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Nenhures

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"... a disposição mental que leva ao conto de fadas é a da moral ingénua, isto é, a moral que se exerce sobre os acontecimentos e não sobre os comportamentos, a moral que sofre e rejeita a injustiça dos factos, a tragicidade da vida, e constrói um universo em que a cada injustiça corresponde uma reparação." (Italo Calvino, Sobre o Conto de Fadas, Teorema, p. 100).

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"- Vou dizer a Cornoiller que mate alguns corvos. Estas aves dão o melhor caldo que há.

- Mas não é verdade que os corvos comem os mortos?

- És tola, Nanon! Comem, como tôda a gente, o que encontram. Não vivemos nós dos mortos? Que são então as heranças?"

(Balzac, Eugénia Grandet, Livraria Chardron, c. 1930, p. 71)

 

 

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"Via-se lutando também para manter a quinta, calculava os prejuízos daquele ano desastroso. As dificuldades batiam à porta de toda a gente. Iam longe os tempos em que a agricultura fazia fortunas. Agora, o milho e o vinho chegavam doutras regiões, de terrenos férteis, onde a produção era menos dispendiosa. Os armazenistas, a concorrência de preços, obrigavam Mariano Paulo a vender com lucros mínimos e às vezes sem lucro. O velho Paulo deixara ainda a quinta a produzir um rendimento apreciável. Porém, os últimos anos tinham modificado certas coisas. As novas estradas traziam às feiras de Corgos produtos de toda a parte. Pelas estradas, pelo caminho de ferro, no vagões, nas camionetes, o comércio das cidades, das vilas, das aldeias, acelerava-s, levava daqui para ali, fazia permutas, entrechocava-se, explorava todos os mercados. O isolamento dos pequenos meios desaparecia. O velho Paulo não sentira, em toda a plenitude, o torvelinho deste choque de interesses. Mas a quinta esbarrondava-se agora ..."

(Carlos de Oliveira, Casa na Duna, Sá da Costa, 1983 [1943], p. 60-61)

 

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Sexta-feira, são para aí 2 da manhã, subo a Guerra Popular vindo do Kampfumo, viro à direita, sigo já na 25 de Setembro e toca-me o telefone, surpreende-me a esta hora, até em quase susto, mas vejo que é um camarada, encosto para atender mas já (sub)entendi pois acabei de cruzar o África-Bar de esplanada apinhada e decerto que alguém ali me terá visto passar neste meu vetusto e rejubilante Ssangyong, o rino Musso. E assim é, ele, agora até já parente, num "mais-velho, estamos aqui, e à tua espera ...". E logo salto do arção, avanço para esse tal ali, tanta gente que o gang da antropologia se refugiara no átrio do Cine-África, tudo de 2M na mão, eu vindo dos uísques lá dos CFM e assim um pouco desarmado mas algum mais-novo logo me traz companhia, durante as risadas do "onde andavas tu, mais-velho?" enquanto eu junto a boca ao gargalo recém-chegado, e a vida é assim, corre, afinal sou o único quarentão no círculo, onde abundam ex-alunos agora, e até desde há já muito, colegas.

Festiva a noite continua entre conversas flanantes, festa ombreada. E alguém chega, de todos eles conhecido, jovem trintão, um palmo maior do que eu, para cima e de ombros, que não de barriga, e ali colhe grande e geral agrado, rodada de abraços, daqueles das palmadas nas costas. Diante de mim aperta-me a mão olhando para o quem do lado, e eu, o tal mais-velho, na noctívaga variante bem-disposta, digo-lhe em sorriso jocoso "pá, olha para mim quando me apertas a mão!". O que fui eu dizer!, o tipo investe "que é que tu queres branco de merda!" e por aí em diante, sempre para pior ... Estanco, de tão surpreso, deste modo nunca vira isto nesta terra! Racismo aqui? Sentira-o, muitíssimo, nos tempos em que aportara, mas cuspido por moçambicanos brancos, invectivando-nos "tugas" como se peçonhentos, algo execrável mas contextualizável, daquela tribo sentida como desamada, mas assim nunca ... E tranco, enquanto ele é logo afastado, rodeado num "então, calma, é o Teixeira, o nosso mais-velho!". 

Tiram-no do átrio, esse que em tempos anteriores foi vivido como foyer, e planta-se ele no passeio ainda desabrido. A mim não só me amornou como azedou a 2M, e pergunto(-me) "que é isto? quem é este gajo?", e um dos meus mais-novos esclarece, "é nosso colega, de Economia, fez o mestrado em Portugal e diz que lá sofreu muita merda", e eu disparo, "e o que é eu tenho a ver com isso, caralho?!", filhodaputa, professor universitário ainda por cima …

Mas o tipo não se cala, sonoro nas invectivas, e forçam-no a recuar até ao separador das vias, apinhado de carros pois tantos os clientes que enchem a rua. Ali encontra pedras e paus, que brande em gritaria, ameaçando-me, que já estou na breve escadaria da entrada. E nisso, sem que eu o esperasse, algo se me quebra, perco a cabeça como nunca me acontecera, pois uma merda destas eu não aceito, não posso aceitar ... E avanço para ele, a passo cruzo o passeio e a rua, só depois imaginarei o que toda aquela multidão terá pensado do maluco daquele "branco" ou "tuga", nestas condições assim ali quase-único, ou mesmo "velho", que já estou encanecido, a avançar para um louco aos gritos com pedras na mão num "atira lá, meu cabrão!". A meu lado, logo, C., que é, sempre eu o disse, como se um príncipe, e o mais influente da sua geração, num "calma, Teixeira, calma, mais-velho", e o sacaninha, cobarde, nos gritos a atirar as pedras e paus, às minhas nove horas e às três horas, e depois às sete e às cinco, e eu avanço-me, no passo a passo descerebral, e é ele rodeado, enfiam-no num carro e lá segue à vida.

Semanas passam, surge o jantar final do ano lectivo, em casa de colega, um tipo porreiro. Connosco alguns dos finalistas, agora novos doutores também. E de súbito entra o tipo, com a mulher, afinal é ali família. Fico estupefacto, numa amálgama de sentimentos, é certo não poder desatinar pois sou convidado e a anfitriã está presente, e dever-me-ei retirar, ofendido?, mas não deixo de pensar, "oops, agora, sem aquela adrenalina toda, o sacaninha parte-me todo", e até penso que ele virá dizer-me, mentindo claro, "professor ou teixeira, desculpe lá, havia bebido demais". Mas nada disso, ele apenas me fita, com sarcasmo, em injúria altaneira, supremacista ... 

Janto, converso, rio, pois é festa e também minha. Entretanto o casalinho sairá. Nisto fui fumando na varanda, olhando a Drenagem. Sem deixar de pensar, entre outras coisas, que aqueles meus queridos amigos não sentem nem percebem o quão inadmissível é juntarem-me com aquilo. E, pior, o conviverem eles com aquilo. Porque isto não é apenas o passado. É o futuro, compõe-no.

Não tenho culpa. Nem aceito castigo. E, aqui, agora, para o negar podem chamar os demagogos, letrados, atrevidos. Esta pobreza da gente da "petty-corruption".  Que eu avançarei, na mesma. Passo a passo. Desde que, claro, perca a cabeça.

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(Reprodução de um postal no meu blog ma-schamba, escrito a 1 de Junho de 2008, a que chamei "O Airbus de Marcelo Rebelo de Sousa". Que escrevi inserido numa categoria de que muito gostava, "paternidade", forma como chamei ao então muito em voga baby-blogging. E reproduzo-o porque o julgo totalmente actual.)

Toca o telefone, um amigo a perguntar se estou a ver televisão. "Não?", então que a ligue, vai-me anunciando os milhares à volta da selecção de partida para a Suíça, os motardes imigrados por lá também à espera no aeroporto, a RTP-A/I transmitindo em directo o delírio colectivo. Quem me telefona não é um inimigo da bola, a desculpa da chamada até foi o comentário à contratação do dia ("Postiga?, então o que achas?"), mas o que é demais tresanda, isto para não dizer que fede, que é mesmo isso, mas as homofonias são desagradáveis quando se quer manter o nível.

Bem, lá vou eu ligar a televisão. Ali ao lado está a Carolina (a minha filha que fez seis anos esta semana) a escrever uma carta - sua autonómica decisão - aos avós a dizer-lhes que tem saudades da família e de Portugal. Enquanto escreve eu fico a assistir à transmissão, assim a ver um avião da TAP na pista do aeroporto da Portela a preparar-se para levantar voo enquanto um locutor e o professor Marcelo, este em mangas de camisa e de cachecol da selecção portuguesa, vão comentando sobre a importância do evento futuro e desta partida dos jogadores. Alguns minutos se vão arrastando e enquanto o avião ("um Airbus" modelo não sei quantos, avisam, sob o comando do "comandante Coutinho", sossegam-nos) se vai posicionando, o professor Marcelo - que um dia quis ser primeiro-ministro do país, imagine-se - anuncia o efeito bandeirístico que regressa, rejubila com a atenção nacional, etc. Entretanto o tal Airbus do comandante Coutinho (mui decente profissional, estou certo, e que não tem culpa desta maluqueira toda) estanca no início da pista aguardando o sinal da torre do controle, como nos explica o locutor (para a gente não descrer que a selecção voará para o Euro, presumo), e dentro de pouco o professor Marcelo (insisto, que um dia quis ser primeiro-ministro, imagine-se) irá dizer-nos, preocupado, que o avião está a rolar tempo demais, a custar-lhe descolar, e repete-o, provocando-nos um pequeno frissonzito, "deus queira que tudo corra bem" pensará a pátria, e assim correu, vá lá, lá seguiram eles. Mas ainda antes disso, ainda com o comandante Coutinho, digníssimo profissional, esperando a "luz verde" para arrancar, e nós expectantes desse sempre arriscado momento, não é assim?, a Carolina - repito, em autonómica decisão de escrever uma patriótica carta, "cheia de saudades de Portugal" e "dos avós", que a avó Marília "me deixa fazer tudo" e o "avô António faz maluquices" -, e a Carolina, dizia eu, interrompe o seu afã pátrio, vira-se para mim armando olhar crítico, e até surpreso de me ver a ver aquilo, e dispara com entoação "ó pai, os aviões não são importantes!...".

Fico-me a sorrir. Se se mantiver assim a esta, quando crescer, não há-de o professor Marcelo enganar com as suas vichyssoises. Palhaçada ... ao que um homem desce. Ao que este desceu. E tantos com ele ...

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