Do discurso correcto
Releio-o mais ou menos uma vez por década. Cuidando de me depurar da versão de Visconti e da banda sonora que o filme lhe pregou. E também dos, tantos, textos que lhe são dedicados, agora inúmeros na internet, coisas desta época, mergulhados na (homos)sexualidade, louvando-a ou aludindo-a, e/ou na pedofilia, a esta vituperando ou dulcificando, neste caso classicizando-a. Enfim, canduras alheias, e a cada um a sua própria. Sob a minha a "coisa" do livro é-me outra, uma narrativa magnífica (que a velha tradução Europa-América não assassina, como tantas vezes aconteceu na história da editora). E esta temática:
"E ali estava ele sentado, o mestre, o artista que soubera ganhar a dignidade, o autor de O Abjecto, que de forma tão exemplarmente pura renegara a boémia e os recônditos turvos, denunciara qualquer simpatia pelo abismo e repudiara o repudiado, que subira tão alto que, cominando o seu reconhecimento e libertando-se de toda a ironia, se ajustara aos compromissos da fama, que desfrutrava de glória oficial, de um nome nobilitado, cujo estilo era modelo imposto às crianças na escola - ali estava ele sentado, de pálpebras caídas, só deixando de vez em quando escapar uma olhadela de viés, irónico e aflito, que depressa recolhia, e os lábios flácidos, desenhados a rouge, formulavam palavras soltas do discurso que o seu cérebro meio adormecido produzia pela lógica estranha do sonhos.
Porque a beleza, Fedro, repara bem, só a beleza é divina e simultaneamente visível, e por isso ela é também caminho do artista para o espírito. (...)
Vês agora que nós, os poetas, não podemos ser sábios nem dignos? Que embarcamos necessariamente no erro, permanecemos necessariamente devassos e aventureiros do sentimento? A mestria do nosso estilo é mentira e logro, a nossa fama e respeitabilidade uma farsa, a confiança da multidão em nós, altamente risível, a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento ousado, a interditar. Pois como podia prestar para educador aquele que possui uma tendência inata, incorrigível e natural para o abismo? Nós bem gostaríamos de o renegar para ganharmos em dignidade, mas, sempre que queremos desviar-nos, ele aí está a atrair-nos. É por isso que renegamos o conhecimento desintegrador, porque o conhecimento, Fedro, não tem qualquer dignidade ou severidade; é sabedor, compreensivo, indulgente, não tem posição nem forma: tem simpatia pelo abismo, ele é o abismo."
Thomas Mann, Morte em Veneza (1912) (Europa-América, 124-125).