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Nenhures

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Este final do primeiro quartel de XXI traz esta grande surpresa para a gente da minha geração e da anterior: o regresso do espectro da guerra nuclear, o qual para as gerações mais novas será apenas um dos últimos sub-capítulos do manual de "história universal", aqueles que já nem se estudarão pois "não saem no exame". Talvez também por isso as reacções mais acaloradas a tudo isto que nós, mais-velhos, vamos tendo - excepto as daqueles que são mero refugo humano - diante dos tiranetes que aventam, mesmo que apenas implicitamente, a hipótese do uso desse armamento.
 
Mas a época permite também confirmar uma constatação que foi óbvia desde, pelo menos, o início de XXI, a enorme mudança "geopolítica". Se em tempos recuados o "mar do meio" foi o Mediterrâneo desde XVI que se tornou o Atlântico. E agora é o lago Índico-Pacífico.
 
Pois tive curiosidade em perceber a votação de hoje na ONU, a tal esmagadora censura à Rússia - 141 países a favor, 5 contra, um punhado que se esqueceu de aparecer. E 35 países que se abstiveram, à imagem da super-potência China e da proto-super-potência Índia. E nesse passo seguiu toda a Grande Falha (ou Vale do Rifte, se com anglicismo), mais o seu cotovelo atlântico.
 
Uma briga ali às portas da Eurásia - mesmo que com bravatas nucleares? Lomé/Cotonou já não importam, os modelos de futuro e as interacções ambicionadas estão alhures e os europeus que sigam irrelevantes. Não venho com juízos , desde os meus 30 e picos que era evidente que assim seria. E agora já é.

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Face ao que se passa na Ucrânia dir-se-ia secundário atentar no que algumas figuras proeminentes de pequenos partidos portugueses têm proclamado a esse respeito. Mas será importante entender (até "para mais tarde recordar") o que vêm dizendo, tão demonstrativas são essas declarações das mundividências que têm e dos anseios políticos que perseguem. Não para estabelecer postulados meramente moralistas mas para sublinhar a sua fobia à democraticidade, que transparece nas suas manipulações da História, e a qual convém explicitar até pela sua influente presença na comunicação social (televisão e jornais ditos "de referência") - muitíssimo maior do que o efectivo peso eleitoral dos actuais partidos comunistas -, na qual promovem uma chã propaganda falsificacionista. Mas também para sublinhar a absurda ausência de crivo crítico sobre as aleivosias que vão botando, embrulhada numa carnavalesca máscara dita "diálogo democrático" mas que nada mais é do que colaboracionismo.

Esta incompetente colaboração com os locutores destas aleivosias chegou agora a um ponto quase inacreditável. Na sequência da invasão russa da Ucrânia o secretário-geral do PCP criticou Putin, reclamando - em declarações tornadas oficiais pelo seu partido - o respeito pela "notável solução que a União Soviética encontrou para a questão das nacionalidades e o respeito pelos povos e suas culturas". Sabia-se que a ex-deputada Rita Rato - à qual a estrutura do PCP fez herdar a direcção de um museu estatal - desconhecia o tema "Gulag". E que o ex-deputado tatuado Miguel Tiago é um negacionista do Holodomor. E todas essas ignomínias intelectuais são acolhidas como meras idiossincrasias dos comunistas locais. Mas temos agora o desplante total do PCP e do seu secretário-geral, de um vil negacionismo anunciando como "notável" (no sentido de "virtuosa") a política soviética face às "nacionalidades" (muitas vezes ditas "minorias étnicas").

E proclamam uma aleivosia destas, sem rebuço, 66 anos depois do XX Congresso do PCUS, 30 anos após a queda da URSS. Sabendo-se bem os dramáticos atropelos feitos às populações daquele país (ver p. ex. aqui um rol dessas acções de perseguição a "nacionalidades", sendo que existe vasta literatura historiográfica sobre este assunto. E sobre o genocídio na Ucrânia ver, para seguir bibliografia portuguesa, este estudo). E é esta falsificação da História que o PCP e os seus dirigentes continuam a promover, apoiados por militantes e simpatizantes mais ou  menos intelectualizados, essa "parada de idiotas úteis" como bem os define Paulo Batista Ramos, sempre acolhidos no "jornalismo de referência" - como nota o Pedro Correia, exemplificando com o "Público" de hoje, jornal cuja activíssima célula "decolonial" se esquece de atentar numa barbárie destas.

A placidez da recepção a esta proclamação negacionista é tão absurda que me parece necessário um contrafactual para a explicitar, desnormalizando-a. Imagine-se que o partido CHEGA ou o seu presidente Ventura, sobre os quais se exige uma "cerca sanitária", desencadeia proclamações basto elogiosas sobre o colonialismo em África - não será assim tão descabido esperar isso pois lembro-me que, in illo tempore, no do frenético bloguismo "liberal", o prof. Arroja clamava que os escravos africanos levados para América tinham com isso beneficiado, pois passando a gozar de melhores e mais longas vidas, argumento muito a la XVIII e até inícios de XIX... Fujamos ao nosso colonialismo, sempre temática sensível. Imaginemos que, por algum motivo, a liderança do CHEGA elogia o "notável" regime colonial alemão na Namíbia ou as "notáveis" virtudes civilizatórias da Bélgica de Leopoldo no Congo

Que então se diria, entre aqueles para cá da "cerca sanitária", sobre essa abjecta falsificação da História? Louvaríamos (seguindo o ror de elogios que recobriu o sec.-geral Sousa aquando do seu recente problema de saúde) a "face granítica" de "homem honrado", "simples", "franco", "simpático", "empenhado", "humilde" do locutor dessas aleivosias colonialistas? Com toda a certeza que não, e decerto que cairia o Carmo e a Trindade entre os entusiásticos "decoloniais". Então a que propósito é que se aceita com simpatia esta comunista falsificação, ainda por cima sobre assuntos similares que nos são historicamente mais próximos e que, evidentemente, se estão a refractar na actual crise europeia?

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Mas estes quadros mentais não se esgotam no PCP. Há dias vi um excerto televisivo no qual a deputada Mariana Mortágua algo sumarizava as causas desta crise ao invectivar o governo ucraniano de "corrupto" e "neonazi" - sendo que este é um tópico recorrente, e lembro que já há três anos o activista anti-discriminações Ba reduzia os ucranianos a nazis, ante o silêncio das hostes identitaristas, quantas outras vezes mui especiosas em questões de epítetos... -, reproduzindo qual um desses "idiotas úteis" a propaganda moscovita. E ao falar sobre o assunto logo amigo mais atento me recomendou a audição deste programa Linhas Vermelhas

Convém ouvir - e até bastarão os primeiros cinco minutos. Em primeiro lugar, e num plano mais geral, é um espantoso exemplo desta perversão normalizada na imprensa portuguesa, a atribuição aos políticos do papel de animadores/comentadores. Ou seja, o primado da reflexão sobre as realidades actuais não é destinado a jornalistas, a investigadores, a profissionais especialistas, a académicos, a membros das associações da sociedade civil, etc. Mas sim aos políticos. Isso é uma dupla perversão: se quantas vezes nos queixamos da falta de qualidade da "classe" política como é possível que isso não se reflicta na pobreza da análise generalista que os políticos trazem? E é evidente que os políticos em actividade têm uma análise do real em função das agendas partidárias, o que ainda mais a empobrece, por defeito de enviesamento e, quantas vezes, de autocensura.

E estes breves minutos iniciais são disso exemplo paradigmático. Nas vésperas da invasão russa Mortágua nega a possibilidade dessa ocorrência, atribuindo os alvitres dessa possibilidade a mera propaganda ocidental e aos discursos de alguns líderes (Biden, Johnson) - tamanho o seu aprisionamento a um visão anti-"ocidental", de facto avessa às democracias liberais. O vigor das suas certezas ali proclamadas são um evidente, enorme e até acabrunhante sinal de incompetência para aquela mera tarefa de "comentário político" sobre a actualidade internacional. Mortágua torna-se ali ridícula. Mas não será decerto por isso afastada daquele palanque de propaganda político-partidária. 

Mas muito mais relevante do que isso é o conteúdo da sua argumentação. Critica Putin e seus anseios. Mas algo justifica a sua política devido a uma contextualização (a la carte) do processo daquela região, uma típica historicização que se pretende legitimadora. Invoca a condição "humilhada" da Rússia e a sua necessidade de um "Espaço Vital". Isto é tão boçal que custa a crer - pois é a pura  recuperação do argumentário da Alemanha nazi, a questão da "humilhação" com o tratado de Versailles e a necessidade de abranger um Espaço Vital (a apropriação nazi do Lebensraum de Ratzel). Chegámos a isto, em Mortágua a repulsa pelas imperfeitas democracias liberais é tamanha que "compreende" o seu agressor imediato através de termos, ideais, com esta genealogia. E temos então a tão "respeitada" e tão "competente" deputada da "esquerda" tão "identitarista" (e nisso "multicultural") a valorizar a necessidade do Lebensraum...

Enfim, há anos tanto se gozou quando Cavaco Silva trocou Mann por Morus, tal como quando Santana Lopes se atrapalhou com Chopin, anódinas asneiritas. E agora a camarada Mortágua avança o Lebensraum contra os norte-americanos e a União Europeia? E a atoarda passa incólume. E ainda bem que não é apanhada como dislate, até aparvalhado. Pois não é apenas isso, mas sim denotativa da malvadez da deputada, dos seus perversos desígnios políticos.

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Antropólogos russos contra a guerra (texto de petição)

Um amigo em Maputo - pouco prolixo no Facebook, e bem menos sobre temáticas com incidência política - escreve no seu mural, desencantado: "A quantidade de amigos moçambicanos a favor da invasão da Ucrânia envergonha-me." Cá de longe vejo o mesmo, não me envergonhando mas ficando com pele de galinha.
 
E também com alguma surpresa. Não pela existência dessa corrente de opinião, pois conhecendo o país será de a esperar. Mas pela sua dimensão, a sucessão de postais e comentários no Facebook que surgem nesse sentido - vários explícitos ("a Rússia tem razão", "é legítima a sua acção"), imensos implícitos ("a Rússia tem razões"). E alguns verdadeiramente patéticos ("o "Norte" quer impor um barómetro moral mundial e depois não liga aos conflitos em África" - dos quais é, evidentemente, responsável tanto quanto às causas como às formas como são dirimidos, é a perene tese). Não vou elaborar muito sobre este ambiente intelectual - mas recomendo a leitura de um texto sobre o assunto que o sociólogo Elísio Macamo acaba de colocar no seu mural e com o qual, grosso modo, concordo.
 
Mas há um ponto que sublinho, a abrangência do negacionismo que ali se encontra. Por um lado, a irrelevância atribuída a este "pequeno" detalhe: no fim-de-semana a Bielorússia fez um referendo - antes planeado, e com resultados prenunciados pelo seu presidente ainda em 2021 -, assim disponibilizando-se para ter (mais) tropas russas e arsenal nuclear encostados à União Europeia e à NATO. O que diriam estes opinadores moçambicanos (e as suas fontes brasileiras) se na sequência disso os EUA/NATO tivessem invadido a Bielorússia?
 
Mas o negacionismo vais mais longe, refutando a relevância deste processo. Telefonei a um querido amigo, pois fiquei verdadeiramente estupefacto com proclamações descalibradas que fez a este respeito. Ali ao Whatsapp disse-lhe "isto é a maior guerra europeia desde 1945!", enfatizando o meu estupor diante das suas opiniões, ao que levei o atestado de menoridade intelectual: "qual maior guerra!!! estás a ir na propaganda dos americanos". Apenas quatro dias depois presume-se haver já 7 milhões de deslocados e estão mesmo quantificados 400 mil refugiados em países vizinhos. Números que seriam de esperar, e que previsivelmente crescerão. Mas nada disto, este cansativo real, importa pois é apenas propaganda americana... Dado que o fundamental é criticar o "Ocidente" e, em cabendo, Portugal.
 
Isto não seria relevante se fosse apenas o ruído do magma das redes sociais. Mas não é, pois encontro alguma gente do escol nacional botando neste sentido. E, isso sim é-me doloroso, encontro antropólogos neste "adeptismo" mais ou menos explícito à ofensiva russa.
 
Por isso partilho aqui este documento, produzido por um conjunto alargado de antropólogos russos, opondo-se a esta guerra sem rodeios nem derivas "contextualizadoras" (dessas que surgem como se legitimadoras). E lembro que a Rússia é uma "democracia musculada", e que mais ríspido está agora o regime. E que sendo assim produzir e subscrever um texto destes é muito mais difícil do que promover os inúmeros abaixo-assinados contestatários no nosso pérfido "Ocidente".
 
Partilho o texto na esperança de que alguns antropólogos entre o Rovuma e o Maputo, do Zumbo às águas do Índico - e se possível também alguns primos das outras disciplinas, que de facto nos são siamesas -, possam ler o que os colegas russos dizem. Talvez ajude.

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