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Sábado de Julho, juntamo-nos em almoço. Um pequeno grupo de amigos, algo heterogéneo quanto a origens, perfis e até idades. Que sempre se congrega para repastos que sejam peculiares, num cuidadoso conservadorismo gastronómico. E que agora, desde há tão pouco, mais ainda tece os convívios pois estes tornados modo de manter à mesa aquele de nós que fora o nosso inicial vínculo comum, que se nos morreu neste final da Primavera.
Terminadas haviam já sido as caras de bacalhau - debruadas de couves e ervas de produção própria, o que se não lhes altera o sabor lhes dá mesmo um gosto diferente -, chegara um gelado bem mais que amuse-bouche, antecâmara do uísque de malte e de um bom moscatel da região, estes distribuídos segundo a canónica divisão de género, como agora sói dizer-se aquilo dos cavalheiros e das senhoras. Como sempre a conversa vem fluindo, sem quaisquer agendas, em sortido de temas e monopólio de carinhosa boa disposição. Nesse fluxo alguém convoca aquilo do "pata a fundo" ministerial e do pobre sinistrado, assunto que vem enchendo as notícias, e sobre isso brotam resmungos. Uma das convivas, mulher do de facto carismático sempre líder deste grupo comensal, ela quadro superior da administração pública, interrompe-os, aos resmungos, com a sua experiência de décadas de ofício. E conta-nos que os motoristas, se acompanhados dos governantes, nunca são multados. E o que o seu problema é quando são chamados, e tantas vezes isso acontece, à última hora para que SExas. possam cumprir compromissos urgentes, uma reunião para a qual estão atrasados, uma ida para o aeroporto algo descurada, uma deslocação inopinada, coisas de agendas pouco cuidadas ou acometidas por imprevistos. E nesses tão habituais casos os motoristas têm de quase-voar ao encontro dos seus superiores, evitando desprazeres, reprimendas ou mesmo transferências laborais, que os seus eventuais atrasos sempre convocam. E nessas viagens, desprovidos dos VIPS assim seus verdadeiros guardas-costas, são multados pela polícia mesmo se argumentarem estar em serviço. E são eles que as pagam, às multas, mesmo que devidas às tais pressões oriundas das descuidadas urgências superiores.
Com as senhoras presentes o nosso linguajar é menos desbragado. Sobram assim apenas algumas alusões à imoralidade sexual das progenitoras destes tipos, mandantes. E levanto-me, gentil, vou eu fazer o café e buscar um balde de gelo.
(Amílcar Cabral e Nino Vieira, entre outros combatentes. Desconheço a autoria da imagem)
1. Em primeira análise devemos o 25 de Abril, a paz e a democracia, o desenvolvimento do país inscrito no assim não tão polimorfo modelo social europeu, as liberdades individuais e colectivas, ao arreganho e quantas vezes até heroísmo dos combatentes do PAIGC, da FRELIMO, e (em moldes mais complexos e até ambivalentes) da FNLA, do MPLA e da UNITA. Foi a sua corajosa acção que então tornou Portugal um país pária e o Estado Novo (fascista, colonial-fascista, ditatorial, autoritário, é-me agora indiferente como o querem catalogar) uma decrepitude anacrónica.
2. Os oficiais subalternos que desde 1973 se organizaram por causas corporativas e que - acima de tudo cansados da desvairada guerra - vieram a fazer os golpes de Março e Abril de 1974 foram nisso, e evidentemente, corajosos. Mas uma coragem menor em grau do que aquela que, tantos deles, haviam demonstrado nas estuporadas e injustas guerras africanas. Não se trata apenas de lembrar que os operacionais desses golpes estavam calejados em bem mais complexos e violentos contextos de guerra. Mas também lembrar que o estado do Estado Novo era já patente (veja-se o percurso de Spínola e, também, de Costa Gomes nesse estertor do marcelismo).
Não nego homenagem a quem arriscou muito nesse início de 1974. Mas trata-se de não sobrevalorizar, mitificar, esses riscos. Enfim, resumo-me: fosse eu um pouco mais ingénuo e surpreender-me-ia com este actual universo ideológico e propagandístico atarefado em decapitar os mitos glorificadores de Diogo Cão, Bartolomeu Perestrelo e afins, enquanto se afadiga em glorificar os oficiais que vieram a Lisboa em 1974 enterrar o já defunto regime, enfrentando para isso alguns dos seus desanimados camaradas de armas, em tantos casos também camaradas de geração de Academia Militar.
3. Figuras relevantes do início da democracia morreram neste XXI. Militares como Rosa Coutinho, Costa Gomes, Eurico Corvacho, Vasco Gonçalves, Dinis de Almeida, Alpoim Calvão, civis como Mário Soares, Almeida Santos, Álvaro Cunhal, Freitas do Amaral, etc. Aquando dessas mortes sempre se levantaram algumas discussões públicas sobre as suas personalidades políticas. E os laivos de acinte que então surgiram vieram, fundamentalmente, de núcleos de gente regressada (ou oriunda, em alguns casos) das ex-colónias, um universo (até geracional) que continuou a personalizar/culpabilizar alguns indivíduos pelo inevitável desenlace da história. Ou seja, para a esmagadora maioria da população as diferenças ideológicas não implicaram desajustados ajustes de contas com os falecidos. Num, de facto, canónico "descanse em paz" dedicado a cada um desses. O sentimento geral é o de que houve desmandos no PREC, houve violência (encetada pelos assassinatos perpretados pelos agentes da PIDE em 25 de Abril), mas que se constituiu um posterior consenso de que "o que aconteceu no PREC ficou no PREC". E nisso decorre uma avaliação diferenciada mas democrática do processo posterior e das suas personagens.
Mas agora na morte deste Carvalho as coisas são diferentes. A repugnância pelo indivíduo é patente em muitos de nós. Pois Carvalho em democracia comandou um grupelho terrorista assassino. Agora, e mais uma vez como em todos os meses de Abril foi habitual, moles de gentes que por aqui andam invectivam o nojo pelo terrorista como característica da "extrema-direita". Tal advém de uma mera táctica, executada por consabidos avençados desta era geringoncica, na qual que convém aos poderes fácticos namorar os resquícios afectivo-ideológicos dos velhos grupelhos m-l. Ou, pura e simplesmente, daqueles que exsudam um efectivo desprezo pela democracia. Ora os crimes que exigem um total repúdio por Carvalho não "ficaram no PREC", são muito posteriores. Os democratas podem ter diferentes visões dos anteriores falecidos, é isso normal. Mas apenas os biltres podem saudar a memória de um assassino.
4. Posso compreender que um militar, camarada de armas, venha agora falar da "bondade" e "generosidade" de Carvalho. Mas a resposta ao nosso respeitável General Eanes só pode ser uma: onde está a generosidade e bondade de quem manda matar 16 vulgares cidadãos em nome de um desvairado e ultra-minoritário ideário?
5. O estado da cultura portuguesa é uma vergonha. O antigo ministro da Cultura João Soares vem dizer que "desculpa as asneiras" de Carvalho. Ou seja, fundar e capitanear um movimento terrorista assassino em democracia são meras "asneiras". É esta a densidade semântica de um gajo que chegou a ministro da cultura. Espero viver o suficiente para lhe escarrar na campa. Na do ex-ministro, entenda-se.
(Fotografia de Álvaro Isidoro, 2014)
Na morte do líder terrorista Carvalho lembro o que sobre ele e os seus falsários admiradores escrevi há dez anos: O otelismo.
E deixo ligação ao texto de Manuel Castelo-Branco, filho de um dos homens que Carvalho mandou assassinar.
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