Marcelo e a Incompetência
"La femme serait vraiment l'égale de l'homme le jour où, à un poste important, on désignerait une femme incompétente." (Françoise Giroud, Le Monde, 11 de Março de 1983). Parece que a "boutade" só agora chegou a Lisboa.
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
"La femme serait vraiment l'égale de l'homme le jour où, à un poste important, on désignerait une femme incompétente." (Françoise Giroud, Le Monde, 11 de Março de 1983). Parece que a "boutade" só agora chegou a Lisboa.
A propósito do meu postal de ontem sobre os furiosos com a cantora brasileira - essa que agitou bandeira alheia em território pátrio - recebi alguns resmungos, no FB, nos blogs e até em privado. O implícito nestes é que eu vou desatento ao simbolismo da(s) bandeira(s), aos valores que esta(s) encarna(m) - enfim, isto para além de outra coisa que eu desconhecia e que só percebi após ter escrito o postal, a mulher é avessa ao presidente Bolsonaro e para os fascistas (não há outro termo) portugueses isso desmerece-a. Enfim, seja lá como for, isto lembrou-me alguns episódios meus com bandeiras, minudências que servirão para ilustrar como com elas me relaciono. E partilho-os com quem tiver paciência para me aturar.
Há uns anos passeava eu na bela Évora. Ia (muito) enlevado mas ainda assim notei que passava por um edifício militar. E à janela do primeiro andar do quase paço assomou um tropa - entenda-se, alguém pouco graduado. Logo eu, em tom simpático e colaborante, cá de baixo o avisei "ó amigo, desculpe lá, já reparou que a bandeira está toda esgarçada?". Ele sorriu, como se aflito, deu-me uma onomatopeia, grunhiu um obrigado, a senhora que me enlevava olhou-me num franzir do seu belo cenho como quem lamenta "saiu-me um patriota em sortes..." e assim segui todo ufano. Uns tempos depois estava eu na Brasília da Europa e tive de tratar de um assunto na embaixada. Enquanto esperava fui à porta esfumaçar e nisso olhei para cima, em desfastio. E ali estava uma enorme bandeira, já com sinais de alguma veterania. Depois, ao ser recebido pelo (gentil e eficiente) funcionário, avancei da pertinência em mudarem a bandeira, simpática contribuição cidadã acolhida com alguma atrapalhação, naquele "vou transmitir" de alguém já exausto por ter de aturar tantas reclamações destes chatos, nós-todos.
Mas isso são pequenos detalhes. Pois do que mais me lembro é da minha irritação ao vir a Portugal após o Euro-04. O Sargentão Scolari havia transformado o país numa "moldura humana", os campinos haviam escoltado a cavalo a selecção "de todos nós" e toda a gente afixara a bandeira em tudo o que era sítio. Passados meses ainda a carregavam, feita colecção de trapos imundos, devastados pela mansidão dos elementos, nas marquises, nas (agora inexistentes) antenas de autocarros e táxis, nos balcões das tabernas, nas janelas dos carros, sei lá onde mais. E, para cúmulo da imbecilidade patrioteira, uns anos depois, e a propósito de uma outra competição internacional da bola, o jornal "Expresso" distribuiu uma bandeira nacional com o nome de um banco (e que banco!!!) impresso. Ou seja, a rapaziada - entenda-se, os doutores do Facebook - não toma conta da bandeira, a nacional. Não aprendeu a manuseá-la, não a cuida, trata-a como toalha de bidé ou poster de rock. E depois, muito de vez em quando, abespinha-se...
E não é só com os tratos de polé que a nossa sofre, mas também nas formas como outras nos são impingidas. Há uns anos fui jantar a um restaurante italiano, ali às Janelas Verdes, uma casa térrea. Francamente nunca percebi qual a razão do sucesso da comida italiana num país com a nossa gastronomia. Mas, enfim, ia em grupo e outrem tinha proposto o destino. À chegada, esperando à porta pelos convivas, notei que ali estava a bandeira italiana hasteada, num mastro colocado no telhado...! Ainda resmunguei, num "vamos comer noutro sítio" proposta cuja recusa foi acompanhada por muda convicção de estar eu maluco. Pois para todos é normal que uns sacaninhas hasteiem a bandeira pátria na baiúca onde servem pizza e massa em pleno centro de Lisboa. E não só os clientes acorrem a tal despautério como ninguém os repreende, multa ou - como deveria ser - lapida. Mas, claro, depois de arrotarem o pimentão e os maus enchidos abespinham-se com uma outra qualquer bandeira alheia, se agitada por mão-própria.
Finalmente, e para terminar este excurso sobre a minha afectividade pelas bandeiras: há umas décadas estava eu em Cabo Delgado. Fui passar um fim-de-semana a Pemba. Já na alvorada de sábado, num pequeno bar da Feira, um compatriota, em casa de quem eu estava aboletado, zangou-se comigo por razões que ele terá imaginado passionais mas que apenas provinham da sua intoxicação etílica. E decidiu bater-me, o sacana. "À traição", como se dizia na minha juventude: meteu-me os dedos nos olhos, atordoado fiquei, deu-me dois ou três socos de rajada, tudo isso antes de eu ter capacidade de lhe dizer "tem lá juízo!". Face a esta convocatória ficou ele num entroncamento. E nesse mudou de rumo, passando a partir a mobília do bar, mesas e cadeiras de madeira, diante da total estupefacção de donos, empregados e clientes. Após alguns estragos cometidos - que lhe custaram uns centos de dólares pagos umas horas depois, justiça lhe seja feita -, avançou para a decoração, que consistia numa colecção de bandeiras nacionais, tão típica em lugares de convívio de expatriados, como ali era (também) o caso. Mas então, ao perceber-lhe o intuito, gritei-lhe "ó pá, as bandeiras não!!... as bandeiras não!!!". Então ele, o compatriota, estancou. Olhou para mim. E chorou. Pois tudo, muito mais do que aquilo, não lhe estava a correr bem, como era óbvio. De seguida alguém o levou a casa. E eu fui dormir para o hotel, raisparta, que não sendo caro era bem puxado para a minha parca bolsa. Passadas algumas, poucas, horas lá fui comer o matabicho ao Viking, com menos mesas e cadeiras. Mas com as bandeiras nas paredes.
(Companheiro, se algum dia leres isto, repara que vai o texto acompanhado de um enorme abraço saudoso).
Devido ao meu recente contributo para a situação sanitária nacional, tendo então proposto a Açorda de Bacalhau para mitigar os perigos do veraneio, fui agora convocado para um Encontro de Culinária Política, ontem ocorrido.
Tratou-se de mais uma acção de resistência, vero prenúncio de agit-prop, contra as soluções únicas, majoradas pela proclamação da sua indiscutibilidade. As quais vão sendo defendidas pelos seguidores das expressões ditatoriais, que actualmente tanto ressurgem, esses crentes na fusão da Razão de Estado com a Razão da História, assim sempre lestos a anunciarem as suas opções como fundamentadas num desígnio Moral a que chamam Futuro. E também outras, quantas vezes daquelas distintas, apresentadas pelos adeptos de vias totalitárias, sentidas como virtuosas pois valorizando características e tendências ditas ônticas de alguns "grupos" sociais entendidos como telúricos - ainda que venham sendo entretanto delineados -, e assim sacralizadas quais Ética irredutível.
Neste seminário foi proposta a tese do Arroz de Bacalhau, através de um documento gizado por mãos viris - e nisso alheias ao empratamento pequeno-burguês de fachada gastronómica. De antemão fui informado que se tinham firmado robustas barricadas contra a Salmonela - essa arma da reacção que vem sendo manuseada contra o nosso Serviço Nacional da Saúde -, conformes à mobilização das brigadas sanitárias.
Sem qualquer rebuço, e ainda menores delongas, desde logo me foram apresentados os argumentos, e de modo bem estruturado. Tudo assenta na multicultural tradição pátria, o azeite, em ror generoso mas não espúrio, irmanado em refogado ao alho e à cebola. Quando essa Santíssima Trindade está já consagrada acolhe o convívio do pimento, o mais colorido possível, e do tomate. Num brando depois, e seguindo os ditâmes da perspectiva empiricista, é apresentado o arroz, neste caso o Carolino - por opção patriótica mas nunca xenófoba -, e estipula-se uma pausada mas ágil coreografia destes elementos, para obstar a quaisquer ensimesmamentos. Momento após o qual o já agregado é aspergido por uma farta dose, triplicando a de arroz, da água oriunda da prévia cozedura do fiel amigo. Sobre tudo isto será deixado um punhado de sal - cuja medida dependerá não só das perspectivas dos comensais relativamente ao futuro próprio, como também do prévio estado do bacalhau, se de salga como é nosso timbre identitário pelo menos desde o herói Corte-Real e o pirata Cabot, se congelado, como vem sendo globalizado. E, finalmente, é este - entretanto grosseiramente desfiado - albergado em tudo isto que para o acolher foi preparado, seu último descanso, verdadeira nave na qual ascenderá ao além. Depois, já lume desligado, tudo é ornado com ramos de salsa viçosa e odorífera, sinal do júbilo celebratório.
Apresentada a tese, o trio presente no seminário encetou o debate - em formato qual podcast, assim muito actual - cerca das 13.30, esmiuçando os argumentos com um piripiri caseiro de excelente confecção, cuja honestidade ideológica se traduz no facto da sua assertividade não poluir o paladar. Em tudo isso se socorreu de uma honestíssima garrafa de vinho branco, apresentada à temperatura adequada, à qual se seguiu - numa descontinuidade quebrando os habituais trâmites mas devida a opção conjunta - de um outra de tinto, da mesma lavra qualitativa. Tripla dose de conduto consumida, devido à profundidade da temática em questão, houve um ligeiro "intervalo para café", após o qual se acolheram algumas aguardentes oriundas das resilientes zonas católicas das ilhas britânicas, tão do nosso agrado - as referidas ilhas e as aguardentes.
Entretanto, já cerca das 17.30, e ainda em acalorado debate sobre bens e males do mundo, e por deveres da militância de cidadania automobilística, transitei para o consumo de um elixir que não bebia há muitas décadas, um tal de "Ginger Ale" de sabor desejavelmente esquecível, enquanto vários cafés iam agredindo o meu horizonte de hipertenso. Depois, e já noite bem feita nestes longos dias de Junho, terminou o colóquio. Norteei-me então, rumo a Sul, e o casal anfitrião, ainda que exausto, terá produzido as exigíveis Actas. Decerto que exarando um "bolas, o gajo nunca mais se ia embora!".
Açorda de Bacalhau, por necasdevaladares
(Postal para o meu mural no Facebook)
Brian Wilson torna-se hoje um octogenário (um texto de 2011 no The Guardian). Será daqueles marcos surpreendentes. Deixo um (longo) documentário, para recordar um dos mais esquivos...
Brian Wilson: The Genius Behind The Beach Boys: Amplified
O McCartney faz hoje 80 anos. É dele a primeira canção de que me lembro - "Tenho seis anos, é noite, estou na sala da nossa primeira casa, na rua cidade de Cabinda em Lisboa, eu no braço da poltrona do meu pai, aquela orelhuda, e nela sentada a minha irmã lê-me um livro dos "Cinco", da Enid Blyton. Na rádio, aquela hi-fi Telefunken, acontece o diário "Quando o Telefone Toca". Alguém pede esta música, que eu nunca ouvira. E de repente, quando ela soa, e sei lá porquê, é um momento lindíssimo, que nunca mais esquecerei. Felicidade? Há quarenta anos." - foi o que botei em 2010.
Um beijo, mana... e deixo(-te) mais uma das mesmo dele. Que é uma das que quando tocam me deixam exactamente com o ar apatetado e feliz desta audiência. Há lá algo mais importante?...
(Fotografia de António Cotrim/Lusa; Festas de Santo António, Lisboa, 2022)
Não será descabido dizer que o registo de acção política de Marcelo Rebelo de Sousa é histriónico. Dele não se pode esperar qualquer trégua, nela intentando uma gravitas que tenha como objectivo densificar a sua intervenção, que valorize seus discursos e silêncios, atitudes e intervenções - e que não é, bem pelo contrário, sinónimo de uma postura hierática. Mas sim de ponderação.
O seu trajecto é, apenas, de um egocentrismo radical, um projecto exclusivamente pessoal de teor populista (patente no afastamento aos partidos, na encenação da "familiaridade" com o "povo"). Nisso mimetiza o registo muito digno do seu pai - um doloroso anacronismo, pois exercido numa época histórica radicalmente diferente e por um político de diferente conteúdo. Não surpreende nisso (escrevi sobre esse evidente mimetismo em Dezembro de 2016, para quem tiver curiosidade). E a isso se associa uma adesão total à superficialidade comunicativa, que provém dos seus tempos de "enfant terrible" na imprensa "de referência" lisboeta. Mas que tomou aspectos radicais na vertigem da exposição televisiva, pela qual pavimentou o seu rumo até Belém - e, de novo para quem tenha curiosidade, recordo um postal meu de Junho de 2008, época em que não imaginava até onde Rebelo de Sousa se alcandoraria. E nesse texto de 2008 dava eu conta da estupefacção da minha filha, então com apenas 6 anos, com a ridícula irrelevância de Rebelo de Sousa!
Agora, nestas festas populares de Lisboa, o Presidente da República possibilitou esta fotografia. Que logo se tornou "viral" (como se dizia antes da Covid-19), levantando inúmeras dúvidas sobre a sua veracidade, tamanho o despropósito patente. Mas a fotografia é real. Estou certo que muitos saudarão o momento, invocando a sua genuinidade, a simpatia ali extrovertida - características essas que são exactamente as opostas à personalidade de Rebelo de Sousa, como confirmarão em surdina todos os que o conhecem... E mais ainda porque a cena da fotografia é até polissémica (nas festas populares, uma senhora grávida do "povo", negra, porventura imigrante ou descendente de imigrantes, tendo o seu próximo rebento ungido pelo beijo presidencial...).
Mas, francamente, isto é demasiado. Passará porque Rebelo de Sousa tem uma "belíssima imprensa". Só isso justificará como passou incólume a ter sido o verdadeiro responsável pelo longuíssimo período em que o país esteve sob governo de gestão, em pleno pós-Covid-19, crise energética, alterações financeiras e eclosão da guerra na Europa. Algo que foi uma verdadeira catástrofe política no seu duplo mandato presidencial. E, mais do que tudo, demonstrativo da tal falta de ponderação política, bem mais grave do que aquela que já demonstra no seu frenesim quotidiano.
Mas a situação presidencial não se avaliará apenas pelo sopesar do efeito dos seus actos e das suas inacções. Pois há atitudes, momentos, breves que sejam, que vão sendo preocupantes. Há três meses houve uma votação na ONU sobre a invasão russa. Moçambique, tal como vários países africanos, absteve-se. Aqui disse ser isso normal, são as opções soberanas de posicionamento bilateral e multilateral - e, ainda para mais, o país estava no processo de candidatura ao Conselho de Segurança da ONU. Ainda assim, foi algo estranho que logo de imediato o nosso PR tivesse visitado aquele país. Mas também é compreensível, pois a diplomacia faz-se muito mais deste gestos do que de tonitruâncias espúrias. Rebelo de Sousa foi a Moçambique para inaugurar um hotel construído por um grupo português (Visabeira), razão talvez insuficiente mas porventura instrumental. Ora o que me sensibilizou nas reportagens foi o discurso que proferiu nessa cerimónia, demorando-se sobre aquele local apropriado para "conversas românticas com passarinhos"... Pareceu-me estranho, mas talvez tivesse sido apenas fruto de cansaço ou um mero improviso algo desconseguido. Dois meses depois foi a Timor, tendo cometido o clamoroso erro político e securitário de anunciar a visita do Primeiro-Ministro à Ucrânia. Mas, ainda mais significante para o seu momento actual, foi a excitadíssima atitude diante de Xanana Gusmão. Seguido de um discurso numa escola local, apelando a gritos e cânticos, um momento até pungente de incomunicação, e de incompreensão do contexto. Agora, em Lisboa, este beijo - quase pastoral -, até patético.
Honestamente, a sensação é que Rebelo de Sousa não está bem. Porventura macerado por efeito de insucessos políticos, ou por outras razões desconhecidas, a sua coreografia está descalibrada. E em assim sendo este tipo de atitudes continuarão, e aumentará o seu descabimento. Começa pois a ser óbvio que urge a intervenção da sua "entourage". Mas qual?, é a pergunta. Que núcleo político, real, está em torno do Presidente da República Portuguesa? Que o possa ajudar neste momento que começa a parecer crítico.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.