Por um referendo nos Olivais
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Anteontem o Flamengo ganhou. Creio que a esmagadora maioria dos portugueses que gostam de futebol, polémicas à parte, dichotes esquecidos, torceram pelo Jesus e festejaram os feitos do peculiar e brilhante treinador. Benfiquistas e sportinguistas em particular, unidos na bola pelo JJ. Essa comunhão nacional foi logo saudada pelos políticos, PR à frente - e bem.
Talvez isso sublinhe ainda mais este episódio, que o Pedro Correia muito bem titula de "inqualificável". Esta semana na AR foi proposto um voto solidário com Bernardo Silva, acusado de racismo e castigado pela corporação inglesa de futebol (Liga), o colégio do patronato. A acusação é vil, a sentença injusta e os danos morais (e reputacionais) grandes. A arrogância patronal óbvia. Fui ler o texto da moção solidária com o jogador internacional - é absolutamente liso, sem "sub-texto", como tantas vezes estas moções têm. Diz da necessidade de combater o racismo no desporto. E salvaguarda Silva, dizendo da incorrecta acusação e sua decente personalidade - e quem tem ligações ao mundo do futebol (e na AR há quem tenha) sabe que isso é bem verdade, Bernardo Silva é um campeão muito peculiar, na sua robusta personalidade, que o torna particularmente querido. E, de facto, socialmente exemplar.
Mas o voto de solidariedade com o futebolista e de crítica ao patronato do futebol inglês foi chumbado. Pelo BE e pelo PS. A propósito de quê?, com que fundamentos?
Hoje, com toda a certeza, o secretário-geral do PS e tantos dos seus militantes mais conhecidos, andarão a louvar o outro campeão da bola, Jesus, a associarem-se à alegria do povo. Amanhã, caso o Manchester City ganhe troféus relevantes (a Liga dos Campeões, por exemplo), lá virá Costa fazer o mesmo, saudar Silva. E lá aparecerão nos jardins de São Bento, a coordenadora Martins e o sec-geral Costa em particular, a receberem a selecção antes do próximo Europeu. E, nesse dia, com toda a certeza se o Diabo não vier a tecer lesões, recebendo então Bernardo Silva, o magnífico jogador.
A hipocrisia desta gente é enorme. Tanta que até funciona quando é desnecessária, mero reflexo. Da sua natureza. Vil.
(A Oeste do Canal: Textos Sobre Moçambique)
Se eu pudesse publicar um livro seria mais ou menos este. Há vários anos colocara na minha conta na rede Academia.edu uma colecção de textos. Agora mantive-lhe o nome mas mudei o conteúdo:
"A Oeste do Canal" é uma colecção de 64 textos meus escritos entre 2003 e 2017: apresentações de livros, textos para catálogos de exposições, comemorações de efemérides, textos para premiações de júris aos quais pertencera, artigos de jornal, notas de leitura sobre livros menos conhecidos, algumas cenas da vida do país, entre as quais breve análise das manifestações em Maputo. E, mais do que tudo, sobre amigos, vários dos quais escritos aquando da sua morte, forma de os ir lembrando.
Aos que se possam interessar: basta pressionar a ligação que acima deixo e gravar o pdf. Se depois ainda tiverdes a gentileza de ler ficarei muito agradecido.
Muito faço este gesto. Não, não sou um "supremacista branco", mesmo que deteste visceralmente aquele partido tribalista do doutor Tavares, tão do apreço de alguns antropólogos portugueses (e até, para minha dor, de amiga antropóloga). E de quejanda tralha socratista.
Faço-o, ao gesto, expressando filosóficos "que pitéu!", "que belo uísque!!", "de chorar por mais ...". Ou coloquiais "na mouche", "óptimo!", "certo!", "impecável", "isso mesmo". Pois é esse o seu antigo significado, canónico, o tal galicismo "na mouche": "no alvo!, arqueiro". Ou seja, aquilo a que os que falam (e pensam) por onomatopeias clamam "OK".
Hoje há por aqui uns pândegos, senhoras finórias e rapazes de teclado espigadote, a interromperem as suas diárias loas a Passos Coelho, Portas, os liberais, e a alguns estrangeiros muito na berra, que me enchem o facebook mostrando-me gente conhecida e de várias cores a fazer o mesmo gesto. Meus colegas gestuais, por assim dizer.
Querem, estes atrevidos, com isto convencer-me (e se calhar a outros) que os garbosos polícias foram em "arruada" a São Bento acompanhados do deputado André Ventura mostrar ao parlamento e respectivo governo que tudo está OK, que as suas políticas e atitudes são na mouche. De "chorar por mais".
A minha família proibiu-me de dizer palavrões no FB e no blog. Estou assim limitado. Ficam assim apenas subentendidas as práticas que recomendo às tais senhoras, tão passoscoelhistas, e aos (serôdios) rapazotes espigadotes. Quereis-me tomar como parvo? Ide ..
Um querido amigo, que no princípio de XXI brevemente me sofreu como professor e depois durante anos ombreou como colega, chega a Lisboa. Acorro, cruzo o Tejo, aos abraços saudosos (a gente não se beija, como os lisboetas "classe média" e [alguns] macuas rurais). Levo-o a almoçar a um bom restaurante no actual centro da capital, não muito caro mas daqueles de comida mui honesta (o bacalhau à Lagareiro estava decentíssimo e as iscas soberbas), e de serviço como "deve de ser", guardanapo de pano não puído, empregados sabedores e suavemente uniformizados, simpáticos sem intrusões. E, claro, sala de fumadores, para a "nipa" final. Sou ali, durante o almoço, e como sempre quando neste assim, o "mais-velho".
O empregado descobre-me "senhor doutor", a mim, ainda que cliente raro e não pródigo. E assim irei "senhor doutor" das azeitonas até à tal nipa escocesa, com simpatia. "Costumas vir aqui?", perguntam-me e pergunto-me, mas que "não", de facto há dois anos que ali não vou, e sempre fui com grandes amigos moçambicanos, nem tanto por coincidência, pois sítio, repito, "como deve de ser", assim refúgio para dias de cicerone.
Peço a conta. Faço questão disso, apesar do triste estado bancário, "noblesse oblige" diz o republicano. Trazem-me a máquina, entrego o simples cartão de débito. O qual ostenta o meu nome. O empregado, decentemente gorjetado, agradece e despede-se num "até à próxima". E acrescenta-lhe um "Senhor José ...".
Não há dúvida, um gajo da minha geração tem que deixar-se de coisas., republicanices ... E meter aquilo do "doutorzeco" no cartão bancário.
Releio-o mais ou menos uma vez por década. Cuidando de me depurar da versão de Visconti e da banda sonora que o filme lhe pregou. E também dos, tantos, textos que lhe são dedicados, agora inúmeros na internet, coisas desta época, mergulhados na (homos)sexualidade, louvando-a ou aludindo-a, e/ou na pedofilia, a esta vituperando ou dulcificando, neste caso classicizando-a. Enfim, canduras alheias, e a cada um a sua própria. Sob a minha a "coisa" do livro é-me outra, uma narrativa magnífica (que a velha tradução Europa-América não assassina, como tantas vezes aconteceu na história da editora). E esta temática:
"E ali estava ele sentado, o mestre, o artista que soubera ganhar a dignidade, o autor de O Abjecto, que de forma tão exemplarmente pura renegara a boémia e os recônditos turvos, denunciara qualquer simpatia pelo abismo e repudiara o repudiado, que subira tão alto que, cominando o seu reconhecimento e libertando-se de toda a ironia, se ajustara aos compromissos da fama, que desfrutrava de glória oficial, de um nome nobilitado, cujo estilo era modelo imposto às crianças na escola - ali estava ele sentado, de pálpebras caídas, só deixando de vez em quando escapar uma olhadela de viés, irónico e aflito, que depressa recolhia, e os lábios flácidos, desenhados a rouge, formulavam palavras soltas do discurso que o seu cérebro meio adormecido produzia pela lógica estranha do sonhos.
Porque a beleza, Fedro, repara bem, só a beleza é divina e simultaneamente visível, e por isso ela é também caminho do artista para o espírito. (...)
Vês agora que nós, os poetas, não podemos ser sábios nem dignos? Que embarcamos necessariamente no erro, permanecemos necessariamente devassos e aventureiros do sentimento? A mestria do nosso estilo é mentira e logro, a nossa fama e respeitabilidade uma farsa, a confiança da multidão em nós, altamente risível, a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento ousado, a interditar. Pois como podia prestar para educador aquele que possui uma tendência inata, incorrigível e natural para o abismo? Nós bem gostaríamos de o renegar para ganharmos em dignidade, mas, sempre que queremos desviar-nos, ele aí está a atrair-nos. É por isso que renegamos o conhecimento desintegrador, porque o conhecimento, Fedro, não tem qualquer dignidade ou severidade; é sabedor, compreensivo, indulgente, não tem posição nem forma: tem simpatia pelo abismo, ele é o abismo."
Thomas Mann, Morte em Veneza (1912) (Europa-América, 124-125).
Quando surgiu esta "onda Bolsonaro" gerou-se, por influência dos discursos brasileiros de então, uma onda contrária, invectivando-o fundamentalmente por ser anti-negros e anti-mulheres. Logo me pareceu uma abordagem descabida: o homem não iria legislar contra "negros" (o espectro "pardos/negros") nem contra mulheres. O que era (e é) de esperar é que rompa com políticas de "discriminação positiva", o que é debatível.
Mas o que logo pareceu óbvio é que a grande questão, e a mais importante sob o ponto de vista internacional, seria a sua política amazónica, tanto por declarações explícitas sobre a matéria como pela sua adesão ao totem "mercado". E, acima de tudo, pela importância nos seus apoiantes dos sectores "ruralistas". Entenda-se bem, a depredação ecológica e a refutação dos direitos fundiários das populações ameríndias, na Amazónia e não só, não é uma consequência desta abordagem política, é um projecto político por si só. Claro que então, e depois, isso foi muito (muitíssimo) menos abordado, tanto pela inexistência de movimentos amerindófilos como pelo estado sub-intelectual dos movimentos ecologistas portugueses mais mediatizados, os inscritos no espectro partidário.
Temos agora esta notícia sobre um projecto de explícita rapina dos direitos fundiários de uma população ameríndia. É algo mais do que esperado. A particularidade é que é levada a cabo por uma empresa portuguesa, o segundo maior grupo hoteleiro nacional, Vila Galé Hotéis. A reacção da sua administração à denúncia desta inaceitável acção (que foi descrita pela antropóloga portuguesa Susana Matos Viegas, profunda conhecedora daquela área), não é boçal. É sim um negacionismo estratégico, indigno de tão imoral. A única dúvida que este projecto levanta é a do estatuto da Vila Galé: será pirata, actuando por conta própria? Ou será corsária, devastando com o apoio do Estado português? Assim de longe julgo que será mesmo uma empresa bucaneira. Mas a ver vamos, se haverá reacção governamental que nos demonstre não só a inexistência de "carta de corsário" emanada como também a oposição efectiva (ou seja, com punições legalmente aceitáveis e economicamente penosas) do governo português a práticas destas.
Como portugueses pouco temos a dizer sobre as políticas brasileiras. Mas muito podemos dizer à Vila Galé. Evitarmos os 23 hotéis em Portugal e dos 8 que já têm no Brasil. Neles não fazer turismo ou organizar congressos, nem neles nos acolhermos para viagens laborais. Inclusive repudiando reservas que outros (em contextos laborais) nos façam nessas instalações. Explicitando a causa. E, claro, exigirmos ao nosso governo o explicitar do repúdio por tais gentes, bem como que as instituições estatais e municipais nunca sejam clientes nem apoiantes desta empresa.
Contra este projecto, ainda em deliberação pelo governo brasileiro, foi lançada uma petição. Subscrevê-la será bonito, simpático, uma espécie de suave ombrear com os que defendem direitos justos e tão dificilmente adquiridos e de ainda mais difícil manutenção. Mas não suficiente. Pois diante disto urge mesmo, sensibilidades políticas à parte, bradar "Que se lixe* a Vila Galé". E exigir que o nosso poder ouça o urro.
*Texto censurado por instâncias familiares.
Em Oeiras, no Parque dos Poetas, foi instalada uma homenagem a José Craverinha, assim de longe parece-me a invocação de um msaho, feita por Ntaluma. A ir visitar, com um livro no bolso ou poema na cabeça ...
Em época da comemoração do centenário do seu nascimento descubro esta entrevista de Jorge de Sena. É um momento magnífico (entre os 10 minutos e a 1 hora e 43 minutos desta gravação). E tem a particularidade de ter sido gravada (e censurada, pois só foi emitida em 2010) em Moçambique na viagem que Sena fez em 1972. Quando contactou com as gentes da extraordinária "Caliban", e também visitou a Ilha e a partir dela escreveu. Mas o que tornará o documento ainda mais interessante para alguns que aqui passarão é o ser uma entrevista feita por Leite de Vasconcelos, homem tão importante na imprensa em Moçambique. O qual ainda conheci, brevemente, pois pouco antes da sua morte, por gentil iniciativa do Camilo de Sousa e da Isabel de Noronha.
(Deixei aqui um pequeno apontamento dedicado aos livros de Leite de Vasconcelos)
Devagar, demasiadíssimo devagar para o que realmente valem, os livros de João Paulo Borges Coelho vão sendo traduzidos. Agora vejo uma edição em castelhano do seu imperdível "Crónica da Rua 513.2", publicada na Colômbia. Que encontre leitores e que outras traduções se sucedam. (E que os meus patrícios, submersos entre tantos livros "novidades", encontrem alma e ritmo para lerem este olhar único, bem para além do nosso pequeno tempo).
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