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No estádio de Alvalade caiu ontem balde de água fria: a derrota face ao Chaves. Em quatro jogos oito pontos perdidos - e de distância para o rejuvenescido Benfica e, porventura, saber-se-á hoje, para o campeão Porto. Direi eu que o Natal aconteceu ontem, em ríspido pessimismo.
Não será difícil encontrar as causas para este balbuciar, o qual demonstra um plantel frágil, promovido pelas saídas insubstituídas de alguns jogadores e pelo empréstimo de outros (Tiago Tomás não teria lugar neste Sporting? Quaresma não terá lugar nesta defesa?) e algum desnorte do técnico, porventura advindo do seu desconforto. De facto, a preparação desta época (composição do plantel) muito se distingue das acontecidas nos dois últimos anos, nas quais o clube foi competente. Surpreende um pouco a contenção financeira na aquisição de jogadores, pois o clube tem tido assinaláveis lucros de transferências e de participações europeias, cresceu a massa associada e, decerto, a receita publicitária e de bilheteira (bilhética, diz-se agora, sei lá porquê). Além de que o Sporting findou contratos com uma larga quantidade de jogadores ainda sob contrato mas que não compunham o plantel principal, herança de anteriores (e algo desvairadas) gestões.
Haverá uma reestruturação financeira a cumprir, e é saudável fazê-lo. Mas também a havia nas duas últimas épocas e isso não impediu o clube de a perseguir enquanto reforçava o seu futebol. Mas se um clube que atingiu o patamar do Sporting dos últimos anos - conquista de troféus, ascensão nas campanhas europeias, e as concomitantes receitas - não reinveste, não se reforça, então perderá receitas futuras, e aumentará os seus problemas económico-financeiros.
Enfim, esta "crise anunciada" para 2022/23 aparenta ter duas causas: a primeira será a de um "excesso de confiança" após o magnífico título nacional e a bela época transacta. Um "isto assim está a correr bem" pensado como suficiente. Mas a verdadeira causa fundamental residirá alhures: dentro de pouco tempo acontecerá o Mundial do Catar, com todo o trabalho organizativo que implica, ao que se acresce ser esse torneio um desejado trampolim para o incremento do poderio futebolístico naquele país. Para além disso, a organização do futebol do Catar esteve também em frenesim nos últimos meses devido à sua tutela do Paris St-Germain, o colosso franco-árabe do futebol europeu: a longa renovação de Mbappé, tudo o que isso implicou de reestruturação do plantel desse clube e, acima de tudo, da sua orgânica directiva.
Ou seja, essa azáfama devida ao maior evento futebolístico mundial, ao impulsionar do futebol catari ("relações públicas" daquele país), e à reestruturação do mais rico dos clubes bilionários mundiais, terá em muito feito esquecer a amigável (até familiar) assessoria ao nosso Sporting. Os resultados estão à vista... O destino era mais do que previsível. O tonitruante do processo é que talvez não...
Vim a Lisboa para a ver, querida e antiga amiga, companheira em Moçambique, ela andarilha lá e no mundo, agora regressada após meses, quase um ano, na "Pérola..." e a calcorrear os "distritos", para minha - até dolorosa - inveja. Abraçamo-nos, eu sigo no defeito da franqueza e "estás óptima", ela riposta, impiedosa connosco num "estou nada, estou velha!", eu rio-me, pois por mim concordo (e muito) mas não nela, que sempre lhe noto o viço do olhar límpido, esse daqueles que ainda se conseguem encantar. Com lucidez...
Sentamo-nos na esplanada, ali junta à Avenida de Roma, as cercanias dela. Encaramos o célebre - pois "dos tempos" - "Cockpit", enfrenta ela um cocktail vistoso, eu a monástica imperial, e juntos depenicamos um qualquer petisco elegante. E mergulho, até sôfrego, no que me narra sobre esse do Niassa ao Maputo que agora voltou a percorrer, dos trâmites do seu enérgico trabalho, e uns laivos (a meu pedido) sobre os amigos comuns. Não vertemos saudosismo - o muito que então nos foi bom assim nos ficou -, ambos isentos do cândido sonho de regressar ao passado. Temos, sim, interesse: o meu nela, e seus passos, e espero que tal lhe seja recíproco, apesar do baço que manco. E sobre o país, daqueles tão enviesados rumos e esdrúxulos discursos, isso tudo que quando por lá até deixamos de estranhar mas que - e felizmente - nunca se entranhou.
Finda a tarde deixo-a, e avanço à Alameda no tornar a casa. Mas, já sozinho, deixo-me cair um pouco nostálgico, talvez do quando seguíamos companhia constante e do meio e tempo em que isso aconteceu. E, ainda mais, do como eu então era e deixei de ser, um pouco por decisão, imenso por erosão. Não me deixo invadir - nunca tal me permito, repito-o - pelo anseio austral. Mas é neste (des)ânimo, não pungente mas emotivo, que absorvo esta "Av. de Roma", a de agora, onde há tanto não andava.
Pois esta é também um pouco a minha zona, desde os infantis passeios semanais sob tutela paterna, a Rodrigo da Cunha avoenga, as compras Av. da Igreja abaixo, então agitada, o barbeiro na Manuel da Maia, almoços dominicais no "Paris" e "Isaura". Para depois, sabendo dos vizinhos partidos a estudar para o "Padre..." e para a "Dona Leonor" - pois das famílias olivalenses mais esclarecidas, a safarem os filhos daquele subúrbio escolar -, fazer por crescer nas primeiras matinées dançantes, ao “Beat” e “Browns” nessa era das “Cubas livres”, naquela fileira de cinemas, e mais no "Quarteto" – só décadas depois no “King” -, e a olhar os velhos nos bilhares do "Astória", os dealers de haxe na "Sul-América" - desse tráfego um dia filmado e mostrado no telejornal então único, “grande bandeira!” disse-se… -, as namoradas dos tipos com motos na "Mexicana". E ainda, após um passo avante, a ir espreitar o "Copacabana" reduto (dos) do meu pai, jantar na “Floresta de Madrid”, a tasca mais barata que conhecíamos, encerrar a “Munique” e daí escorregar ao “Pote” a mirar os nossos mais-velhos, estes ainda de samarra e, claro, suas motos e até carros.
Depois vieram os anos dos primeiros ordenados, lautos, (também) na vasculha das charcutarias e seus bons vinhos, ali a do “CCA”, onde o Miguel Bastos tinha uma das suas livrarias - essa que o Ubaldo Ribeiro antes frequentara, e celebrizara, em cândidos soslaios para a belíssima livreira que lhe inspirava as crónicas no “O Jornal”. E naquilo do retardar até ao limite as temidas consoadas familiares, arrastando-nos no "Roma", único estaminé aberto nessas noites, abrigo de solitários e já esgarçados casais vizinhos, remanescentes viúvas, solteirões anquilosados e daquele nosso punhado de intransigentes boémios.
Foi assim tudo até ao ter-me apaixonado, atrapalhado nisso, por uma miúda que vivia no prédio do “Frutalmeidas”, tanto que anos depois lá voltámos, vindos de Maputo, a passar os primeiros meses quando nos nasceu a Carolina. Para percebermos que era ali, afinal, o tal “mapa cor-de-rosa”, entre os pastéis de massa tenra, a bica matinal mesmo ao lado no “Polana” e o almoço, simples e sempre funcional, na contracosta do “Luanda”. Tudo isto acabou por me fazer anuir a dar os passos necessários para ali, defronte ao “Vavá”, vir a remoer os "anos prateados" (pois aos "doirados" não creio assomar), o que até teria acontecido não fora entretanto ter eu tropeçado, e com estrondo.
Lembro tudo isto agora, aqui entre a “Sílvia” e a João XXI, tão entristecido fico com o que já não cruzo, pois nem uma réstia da velha azáfama nem um pouco do discreto encanto (pequeno-)burguês que recordo. É hora de jantar no Agosto lisboeta, digo-me para justificar aquele deserto debruado de hambúrgueres, fancaria chinesa e “clínicas do pêlo”. Mas nisso não alivio o cheiro da degenerescência, a da “avenida” mas que é também a minha. Já esmorecera à chegada, notando desaparecida a sapataria ao “Hotel Roma” onde durante 30 anos comprei sempre o mesmo modelo de “Portside”. Mas descalço fico agora ao cruzar a “Bertrand”, abandonada a uma descuidada montra, quatro ou cinco exemplares de cada livro exposto, preguiçoso preencher do espaço, qual velho armazém a implorar trespasse.
E mais desalento me sobra após apenas meia dúzia de passos, face à “Barata” já fechada nesta tarde ainda soalheira. Indago e vejo afixado o encerramento diário às 8.00… Recordo a casa, mesmo ainda na sua versão inicial e o seu dono original, o senhor Barata que morreu triste, e como isso condoeu a Lisboa que lhe era clientela. E também a excitação que foi, naquela cidade desse tempo, o fruto da sua remodelação, o mobiliário inovador, o soalho de calçada, o ar fresco, a abundância de livros, o bom gosto mesmo. E o horário…, o horário… E bem mais tarde, lembro agora com azeda saudade, a semestral vinda de Maputo, e logo directos para lá, visita de primeiro dia na Pátria Amada, sítio de bons livreiros e livros, bom ambiente, para vasculhar fim de tarde afora, e pela noite até… É agora uma empresarial cadeia, Leya, má rima.
E sigo, nem estanco, vou resmungando, um velhote a falar sozinho na rua, só cuido de não gesticular: “já não há valores!”, “pois pudera, não se lê!”, nem “ninguém reage”, nesta modorra desistida… Cruzo a vazia Praça de Londres, sigo à Guerra Junqueiro rumo ao metro, e logo ainda mais me exalto. Pois a velha “Mexicana” está fechada, também sob o ferrolho das “20 horas”, ela que foi antecâmara e mesmo sede da animação juvenil e refúgio do convívio de meia-idade e seus idosos… Embrulho-me em onomatopeias, eriçado de pesaroso - pois nestas redondezas nada resistiu, talvez apenas o “Matos”, ainda de farta mesa e digna adega – e estugo o passo, em fuga deste subúrbio que foi a cidade.
De súbito, já a meio da avenida, sobressalto-me… entre uma pequena esplanada e uma montra com livros, afinal mesmo uma livraria. Reconheço um escaparate montado, com gosto – feito por quem lê e chama leitores. Passo atrás, espreito e avanço casa adentro, espaçosa, elegante de discreta, e recebo um forte odor “a novo”. Baixo toca a “banda sonora”, cativante – Joni Mitchell à minha chegada, depois virão “The Crystal Ship” e “A Perfect Day” entre outros. “Alguém da minha idade escolhe a música, e com bom gosto...” digo pergunto às duas livreiras, atentas e simpáticas apostas ao balcão, e elas anuem, sorridentes, e nisso escondendo qualquer possível incómodo diante deste façanhudo e retardatário cliente. Dizem-me que a casa é mesmo nova (“quinze dias” comprovam) e eu – enquanto murmuro, admirado, “quem é que hoje se mete a vender livros?” – dou uma volta pelas secções temáticas, bem compostas, decerto que por alguém que sabe da poda. Desço à cave, bem iluminada, com outras secções e, ainda mais, um belo espaço de convívio.
Estou encantado, com a bonita livraria e, muito mais, por alguém nisto avançar aqui. Subo, uma das gentis funcionárias (“colaboradoras” dirão outros) mostra-me o bar, bem fornido mas cujas garrafas têm ainda um ar virginal, e a sala adjacente, quatro ou cinco mesas para se beber (e ler, talvez) – ornamentada por fotos dos nisto clássicos Wilde, Pessoa, Hemingway, e há uma parede vazia “para o Lowry”, digo para mim, que o tipo é sempre esquecido pelos decoradores… Continuo o passeio, e nisto dou de caras com uma secção de “futebol” – “os livros de futebol não se vendem” disse-me um amigo, autor prolixo, quando lhe perguntei se seriam publicáveis os meus textos sobre bola, de que tanto gosto – dos textos e da bola –, e por isso acabaram eles no "O Meu Sporting". Até futebol têm, e rio-me.
Há muito que jurei não comprar livros, não só pelas pilhas nas estantes que esperam a leitura devida mas, muito mais do que tudo, porque sopeso o dinheiro, agora em cansativo exclusivo para o rancho… Tal como não bebo na rua, pois qualquer uísque alhures me chega para uma Queen Margot em Nenhures. Mas estou, repito-me, deliciado, e assim com urgência em voltar a ser (um pouco) do que fui. E compro o grande Dinis Machado, decerto que pelo menos terá uma ou outra pepita, acolhido folheado já com um Famous Grouse. Pois esta cidade que resiste à parvónia por cá dominante merece ser festejada, celebrada.
Escorropicho o copo e dão-me um “A Metamorfose”, edição da casa para presentear os clientes… Fico ainda mais agradado, terão percebido que a mulher-a-dias de Gregor Samsa é uma das minhas personagens de ficção preferidas?
Estou já na “linha vermelha” do metro, sei que vou um velhote com um sorriso apatetado na carruagem. Devo-o à Livraria Martins…
Há um mês uma actriz de telenovelas entrançou o cabelo e logo se desencadeou a polémica - a qual não se deveu à sempre aludida "estação parva" mas sim à evidente "era tonta" à qual alguns nos querem vincular. Entre académicos e activistas lá se fizeram ouvir os argumentos do costume, e mesmo "autocríticas públicas" até pungentes - e as declarações do músico Agir disso foram um caso paradigmático. E nessa mostra o músico, e os tantos que com ele concordam, a involução intelectual sofrida no país. Desde que alguém perguntou "Pode alguém ser quem não é" e à questão lhe juntou "A corda d'um outro serve-me no pé / Nos dois punhos, nas mãos, no pescoço," até este actual patético exemplo de contrição por "apropriação cultural" feito por um músico de ascendência portuguesa que se tatua e faz jazz. E que pode ir actuar à Festa do "Avante" sem ali aventar a impertinência das "opções de classe" do doutor Álvaro Cunhal ou do engenheiro Carlos Carvalhas, entre tantos outros - tema, de facto, similar e que há algumas décadas era brandido por estupores similares aos de hoje.
("Not appropriate": Boris Johnson recites Kipling poem in Myanmar temple)
Enfim, a nossa historieta do final de Julho fez-me lembrar Kipling. Sei que brandir o "campeão literário" do colonialismo britânico é, hoje em dia, algo desconfortável - e ao ver-me com o livro que abaixo citarei a minha filha deu-me, com bonomia, a conhecer este delicioso episódio de Boris Johnson em visita à Birmânia em 2017, citando o clássico colonial Mandalay , algo "not appropriate" diz-lhe, com a fleuma possível neste pós-império, o embaixador britânico.
Mas ainda assim recupero Kipling, a entrada do pequeno conto "Para lá da cerca", um passeio sobre os males da interracialidade, a bárbara crueldade oriental e a imoralidade ocidental desencadeadas pelo "pular da cerca", pela "incorrecção" dir-se-ia hoje, do inglês Cristopher (claro) Trejago:
"Haja o que houver um homem deve manter-se fiel à sua casta, raça e credo. Que o branco continue a ser branco e o preto, preto. Assim, o que quer que ocorra de mal faz parte do curso natural das coisas - não é repentino, nem estranho, nem inesperado." ("Para lá da cerca", Três Contos da Índia, 2008, p. 11. Tradução de José Luís Luna).
Ou seja, e para estes muitos d'agora, Kipling afinal é "much appropriate"...
Sei que esta é uma informação totalmente irrelevante para todos que a lerem, verdadeira "poluição comunicacional". Ainda assim aqui deixo nota que ontem me banhei, longamente, mesmo defronte àquele rochedo ilhota, em águas aprazíveis e, para minha surpresa, não gélidas. Há quase três anos, desde Aracajú, que não calcava a areia litoral. E há mais de uma década que não mergulhava no Atlântico luso, sempre a isso renitente devido às cálidas e sempre saudosas memórias austrais. Nisso, nesse ontem, assim rejuvenesci, rejuvenesço.
Depois fez-se jantar na noite longa, uma esplêndida garoupa a saciar seis adultos, em assombrosa varanda ali entre a frondosa serra, seu convento e o mar, debruado (afinal!) com a costa do Alentejo à vista. Recanto refúgio de querida amiga - de há já três décadas (pois agora elas se cumprem desde que começámos o mestrado), também actual veterana de Moçambique, tema que reinou à mesa, ainda que sem monopólio -, e da sua simpaticíssima família, que ali conheci. Mais rejuvenesci, mais rejuvenesço, esboroando este cultivado ensimesmamento.
Acordo agora e compreendo, ali ao convento terão descoberto o tal elixir alquímico, o da eterna juventude. E dele aspergiram as redondezas. Assim sendo, mais que não seja por isso, logo regressarei.
Obrigado Ana.
Medram, já viçosos, os suculentos rebentos da figueira mais vizinha...
E "A velhice tem outro predicado (tem vários, olá se tem!): (...) estarmos a ver um jogo de futebol, sabendo vagamente quais são os times, assistirmos impávidos a puxões e caneladas, termos a visão para ir comer uma sandes de presunto e, entretanto, o resultado passou de 0-0 para 3-0, o que também não tem importância nenhuma, porque todos andamos cá para perder e ganhar. (...)
A velhice, ainda, é o repouso sábio e diletante. Começamos a ler se nos dá para isso, a sociologia e o badminton, a história do azulejo ou da ervanária, anúncios de vendas de casas que nem queremos nem podemos comprar, prospectos que nos enfiam na caixa de correio e observações económicas de cabeças financeiras: "Isto é que são milhões, rapaziada." (...)
Envelhecer, enfim, é como o título de uma fita que não me lembro se vi: situação desesperada mas não grave." (Dinis Machado, "Situação desesperada mas não grave", A Liberdade do Drible, Quetzal, 2015, p.84).
Medram, já viçosos, os suculentos rebentos da figueira mais vizinha...
(Nota: quem quiser uma análise mais detalhada do jogo de ontem entre Porto e Sporting pode aqui encontrar a minha abordagem especializada).
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