Postal ilustrado para a Vera (1): o corredor
Passou já um quarto de século! Em 1994 trabalhei uns meses na preparação das eleições na África do Sul, aquelas nas quais Mandela e o ANC ascenderam ao poder. Foi o histórico e esfuziante fim do apartheid. E para nós, estrangeiros, também sublinhava a época, essa da crença num futuro ainda assim melhor, o da imperfeição democrática, derrubados que haviam sido os fascismos sul-americanos e os comunismos europeus, chegados os "tigres asiáticos" mais desempoeirados e abanadas as ditaduras africanas, naquilo do "ajustamento estrutural", não tão santo assim, mas isso só o viríamos a perceber depois ...
Integrei um pequeno grupo de observadores colocado no Cabo Oriental, num corredor a que então chamavam "Border", encastrado entre os bantustões Ciskei e Transkei, nominalmente independentes, um naco de terra fértil, coroado com a maravilhosa Hogsback, da qual se diz ter Tolkien retirado inspiração para criar o seu universo ficcional, e culminado com East London, rica cidade pois melhor porto índico do país. Entre o pequeno grupo de colegas logo a maioria se acomodou naquele plácido burgo, congregando-se numa até modorrenta sucessão de visitas às actividades pré-eleitorais decorridas nas suas imediatas ... imediações. E, sendo franco, pois tanto tempo já passado, na fruição das aprazíveis instalações de veraneio que East London tinha.
Nestas missões trabalha-se em pares. Tive a sorte de me ter calhado como parceiro um enérgico francês, vindo de uma missão de dois anos na guerra na Jugoslávia, na qual trabalhara para a Cruz Vermelha. D. e eu logo fizemos para nos baldarmos a esse remanso, tão desejado pelos tais colegas. Assim, e para contentamento de todos, ficámos encarregues de acompanhar o que se passava nas "townships" circundantes, e também no Ciskei e no sul do Transkei. As distâncias eram grandes, as jornadas decorriam em ritmo frenético. A experiência foi fabulosa.
Éramos jovens, bebíamos muito, dormíamos quase nada. Deitávamo-nos tardíssimo, madrugávamos de noite, mata-bichávamos bifes tártaros, com o ovo cru, e partíamos no nosso pequeno VW Citi 1800, voando até, pois isentos de limites de velocidade por sermos observadores eleitorais. Lembro-me de dizer a D. ser ele o homem em quem mais confiava no mundo, pois adormecia no "lugar do morto" a mais de 180 kms/h naquele carrito. Pois se eu guiava depressa, ele fazia-o ainda mais. Assim, e sem exagero, "íamos a todas".
Assistíamos a reuniões políticas, era essa a nossa função, o de "mostrar a bandeira", a da U.E., nisso a todos confirmando estar a "comunidade internacional" presente, para assegurar uma eleição "livre e justa", sem incidentes nem violências. Foram centenas naqueles trepidantes três meses: vi Mandela no Ciskei, um dia maravilhoso, Mbeki e Ramaphosa, os dois anunciados vices, FW, Winnie - que mulher!, que carisma ... Holomisa, o homem do Transkei, e a queda de Gkozo, o homem do Ciskei (bloguei pequenas memórias disso aqui). E imensas outras, pequenas, de cariz local. A logística era sempre igual: na véspera sabíamos as reuniões (comícios ou afins - ninguém dizia "arruada" naquele tempo) previstas e seguíamos desde a madrugada. À chegada éramos aguardados por "comités locais de paz", gente de organizações não-governamentais que nos enquadravam, tanto para questões da nossa segurança como para nos servirem de intérpretes. Claro, nem sempre existiam esses "comités", mas sempre alguém nos acolhia.
Nessas manifestações as únicas verdadeiramente difíceis eram as do Pan-African Congress. Histórico movimento de resistência anti-colonos e anti-apartheid, o partido estava então submerso à enorme vaga Mandela/ANC, como os resultados eleitorais vieram a mostrar. Tratava-se de um partido m-l radicalizadíssimo, profundamente racista e, ainda que na época isso não fosse assunto de agenda, visceralmente homofóbico - sob a tese muito espalhada de que a homossexualidade é excêntrica aos africanos, entenda-se pretos, e uma maleita dos brancos, a extirpar. Os seus comícios, nos quais nunca havia qualquer "comité" de acompanhamento, decorriam nas paupérrimas "townships" e nos tétricos "informal settlements", tinham sempre escassos participantes, estes nada amistosos, para não dizer mais, com os brancos estrangeiros que ali apareciam. O partido tinha dois motes muito peculiares: mantinha o cântico/slogan "one settler, one bullet", a convocatória ao assassinato de todos os brancos no território, o que nos fazia algo desconfortáveis, e defendia a mudança do nome do país para Azânia. Enfim, se visitar sozinhos essas paupérrimas áreas residenciais era já bastante enervante, tanto nos avisavam dos perigos que corríamos e nos desaconselhavam a fazê-lo, entrar naqueles comícios e enfrentar a rudeza dos aglomerados era algo custoso. Íamos, dávamos uma volta, mostrávamos que ali estávamos, calculávamos os participantes e outros itens requeridos para os relatórios, e logo partíamos, sempre bastante desconfortados. Para não dizer outra coisa.
Os meses passaram, as eleições correram, o PAC teve um resultado ínfimo. Mandela chegou ao poder. Após a contagem dos votos parti dali, fiz a Garden Route pela minha primeira vez e cheguei ao Cabo ainda a tempo de acompanhar o seu empossamento como Presidente da África do Sul. Glorioso momento.
Logo voltei a Portugal. Dois dias depois de chegar fui à universidade, pois estava então a fazer um mestrado e a preparar a minha partida para Moçambique para trabalho de campo, o qual adiara exactamente por causa desta missão. Logo no corredor de entrada encontrei um professor, homem conhecido e cidadão activista. De modo simpático, até enfático, dirigiu-se-me e disse "Flávio (que era o meu nome de escola), soube que estiveste na Azânia!". E lembro-me exactamente do que pensei: "Fogo, branco e homossexual eras o primeiro" (a ser abatido, entenda-se). Mas é óbvio que não lhe disse isso, para quê? Apenas lhe respondi "Não, estive na África do Sul ...". E segui à minha vida.
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Vera, minha querida amiga, e até co-bloguista, partilho contigo esta mera historieta, e já tão antiga, que me veio agora à memória. Decerto que pelos dias que correm e algumas pessoas que discorrem. Não tu, que assim fosse nunca o faria deste modo público e até enviesado. Esta história não me serve de trampolim para tentar compreender a tão complexa África do Sul, nem fenómenos como Malema, as lutas de poder no país, o historial da propriedade fundiária ali ou nos países vizinhos, ou tantos outros assuntos, e muito menos para a decalcar para o resto do mundo. É mesmo só uma memória pessoal, talvez pouco significante. Mas partilho-a contigo, agora, um quarto de século passado, porque me ocorre algo bem diverso: é óbvio que se podem tirar as pessoas do corredor. Mas a algumas pessoas não se lhes tira o corredor. Pois este é muito confortável.
Beijos, bom campo ...