Sexta-feira, são para aí 2 da manhã, subo a Guerra Popular vindo do Kampfumo, viro à direita, sigo já na 25 de Setembro e toca-me o telefone, surpreende-me a esta hora, até em quase susto, mas vejo que é um camarada, encosto para atender mas já (sub)entendi pois acabei de cruzar o África-Bar de esplanada apinhada e decerto que alguém ali me terá visto passar neste meu vetusto e rejubilante Ssangyong, o rino Musso. E assim é, ele, agora até já parente, num "mais-velho, estamos aqui, e à tua espera ...". E logo salto do arção, avanço para esse tal ali, tanta gente que o gang da antropologia se refugiara no átrio do Cine-África, tudo de 2M na mão, eu vindo dos uísques lá dos CFM e assim um pouco desarmado mas algum mais-novo logo me traz companhia, durante as risadas do "onde andavas tu, mais-velho?" enquanto eu junto a boca ao gargalo recém-chegado, e a vida é assim, corre, afinal sou o único quarentão no círculo, onde abundam ex-alunos agora, e até desde há já muito, colegas.
Festiva a noite continua entre conversas flanantes, festa ombreada. E alguém chega, de todos eles conhecido, jovem trintão, um palmo maior do que eu, para cima e de ombros, que não de barriga, e ali colhe grande e geral agrado, rodada de abraços, daqueles das palmadas nas costas. Diante de mim aperta-me a mão olhando para o quem do lado, e eu, o tal mais-velho, na noctívaga variante bem-disposta, digo-lhe em sorriso jocoso "pá, olha para mim quando me apertas a mão!". O que fui eu dizer!, o tipo investe "que é que tu queres branco de merda!" e por aí em diante, sempre para pior ... Estanco, de tão surpreso, deste modo nunca vira isto nesta terra! Racismo aqui? Sentira-o, muitíssimo, nos tempos em que aportara, mas cuspido por moçambicanos brancos, invectivando-nos "tugas" como se peçonhentos, algo execrável mas contextualizável, daquela tribo sentida como desamada, mas assim nunca ... E tranco, enquanto ele é logo afastado, rodeado num "então, calma, é o Teixeira, o nosso mais-velho!".
Tiram-no do átrio, esse que em tempos anteriores foi vivido como foyer, e planta-se ele no passeio ainda desabrido. A mim não só me amornou como azedou a 2M, e pergunto(-me) "que é isto? quem é este gajo?", e um dos meus mais-novos esclarece, "é nosso colega, de Economia, fez o mestrado em Portugal e diz que lá sofreu muita merda", e eu disparo, "e o que é eu tenho a ver com isso, caralho?!", filhodaputa, professor universitário ainda por cima …
Mas o tipo não se cala, sonoro nas invectivas, e forçam-no a recuar até ao separador das vias, apinhado de carros pois tantos os clientes que enchem a rua. Ali encontra pedras e paus, que brande em gritaria, ameaçando-me, que já estou na breve escadaria da entrada. E nisso, sem que eu o esperasse, algo se me quebra, perco a cabeça como nunca me acontecera, pois uma merda destas eu não aceito, não posso aceitar ... E avanço para ele, a passo cruzo o passeio e a rua, só depois imaginarei o que toda aquela multidão terá pensado do maluco daquele "branco" ou "tuga", nestas condições assim ali quase-único, ou mesmo "velho", que já estou encanecido, a avançar para um louco aos gritos com pedras na mão num "atira lá, meu cabrão!". A meu lado, logo, C., que é, sempre eu o disse, como se um príncipe, e o mais influente da sua geração, num "calma, Teixeira, calma, mais-velho", e o sacaninha, cobarde, nos gritos a atirar as pedras e paus, às minhas nove horas e às três horas, e depois às sete e às cinco, e eu avanço-me, no passo a passo descerebral, e é ele rodeado, enfiam-no num carro e lá segue à vida.
Semanas passam, surge o jantar final do ano lectivo, em casa de colega, um tipo porreiro. Connosco alguns dos finalistas, agora novos doutores também. E de súbito entra o tipo, com a mulher, afinal é ali família. Fico estupefacto, numa amálgama de sentimentos, é certo não poder desatinar pois sou convidado e a anfitriã está presente, e dever-me-ei retirar, ofendido?, mas não deixo de pensar, "oops, agora, sem aquela adrenalina toda, o sacaninha parte-me todo", e até penso que ele virá dizer-me, mentindo claro, "professor ou teixeira, desculpe lá, havia bebido demais". Mas nada disso, ele apenas me fita, com sarcasmo, em injúria altaneira, supremacista ...
Janto, converso, rio, pois é festa e também minha. Entretanto o casalinho sairá. Nisto fui fumando na varanda, olhando a Drenagem. Sem deixar de pensar, entre outras coisas, que aqueles meus queridos amigos não sentem nem percebem o quão inadmissível é juntarem-me com aquilo. E, pior, o conviverem eles com aquilo. Porque isto não é apenas o passado. É o futuro, compõe-no.
Não tenho culpa. Nem aceito castigo. E, aqui, agora, para o negar podem chamar os demagogos, letrados, atrevidos. Esta pobreza da gente da "petty-corruption". Que eu avançarei, na mesma. Passo a passo. Desde que, claro, perca a cabeça.