Na primeira semana de Setembro de 2001 realizou-se em Durban a 3ª Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e a Intolerância Correlata, uma organização das Nações Unidas comissariada pela muitíssimo respeitável Mary Robinson, então Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos. As duas conferências anteriores haviam acontecido em Genève, em 1978 e 1983. Tinham decorrido - para além da conflitualidade internacional típica daquele final da Guerra Fria - num ambiente intelectual dinamizado pela Década Internacional contra o Racismo e a Discriminação Racial (1973-1982), avesso à continuidade da noção de "raça" como mecanismo classificatório e enquadrador de políticas públicas e indutor de práticas individuais e colectivas, no intuito de "isolar e expurgar as crenças erradas e míticas" em que ela assenta e, por sua vez, dinamiza.
A conferência de 2001 integrava-se no "espírito" de proclamações simbólicas e acções articuladas que a ONU perseguia então: 2000 como Ano da Cultura da Paz, e a Década pela Cultura de Paz e Não-violência para as Crianças do Mundo (2001 – 2010), entre outras. Podemos agora sorrir, com tristeza, sabendo o que foi a história do início de XXI mas nisso não desprezando os esforços institucionais para a promoção de melhores rumos.
Alojar a conferência em Durban, descentrá-la das sedes dos serviços da ONU, só por si era significante. Esta opção pela África do Sul, bem como quando no ano seguinte se alojou em Jhb a Cimeira Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, uma década passada desde o fim do vicioso apartheid que a tornara um país pária no contexto internacional - tal como Portugal o fora nos últimos tempos do Estado Novo -, era uma vénia ao esforço do ANC, do seu ícone Mandela mas também do então líder Mbeki, para suster a conflitualidade interna enquadrada por classificações raciais e também étnicas.
A época continha grandes mudanças e também esperanças. Democratizações políticas haviam-se generalizado e o modelo económico liberal estrito era posto em causa, intentando-se o molde de "desenvolvimento sustentável". Nas últimas décadas o crescimento económico e o desenvolvimento correlato mundializara-se, com os "(novos) tigres asiáticos" (Filipinas, Indonésia, Malásia, Vietname, Tailândia) a juntarem-se aos "tigres" iniciais (Coreia do Sul, Taiwan e as cidades-Estado asiáticas), processo globalizador que depois viria ter efeito geoestratégicos sinalizáveis no epíteto "Brics" - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul assumindo-se como potências mundiais - e na afirmação das "relações Sul-Sul". Gigantescas mudanças que levantavam também conflitualidades (intra-estatais e internacionais) agregáveis na temática daquela conferência.
Mas mais explicitamente alguns cenários eram matéria óbvia: em vários continentes populações florestais, sempre desprovidas de meios militares suficientes, continuavam (e continuam) a ver os seus territórios devastados por entidades cleptocráticas; na Índia refulgia o fundamentalismo hindu; a explosão do capitalismo chinês incrementara a colonização han do Tibete (país que Robinson visitara 3 anos antes); no nosso "próximo e médio oriente" minorias religiosas e linguístico-culturais eram (e são) perseguidas e ocupadas. Na Europa vivia-se o rescaldo da guerra "étnica" dos Balcãs. E em África pouco tempo passara sobre o inenarrável genocídio ruandês, que tivera ondas de choque no então Zaire, promovendo a tétrica guerra congolesa que estava em curso, e assim continuou. Como estava a longa guerra sudanesa, que veio a provocar a cisão do país, processo insuficiente para a paz. E um gigantesco etc. de conflitos agitando as antinomias raciais, étnicas, nacionais ou como se lhe quiser chamar. Identitárias.
Em 2001 a internet era muito pequena e os motores de busca bem diversos. A comunicação não fluía como agora, e os mais novos nem imaginam isso. Em Maputo, via tv por satélite, segui o que me foi possível a conferência na vizinha Durban. É agora interessante recordar que organizações da "sociedade civil" americana levantaram a problemática da discriminação racializada na justiça dos EUA. Mas, de facto, duas problemáticas dominaram, em termos de eco público e de dinâmica interna à conferência. Uma foi a questão palestiana, uma pressão de países árabes que levou ao abandono de Israel e dos EUA - e, assim, a um real enfraquecimento dos resultados possíveis da reunião.
A outra questão mais sonante foi a reclamação de várias delegações governamentais africanas - e é interessante recordar, sem ser economicista, que isto se passou na era em que o Clube de Paris promoveu um gigantesco perdão de dívida em África -, que exigiam o pagamento de indemnizações aos países "ocidentais" por causa da escravatura.
Neste ambiente de conflitualidade, sufragando o afunilamento das questões, a higienização de inúmeros processos mundiais, a mistificação da história (num efectivo processo de "imaginação do continente" africano), a reunião teve os seus efeitos por muitos desejados. Ou seja, poucos ou mesmo nenhuns. Ainda por cima, 4 dias depois do seu final aconteceu o atentado em Nova Iorque e as atenções muito se desviaram. Mas mesmo naquele momento fui sensível àquela efectiva pantomina, no sentido de oportunidade propositadamente deitada fora.
Naquele tempo eu não conhecia o bloguismo, escrevia textos e enviava-os a alguns amigos por e-mail, alguns deles até caridosos o suficiente para me lerem. Assim, e logo em Setembro de 2001, escrevi este texto "Mil Desculpas". E um mês depois de começar a blogar coloquei-o no ma-schamba, em Janeiro de 2004. Agora torno a colocá-lo, apesar de ter 19 anos. É um texto sarcástico, e sei bem que o sarcasmo não funciona, não tem efeitos produtivos em quem o lê (ou ouve). Mas eu não escrevo (não blogo) para ter efeitos produtivos. Faço-o como catarse. Às vezes, como neste caso, como catarse do desprezo. Que me é tão necessário que também integrei este texto, mesmo que excêntrico, numa colecção a que chamei "Ao Balcão da Cantina", 50 crónicas da minha vivência de 18 anos em Moçambique (quem se interesse bastar-lhe-á "clicar" e gravar):
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Mil Desculpas
Madrugámos hoje para não perder tempo. Ontem comprei roupas brancas, a minha mulher já as tinha, acho-as mais apropriadas para isto. O meu sobrinho é que não veio, a mãe dele não deixou, e como não tem papas na língua disse-me logo que não quando fui lá pedir-lhe para que o rapaz nos acompanhasse, que era só o que faltava, que eu nem tinha o direito de lhe pedir isso.
Assim viemos os dois, chegámos à Baixa de manhãzinha, e começámos logo que não há tempo a perder, fomos primeiro às ongs nacionais que por aqui há, e depois subimos à Sé para falar com o senhor prior, havemos de descer a avenida para chegar à mesquita velha antes do meio-dia, e ainda temos as empresas, que são quase porta sim, porta sim. No caminho falamos com os transeuntes, e a todos dizemos ao que vimos, que lamentamos muito, que estamos arrependidos, que nem tínhamos pensado bem no assunto, enfim, que pedimos muita desculpa por os termos escravizado, e pedimos ainda mais desculpa pelo colonialismo, que até foi pior nem que seja por mais recente.
Sou mais eu que falo, a minha mulher tem estado calada, ela nem queria vir, penso que já se quer ir embora, também eu insisti muito e ela só veio para me acompanhar, acha que eu não ando bem, sente-me um bocado deprimido, ainda não percebeu se são os quarenta anos a chegar, ou o meu emprego que não corre bem, se estou cansado de estar por aqui, se calhar até acha que arranjei uma outra, mais novinha, mas está enganada, apenas ando é a matutar nestas coisas do mundo, que é bem complicado, e antes estava distraído.
É uma pena, as pessoas não estão muito avisadas, nos escritórios não nos recebem, tenho que marcar reuniões para depois, insisto e digo ao que venho e torna-se mais difícil, mas não desisto, peço desculpas às secretárias, aos contínuos, aos guardas, e depois eles até são simpáticos e trazem-nos à rua, amáveis, e chamam as pessoas que passam para nos ouvirem, mas cá fora também nem todos nos aceitam, os homens fogem dos abraços, as mulheres protestam comigo, dizem-me atrevido, os miúdos vão gozando connosco, mas é normal, são ainda inconscientes, até já está uma boa mão cheia atrás de nós, mas não percebo o que dizem, falam em ronga e changana, e eu peço muita desculpa mas ainda não aprendi as línguas daqui, é uma falta de respeito, prometo que começo amanhã, ainda hoje à tarde se não estiver muito cansado.
Encontro o Salimo, um libanês meu conhecido, mas diz-me que não acha piada nenhuma, que estou a gozar com ele, e lá continua, mal humorado, um homem de negócios, e o Akbar, um paquistanês amigo, também recusa as minhas desculpas, e diz-me para ter juízo, o Ferreira veio ter comigo, saíu do Banco quando lhe disseram que eu estava cá em baixo, e também o Bacelar que ainda aí está, ia a passar de carro, ambos a perguntarem se havia algum problema, mas não os percebo, não querem vir connosco pedir desculpas, eles que até são uns tipos óptimos, não estão sensibilizados para o assunto, deve ser isso.
A polícia pediu-me a identificação, foi uma chatice, esqueci-me dos papéis em casa, mas lá perdoaram quando lhes pedi desculpa, duplas desculpas, apesar de a princípio julgarem que estava a brincar. Foi um erro não trazer documentos mas vim sem a carteira, só depois é que poderei vir entregar dinheiro para me ressarcir da nossa brutalidade, e parte hei-de dar às ongs que são a sociedade civil, outra parte às igrejas nacionais, e aqui não ligo às diferentes crenças, todos partilham um Deus comum, não é?, só não vou dar à Igreja Universal do Reino de Deus, parece que são muito aldrabões, e a outra parte hei-de dar aos pedintes, mais aos velhos e aos aleijados, coitados. Às pessoas com quem vou falando é que não poderei vir a dar, bem que lhes peço as moradas para ir depois lhes entregar pessoalmente o dinheiro, mas não mas dizem, desconfiam de mim. Eu explico que não o posso dar de imediato, não estou muito abonado agora, mas estou à espera de uma consultoria para a U.E. e prometo que depois irei distribuir os marcos que receber, ou os dolares, não interessa. Mas nem assim...
Parece-me que ao princípio acharam estranho, mas agora já não, continuo a pedir as desculpas, há ainda tanta gente a que não pude falar, aliás cada vez há mais gente que me quer perdoar, vejam lá a quantidade de pessoas aqui em redor, e sei que estão a gostar da nossa atitude, vejo-o nos sorrisos, ouço-o nos risos, é uma pena a minha mulher ter-se ido embora, bem insisti para que ficasse mas preferiu voltar para casa com a Isabel que apareceu por aqui com a Cristina, compreendo pois estava muito comovida, até chorava, ela é muito sensível.
Eu agora vou até ali à Praça da Independência, aliás lá na Fortaleza tenho que pedir redobradas desculpas, e também hei-de ir até à estação, e peço desculpas pelos mortos da I Guerra, fico contente por outros se me estarem a juntar, chegaram os Fernandos, bons amigos, mas afinal só querem assistir, mas sempre é solidariedade, penso que as pessoas em redor também o vão sentir.
A rapaziada amiga que está por aqui acha que já pedi desculpas de mais, que já chega, convidam-me para almoçar, ou talvez uma cervejinha, mas hoje não é dia disso, ainda há tanta gente para abraçar, fico contente com esta delegação, vieram do Núcleo de Arte, ah, os amigos pintores, ainda bem que vieram, peço-vos desculpa, estão vocês a ver?, tão bem aceites foram, Mestre dê aí mais um abraço, lamento muito...Ir até ao núcleo ver as novas obras?...é pá, obrigado pelo convite, é uma honra, e é sempre um prazer, irei amanhã com todo o prazer, mas desculpem hoje prefiro ficar por aqui, na baixa, olha as meninas da feira, vou pedir desculpa, estas continuam a ser escravizadas, colonizadas, não Jaime, não estou perturbado, não me aconteceu nada, então que cara é essa meus amigos, só estou a fazer o que o meu governo fez, mandou fazer, o nosso governo somos nós, não somos?, é apenas preciso ter coração grande... Ó Ana, que é isso?, não aconteceu nada aqui ao Texeira, dá cá um abraço de desculpas, mais um beijo, lamento muito, diz-me um poema.
Vejam, como a cidade é pequena, afinal todos nos encontramos, até cá está o motorista da minha mulher, o Lopes, ó Lopes vem cá, tu és um velho colono, vem também pedir desculpa, que dizes? Vieste buscar-me...? ...chamam-me? quem?, problemas que só eu posso resolver ...? nada, quem sou eu ... não resolvo nada... a sério, ó pá! ó Bacelar não me empurres, ó Fernando não me agarrem, Jaime, está quieto, ó Lopes não me leves... não há problema nenhum, só quero pedir desculpa, é pá! larguem-me, vejam o pessoal a aplaudir, eles estão comigo, não me tirem daqui, não têm direito, eu estou bem, porra vocês estão a magoar-me, só quero dizer que lamento, pedir desculpa, desculpa. Vejam, eu tenho razão, todos a acenarem, a rirem, estão-me a compreender. Ò pá, que raio de amigos fui arranjar, deixem-me...
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Ok, ok, estou mais calmo, vamos lá ao Rodízio, comer bem também alivia, mas é para atacar valentemente no carrinho das aguardentes, não é?? Pagas tu Fernando?, porreiro, que não trouxe a carteira, estou à espera de umas consultorias, já vos contei?? sim!? desculpem lá, repito-me, é da impaciência.
Aperitivo? um gin duplo, mas abra já um Esporão reserva para respirar, tinto claro... O qué? ... o mercado mundial? ó pá, sobre isso não é para pedir desculpas, eu cá sigo o meu Governo, o meu Estado, muito respeitinho, era o que faltava. Desculpas por isso, é pá, essas ficam para daqui a umas décadas.
Qué?...afinal não estou assim tão maluco? Mas é claro que não...também vocês, têm cada ideia!
Sim, sim, Massinga, queremos rodízio para todos, e bom apetite.
[Setembro 2001, a propósito da Conferência Internacional sobre o Racismo, Durban]