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fico mudo a ouvir a canção da minha vida...
E também a lembrar-me como o velho Watts nos encantou há um ano e meio (foi quem mais brilhou no gigantesco Together at Home), no pico da angústia pandémica, mostrando-se em forma e na crista das inovações.
(Patrícia Portela, Dias Úteis, Caminho, 2017)
Patrícia Portela tem uma ficção peculiar, que alguns críticos dizem inclassificável ou experimental. Para a leitura isso é uma facilidade. Pois quando o autor segue algo canónico, com tramas (quase) lineares e tom homogéneo, convoca a que se aceitem as suas intenções, mesmo que se lhe encontre outros sentidos aos textos. Mas se assim não é, então escancara as páginas para que sejam interpretadas, e até classificadas, à vontade dos fregueses, nós leitores. É bem o caso deste "Dias Úteis", uma aparente colectânea de contos, em 111 páginas ligadas pelo ritmo das jornadas de uma semana, mais intróito e epitáfio, tudo com a aparência de transpirar uma dieta metafórica. A mim pareceu-me algo diferente, um texto de Teologia Moral encadernado como romance. E reli-o agora, pois pareceu-me adequado para acalentar este Verão Segundo do Covidoceno.
No início afirma a universal subordinação humana a um Demiurgo - com ironia nomeado "Jogo"-, entidade ordenadora com desígnios insondáveis, encapotados por uma multiplicidade de leis e mandamentos de conjugação inexacta. Dele são os homens meros títeres, sempre vitimados pelas suas inesperadas acções moralmente abissais, as quais são apresentadas sob uma imagética telúrica, um "alçapão" móvel, verdadeira actualização do Hades clássico e do Inferno cristão. A trama decorre nessa espécie de vida, assim incompleta pois incompreensível e, como tal, desprovida de previsão racional.
A protagonista é Alice Winston Smith, presumível bastarda de uma indita ligação de Carroll e Orwell, à qual é diagnosticada uma doença de alteridade (ou seja, de identidade). Essa Smith, num dos seus avatares - num dos aparentes "contos" -, narra ter cumprido uma Odisseia, cruzando a actual Hélade Global em ritmo bem mais célere do que a homérica. O factor motriz dessa frenética epopeia fora um acelerado ciclo de dádivas e contra-dádivas - como logo o compreende qualquer leitor de Marcel Mauss.
Ora é esta a questão teológica central ao romance. Pois em nenhum momento esta Smith suspendeu o seu afã andarilho para cumprir o fundamental desse ciclo - factor para o qual nos avisou o mestre francês, ainda que muitos o tivessem incompreendido: o ofertar à(s) divindade(s). Ou seja, ela abstém-se de cultuar, segue egoísta na soberba de se restringir ao eterno ciclo de obrigações humanas, esse dar-receber-tornar a dar entre homens. Assim apenas se submete de modo automático - e portanto não agradecido, o que é o mais relevante - à aparente inconstância divina.
Será castigada por esse seu défice dadivoso: "Perco tudo o que me faltava (...) Desmembro-me como se fosse feita de papel" (p. 68) -, pois aprisionada pelo desamor e pela morte alheia. Mas mais do que a mera infelicidade neste "vale de lágrimas", a grande punição divina é a sua condenação ao imobilismo, até atávico. Isso explana-se no epitáfio clamando o vazio utópico, a impossibilidade do movimento, restringindo a acção humana a uma mimetização do existente sob a ditadura cronológica, do tempo que passa. Vazio esse ilustrado nesse episódio final, o do pintor de longa maturação que desenha o real, desprovido de qualquer capacidade deste constitutiva ("performativa", diriam os que se imaginam emanados do amplexo Ivy League/Russell Group).
Esta condenação ao imobilismo devida à postura increia de Smith é explanada em vários episódios. De facto, a referida Odisseia é-lhe apenas um anseio onírico. E tudo já "antes" (num "conto" colocado em páginas anteriores) fora explicado: planeara ela ir à Escócia cultuar os seus ancestrais, na companhia do seu amor (Ivo). Mas este abandonou-a pouco antes da viagem, num óbvio efeito do "alçapão" do tal "Jogo" - usando a terminologia do livro. Ora face a esta evidente provação de origem divina, Smith não teve suficiente vontade (fé, claro!) para sozinha cumprir essa necessidade moral, o culto dos ancestrais. E troca essa obrigatoriedade pela ambição de um placebo, inútil, o de conhecer a China - outras vestes da tal Odisseia -, mas que não cumprirá, terminando por se restringir a alugar vídeos de kung-fu, pois aprisionada a si mesma, inane, imóvel.
Todo esse individualismo egoísta da descrença é assim descrito (e por isso o convoco nesta Era Covidocena):
"Pois é, isto de ir à China tem muito que se lhe diga, e eu até só queria ir de férias, (...) é mesmo fundamental não escolher uma época errada para ir à China, um pessoa pode constipar-se, ou pior, apanhar uma pneumonia atípica, ou uma bronquite, e para além de tudo isto, todos me dizem que a melhor altura para ir à China é o outono, mas nessa altura eu não posso mesmo tirar férias, tenho sempre imenso trabalho, (...) para além disso ainda li numa revista especializada em viagens alternativas que é preciso ter atenção às pragas de insectos, que são muito frequentes na China, e é por essas e por outras que é conveniente tomar umas vacinas quatro a seis semanas antes da viagem, pelo menos a vacina contra a raiva e seguir a profilaxia contra a malária, que é mais importante mas também a que dá mais dores de cabeça, vómitos, diarreia, e se eu começo a tomar todas estas medicações um mês e meio antes e depois não consigo ir trabalhar vai ser um problema (...) e se me ponho a levar todas as outras vacinas que me faltam para ter tudo em dia e para estar prevenida como gosto sempre de estar em todas as ocasiões, ainda tenho de levar a vacina contra a cólera, a difteria, o tétano, a hepatite A, B, a japonesa, e ainda precaver-me contra a encefalite, a poliomelite, a gripe atípica,a gripe das aves, que já não está muito na moda, já não se fala muito dessa gripe mas foi lá que tudo começou, e nunca se deve acreditar só nos media, e ainda contra a rubéola que nunca tive, contra a meningite que já tem uma vacina, contra a febre-amarela e contra a febre aftosa, ninguém liga nenhuma a esta última, mas também é muito importante, e segundo os meus cálculos vou perder uma semana de trabalho só em folgas para conseguir lidar com tanta injecção, primeiro porque nunca se consegue marcar todas as consultas necessárias no mesmo sítio, cada uma é num laboratório de um hospital diferente da cidade, depois porque nunca se consegue marcar todas para o mesmo dia ou se até conseguimos marcar duas ou três no mesmo dia são sempre a horas diferentes, cada médico tem o seu calendário, e o pior de tudo é que tenho medo de agulhas, para além de ter uma tendência para fazer alergia a todo o tipo de medicamentos que tomo, seja por via oral ou cutânea, e é por isso que conto sempre com um ou dois dias para descansar e para ir à farmácia comprar os antibióticos que me prescrevem a seguir a qualquer consulta médica, ah, e por falar em farmácias, também não me posso esquecer de levar algo contra o herpes labial. E se isto fosse tudo, eu até acho que ainda ia à China este ano mas ainda há a questão do visto (...)" (59-61)
Enfim, é por tudo isto que encontro o livro como uma convocatória ao culto. Pois se a este formos renitentes Deus (ou qualquer outro nome que lhe dermos) condena-nos ao imobilismo, frustrante e infeliz.
(Alguns dirão que "contei a história", desfazendo a curiosidade de outros leitores. Mas num livro destes não me parece isso, pois é mesmo um objecto que cada um poderá apreender à sua maneira, dele se apropriar como lhe aprouver)
[Nota: Este postal integra uma série sobre os meus livros do covid].
(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo, Lisboa 2020)
No início de Março de 2020, mesmo que nos poderes fácticos ruminassem ainda os flâneurs flanantes, muitos de nós - angustiados com o que se passava nos países vizinhos - nos apressámos a retirar os petizes das escolas e a encerrá-los em casa, enquanto começávamos a evitar os avoengos. Em meados do mês o governo cedeu à evidência e declarou o confinamento - enfim, o Primeiro-Ministro haveria depois de proclamar que isso nunca existira mas essa sua proposta de "narrativa" não teve sucesso.
Fechámo-nos então todos em casa - com as consabidas excepções laborais -, desvanecendo o bulício de cidades e vilas. E logo no dia seguinte saiu à rua o Miguel Valle de Figueiredo, diariamente a fotografar o vácuo humano que o circundava. Calcorreou Lisboa e fez este "Cidade Suspensa", grande livro em formato de bolso, colecção de fotos a preto-e-branco, essa cor do silêncio. Guardou assim a memória da confinada Baixa monumental, do seu Tejo então desguarnecido, com vislumbres das míticas colinas e laivos dos bairros antigos ainda de tez popular, aquilo que sempre nos surge como o identitário da grande Lisboa e do vetusto alfacinha. E a das avenidas em tempos "novas", esse restos sempre apreciados do Estado Novo, tal como a da marca d'água desta II República, as fileiras de edifícios de serviços e as plataformas de transportes. Todos esses sedimentos da cidade unidos pela escassez de gente, tal como os diferentes templos, estes numa ecuménica solidão. Mas também aos lisboetas o fotógrafo perseguiu, mostrando-nos que não estavam eles desaparecidos, devastados, mas apenas acoitados, assomando às varandas, resistindo sarcásticos (decerto que ficará lendária a sua fotografia do lençol pendurado clamando "My husband is for sale"). Demorando-se, cruzou os parcos transeuntes nos seus inadiáveis, submersos nestas máscaras sanitárias, então polémicas, feitas veros cabrestos das almas. Bem como as restantes crianças ainda assim brincando. E, porque de saúde tanto se falava, fixou alguns desportistas a solo. Trouxe ainda médicos e enfermeiros afadigados, esconsos pois no securitário exigido, além de trabalhadores avulsos num desapoiado vai-e-vem pedonal, ainda mais exaustos do que no antes desta toda angústia. Foi assim em Março e Abril de 2020, durante a unânime suspensão. E termina o livro no 1º Maio, na visão da encenação pública da Alameda, pobre festa que tão resmungada foi, quando a tal momentânea congregação se cindiu.
Passou já um ano e meio sobre este início. E naquela época não se esperaria que tudo isto demorasse tanto tempo. Foi uma cesura, no tempo. Mas, mais do que tudo, nos ritmos. Nas nossas mentes, até bem mais do que nos hábitos, e quanto estes mudaram... Cesura que tanto perdura. Releio este livro, refolheio-o. E diante do preto-e-branco, de todo aquele silêncio que ecoa nas páginas, parece-me que urge cerzir o tão esgarçado. Pois, de facto, e por muito que o tenhamos alvitrado ou mesmo sonhado, nada de épico aconteceu.
Cidade Suspensa: Lisboa em Estado de Emergência, Miguel Valle de Figueiredo (fotografias), Bruno Vieira Amaral (texto), Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020.
(Com este postal começo uma série sobre os meus livros do covid).
(Volto a encontrar nas redes sociais um gozo generalizado com a propaganda das candidaturas às eleições autárquicas. Por isso recupero este meu postal de 30.7.2017, do qual me lembrei quando encontrei o meu co-bloguista José Navarro de Andrade a resmungar no facebook contra estes tiques dos pretensos "urbanos").
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Talvez nada mostre tanto a abjecção intelectual da classe média portuguesa do que esta já tradição: a cada eleição autárquica surgem colecções partilhadas na internet do "ridículo" captado nas campanhas em contextos rurais ou periurbanos. Sim, o poder local tem muito que se lhe diga (mas não será isto). E sim, o seu seguidismo, mimetismo até, ao estilo propagandístico "nacional" é pobre.
Mas este humorzito de merda, este chalacismo com a ruralidade ou, melhor dizendo, com a localidade, com os recursos, características e preocupações muito situados, "territoriais", é mesmo o espelho da patetice urbana, essa que se julga cosmopolita. A deste netos de migrantes, malteses, chapeleiros, pastores ou seminaristas armados em finórios, envergonhados ou meramente deslembrados das famílias de onde vêm. Para esta gente Portugal é Lisboa (e o Porto) e o resto é bom para ir à praia, para o turismo rural. E como não há taco para grandes coisas então fica-se em casa na internet a gozar com esse resto, a dizê-lo piroso.
São os trocadilhos de merda (Coina é uma constante, e gente que acha de mau tom escrever no FB ou em blog cona ou caralho, não se exime ao ademane paneleiro de brincar com o nome daquela terrra). É o gozo com as características físicas dos candidatos, porque carecas, feios, gordos, velhos ou seja lá o que for, feito por patetas que votam em candidatos urbanos que surgem retocados (e muito) nos materiais propagandísticos, pois apoiados por enxames de assessores, cabeleireiros, massagistas e photoshopeiros. É o abandalhar com os nomes das terras, feito por imbecis que dizem "shopping", "paper", "abstract", "header" e têm as ruas citadinas cheias de lojas com nomes em inglês, e que acham "cool", um "must" até, ajavardar com a toponímia portuguesa. É o avacalhar das causas e preocupações locais, feito por morcões que depois nem sequer percebem exactamente porque votam nos candidatos para as suas grandes câmaras, a não ser que "este é a favor da/contra a" geringonça.
Talvez o mais significativo que já vi foi este: numa localidade há um cemitério que se tornou insuficiente. Provavelmente é difícil aumentá-lo. O candidato (desconheço por completo os seus hipotéticos méritos, bem como a situação da localidade em causa) escolhe a questão como fundamental, decerto que dialogando com os fregueses/munícipes. Os palhaços das cidades (que as tratam a tratos de polé, já agora) riem-se, basbaques.
Lembro-me de Maputo, onde o cemitério de Lhanguene estava cheio, "sobrepovoado", o quão até dramático era irmos enterrar os nossos, tão apinhado estava o terreno. Lembro-me do meu bom amigo, que foi excelente vereador, e que tinha esse pelouro. Das dificuldades que teve, e mas contou. Lembro-me do júbilo (sim, júbilo) sentido quando o novo cemitério de Maputo foi inaugurado. Porque era uma tremenda necessidade.
E olho para esta gente aqui, para estes filhos e netos de ratinhos a julgarem-se burgueses, a largarem risos sobre os seus, sobre o "piroso" que julgam reconhecer. Pirosos.
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