depois foi ele o verdadeiro Pigmalião do Madredeus, esculpindo não só a cantora mas também repertório e trajecto. E com este internacionalizando a música popular portuguesa, reabrindo caminhos (que décadas antes Amália havia percorrido sem deixar sucessores), os quais vieram depois a ser seguidos, ainda que sem o seu brilho, por artistas como Mariza ou Dulce Pontes.
É um trajecto musical fantástico, feito sem cedências ao meios dominantes, muito radicado num individualismo - meritocrático, parece-me. É diante disto que continuo a repetir, Ayres de Magalhães é o homem da nossa geração que maior impacto cultural teve no país. Tem tido. A alumiar. Obrigado. Parabéns. Que venham mais anos, com saúde e sucessos.
(Faíscas Punk Rock Português)
(Corpo Diplomático, Kayatronic)
(Heróis do Mar, Amor)
(Pedro Ayres Magalhães, Ocidente Infernal)
(Resistência, Amanhã é Sempre Longe Demais)
(António Variações, Dar e Receber)
(Madredeus, Haja o Que Houver)
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