(Amadeu Castilho Soares em trabalho de campo na (actual) Guiné-Bissau, 1959-1960)
Aos 90 anos morreu agora Amadeu Castilho Soares, durante décadas gestor de recursos humanos, área laboral na qual foi um dos primeiros presidentes da respectiva associação profissional. Aqui evoco o seu breve período de investigador "africanista" - como então se dizia - e a sua fugaz mas impressiva experiência no governo colonial. Pois esse seu percurso denotou dinâmicas político-administrativas daquele ocaso imperial mas também algumas das suas ambivalências, as quais não deixam de apelar ao matizar de interpretações mais sistémicas dessa era.
Castilho Soares frequentou a Escola Superior Colonial - entretanto renomeada como Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (futuro ISCSPU e actual ISCSP) -, instituição na qual logo veio a ser docente. Nesse ambiente formativo foi muito influenciado pelas concepções então reformistas de Adriano Moreira. Foi esse mestre que o integrou em investigações nas colónias, organizadas pela Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar, numa época em que se procurou dinamizar a até então escassa investigação em temáticas antropossociológicas.
Nesse âmbito integrou a Missão de Estudo para a Atracção das Grandes Cidades e Bem-Estar Rural, com estadas de terreno durante as férias lectivas entre 1956 e 1959 em Angola e Moçambique. Nesta podia-se reconhecer a influência de concepções então emergentes, tendentes ao desenvolvimento comunitário rural - consagradas desde o início daquela década pela ONU -, e cooptadas em Portugal também para o esforço reformista do regime colonial em busca da sua legitimação internacional. A posteriori pode-se ainda notar a relação desses intuitos com a preocupação administrativa com o que então se dizia "destribalização", as transformações oriundas dos fenómenos de urbanização, assalariamento e até migrações. Mas o que agora será ainda mais interessante é detectar naquele quadro intelectual concepções que, salvaguardadas diferenças de objectivos e métodos, ressurgiram décadas depois exactamente sob esse epónimo, o tal "desenvolvimento comunitário" ainda muito em voga neste XXI.
É interessante para o historial da investigação portuguesa e da sua articulação com os objectivos político-administrativos que dessa longa pesquisa, congregando fundos então algo inusitados, não advieram os resultados colectivos esperados. Pois apenas resultou a tese de licenciatura de Castilho Soares, este “Política de Bem-Estar Rural em Angola”. Tal não se terá devido apenas à particular competência do autor, tornando-o excepção naquele projecto, mas indicia falta de organicidade institucional, a qual fragilizava o desenho e a realização das investigações. E não deixa de denotar que o vínculo entre as pesquisas realizadas e os mandamentos políticos que as convocavam eram, de facto, mais ténues do que interpretações posteriores vieram afirmar, acabando por ser mais um ambiente intelectual do que propriamente uma política cabal.
Foi nesse mesmo contexto que Castilho Soares integrou em 1959-1960, na condição de sociólogo e juntamente com os arquitetos Schiappa Campos e Saragga Seabra, a Missão de Estudo do Habitat Nativo da Guiné, cujo plano indicia o mesmo tipo de preocupações, uma abordagem etnográfica que baseasse o reconhecimento e valorização do modus vivendi populacional. Algo que se pode ligar com os intuitos então proclamados de gerir o povoamento, inclusive através da reorganização administrativa local e de reassentamentos rurais, que viessem a obstar aos fenómenos de "destribalização", estes perspectivados como anómicos e temidos como fonte de processos independentistas. Também neste caso os resultados da investigação não foram imediatos, em parte pela posterior realocação dos investigadores a outros serviços. Assim só em 1970 foi publicado o relatório Habitats Tradicionais da Guiné Portuguesa, abarcando um espectro bem menor do que o objectivo inicial - o que de novo permite referir a fluidez dos laços entre administração e investigação. E só muito recentemente esse precioso material fotográfico foi recuperado, através da exposição "Moranças - Habitats Tradicionais da Guiné-Bissau". (Aqui o folheto). Mas essa esparsa relação entre propósitos políticos e concepção das investigações, bem como o voluntarismo que a estas ancorava, perpassa ainda mais no interessante depoimento que Castilho Soares concedeu à historiadora Cláudia Castelo em 2010. No qual explicitou a disparidade entre os enormes objectivos iniciais e os recursos realmente disponibilizados, bem como a falta de formação metodológica da sua geração.
Depois, com apenas 31 anos, e também por intermédio de Adriano Moreira, que viria a assumir funções ministeriais, foi nomeado para o governo de Angola, como Secretário Provincial da Educação, Saúde e Trabalho e Segurança Social. Eram, como disse, "as 3 áreas politicamente mais melindrosas quer a nível interno quer face à política internacional", exactamente no período da revogação do Estatuto do Indigenato e de alterações da Lei do Trabalho, ilegalizando a então omnipresente corveia. Nesse período desenhou o inovador projecto de desenvolvimento da Escola rural, o "Levar a Escola à Sanzala", uma verdadeira reforma que procurava alargar a alfabetização, concebida à margem da igreja católica à qual o Estado Novo havia entregue o ensino da população africana e que se veio a opor a esta iniciativa. Também neste caso agora se nota como algumas daquelas concepções foram recuperadas, décadas após as independências africanas, pois são patentes as similitudes com as metodologias actuais das "escolas comunitárias" construídas pela população rural e sob sua relativa tutela, fornecidas de professores formados pelo Estado.
Durante esse seu trepidante curto mandato foram criados vários liceus, escolas técnicas, de enfermagem e de serviço social. E iniciou-se o processo de estabelecimento da Universidade em Angola, o qual Castilho Soares acompanhou ainda que dele não fosse responsável. Mas este provocou acesa polémica política e mesmo a eclosão da crise entre os "integracionistas", partidários do centralismo metropolitano, e os crentes nas virtudes descentralizadoras, então emergindo no território angolano. Assim a proclamação provincial da universidade de Luanda veio a ser vetada pelo governo nacional, num processo que aceleraria a posterior abertura dos Estudos Gerais em Lourenço Marques e Luanda (1962 e 1963). Mas esse episódio foi o culminar de uma tensão entre essas correntes políticas e acabou por provocar as demissões do ministro Adriano Moreira e do governo colonial do general Deslandes.
Desse seu fulgurante biénio, e do seu afã reformista, ficaria como fundamental traço o projecto de alargamento da rede escolar, sem tutela eclesiástica. Demitido o governo de que era membro, Castilho Soares regressou a Lisboa sofrendo uma surpreendente represália estatal, bem mostrando como eram fluidas e complexas as concepções então dominantes e espúrias muitas das retóricas propaladas. A esse propósito, e com toda a pertinência, disse o professor Adelino Torres que o "Levar a Escola à Sanzala" se tratou "de um plano em grande escala concebido e corajosamente executado pelo antigo Secretário Provincial da Educação de Angola, Amadeu Castilho Soares. O plano era tão ousado que deu origem à posterior destituição pura e simples deste alto funcionário e ao seu afastamento da carreira universitária, para além de uma perseguição mesquinha de que foi vítima durante anos."
Assim afastado das áreas de investigação a que se dedicara desde a sua juventude Amadeu Castilho Soares inflectiu a sua vida profissional, seguindo uma preenchida carreira na gestão de recursos humanos. Já viúvo deixa agora filhas, netos e bisneto. Foi precedido na morte pelo seu filho, e meu saudoso amigo, João Nuno. O qual tanto recordo nestes dias de pesar.
Nota: Lista dos textos de Amadeu Castilho Soares