Emendar os textos antigos e racismo
(Jô Soares e casamento português)
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(Jô Soares e casamento português)
Agora todas as semanas segue mais um "expurgo", "protector" das "sensibilidades", "racializadas" ou quejandas. O mais recente é com os livros de Agatha Christie, toca a retirar-lhes termos que possam ofender alguns trastes - é a instrução dada pela sua editora, atenta aos temíveis efeitos actuais das agressões cometidas pelos pressupostos de época de Miss Marple, Hercule Poirot e restantes personagens daquele pequeno emaranhado pós-vitoriano, tão pequeno-doméstico de facto.
Tendemos a confundir estas trapalhadas - o outro dia foi notícia que uns rústicos americanos, lá de uma aldeia de fundamentalistas cristãos, despediram a directora de escola porque havia mostrado uma obra-prima renascentista aos petizes, ofendendo-lhes as progenituras devido ao pequeno pirilau aposto por Michelangelo ao "David". Gente do mesmo universo que volta e meia é notícia por querer impor o ensino do criacionismo nas suas escolas locais - efeitos directos da peculiar administração escolar dos EUA e consequências do molde de secularismo (comunitarismo) desbragado que vigora naquele país. E que por cá os esquerdistas querem assumir - a maioria dos quais sem mesmo perceber que é disso que falam, tamanha a indigência intelectual que os caracteriza.
Mas estas “depurações” literárias que se vão acumulando têm outra dimensão… Não provêm de minorias social e geograficamente excêntricas. Vêm embrulhadas no capital “cultural”/“académico” dos proponentes e defensores e estão a penetrar nas administrações dos grupos económicos editoriais. Tornam-se “elite”, “norma”. E há imbecis à nossa volta que os defendem…
(Rui Nabeiro, fotografia que presumo ser de Ricardo Palma Veiga)
(Gouveia e Melo, fotografado por Miguel Valle de Figueiredo)
O país estava exausto pelos efeitos do Covid-19, atrapalhado pelos normais constrangimentos e hesitações governamentais face àquele enorme desafio, tudo incrementado por alguns ziguezagues desnecessários. Após um ano de pressão pandémica o alívio da esperada vacinação começou embrulhado em confusão executiva e manchado por alguns casos de nepotismo, na apropriação de vacinas por membros da elite socialista, algo exasperante e incrementando dúvidas sobre a capacidade de uma competente vacinação universal. Neste caso não é necessário fazer o rescaldo das práticas então seguidas pelo Ministério da Saúde, e restante governo, pois nisso logo se dividem as opiniões devido a critérios advindos do viés partidário. Mas é pacífico constatar que após Gouveia e Melo ter sido colocado no topo da sua estrutura organizacional - e de ter lhe reforçado a participação militar - o processo nacional de vacinação foi um sucesso, até inesperado. Para tal contribuiu a credibilização dos serviços: explicitando a confiança nacional nos ditâmes dos agentes da Saúde (remetendo os "negacionistas" das vacinas a um minoria histriónica). Mas também na racionalidade e na rectidão dos processos, pois logo minguaram as atrapalhações executivas e, mais, desapareceram as notícias sobre autarcas e deputados a reservarem alguns lotes de vacinas para si, familiares, amigos e vizinhos. E contribuiu também, não o esquecer, a constante e ponderada disponibilidade comunicacional do coordenador-geral Gouveia e Melo, sossegando e mobilizando as hostes nacionais.
Há cerca de uma década suicidou-se Mohamed Bouazizi, vendedor ambulante tunisino desesperado com o saque que os fiscais estatais lhe faziam. Foi um inesperado rastilho de um gigantesco movimento internacional, encetado por uma ampla movimentação das juventudes e que conduziu à queda na África do Norte de uma série de regimes ditatoriais, alguns com décadas de vigência. Foi a dita "Primavera Árabe" tantas vezes dita "Revolução de Jasmim".
Em Moçambique alguns auguravam que esses movimentos populares irradiariam para Sul. Visão que eu, avesso a revoluções populares - lobas europeias e leoas africanas que devoram as suas crias -, rilhava como algo escatológica e que resumia, glosando o célebre ditado africano, como anseio de uma "Revolução do Capim", este sempre esmagado quando lutam os elefantes.
Acima de tudo, muito mais do que paixão o futebol - nisso entenda-se o quotidiano Sporting e, ocasional e secundariamente, a selecção nacional - é-me um placebo. Ou seja, aos desaires trato com um lesto e dialogante monólogo interior feito de viscosos palavrões e vigorosas invectivas às Entidades desavindas, ou mesmo através de resmungos partilhados com a escassa vizinhança, e logo me dedico a outras temáticas, decerto que não mais relevantes. E nos triunfos significativos - não tão habituais assim, dada a minha amada "condição" sportinguista - emerge-me um frenesim exultante que recobre, dissolve até, todas as agruras e desconchavos da (minha) vida, reacção alquímica que leva, felizmente, alguns dias a fenecer.
A vitória londrina de ontem, com o Sporting a arrumar o este ano fortíssimo Arsenal - meu clube inglês desde petiz -, e após um primeiro jogo em que havia sido basto prejudicado por uma arbitragem reverente ao poder mediático, foi um desses momentos de felicidade (a qual nunca é espúria, seja lá qual for a sua causa) para mais tarde recordar - e a fazer-me lembrar uma outra vitória épica, quando há uma década se eliminou o Manchester City, jogo que vi em Maputo entre queridos amigos sportinguistas, alguns dos quais já cá não estão, numa noite terminada, alguns de nós numa euforia já algo inebriada, a pagar luxuosas rodadas generalizadas nos restaurantes da Julius Nyerere e a ofertar rosas a todas as mulheres - para gaúdio de um noctívago vendedor ambulante... Despesa que quase teria custeado a minha ida a Manchester....
É através do seu filho Jorge, meu bom amigo, que sei passar-se hoje mesmo uma década sobre a morte de Mário Murteira. Economista de longo percurso, de quem fui aluno no mestrado - em "Desenvolvimento " e "Estudos Africanos", âmbito de problemáticas que lhe foi relevante. Homem marcante, pelo saber, aquele que explicitava e o que exsudava, feito de ironia e problematizações, tornando-o aquele raro tipo de professores que não "ensina" e muito menos doutrina, mas que faz medrar intelectos através da partilha de indícios, pistas, dúvidas. E de algumas certezas, também. Estudar "Desenvolvimento" no início dos anos 1990s, tão em convulsão o mundo de então e também as teorias dominantes, era um desafio. Que o já "velho" professor (teria então, grosso modo, a idade que tenho agora) não só assumia como dinamizava, figura grada daquele primeiro curso de mestrado, "interdisciplinar" e nisso ainda um pouco indisciplinado, vocacionado para alimentar de quadros do então recente sector de "cooperação" estatal. Era um grande professor, plácido e colhendo reverência discente... E um Senhor, raro assim. E atento, ao mundo (o tal então em polvorosa) mas também às pessoas circundantes.
Uma década depois ensinou em Moçambique, acompanhando a abertura de uma faculdade de gestão, julgo que algo articulado com o seu ISCTE. Tivemos (a então minha mulher também tinha sido sua aluna, colegas que havíamos sido) o privilégio de o receber em nossa casa - ainda na Engels, lembro -, ouvindo-o discorrer sobre o real mas também procurando corresponder à sua curiosidade sobre o que nos rodeava, coisa rara nos "intelectuais" habituais que nos visitavam, usualmente cheios de vontade de dissertarem as suas opiniões sobre a realidade local que não conheciam. Sua curiosidade que era sinal, supremo, da sua inteligência.
(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)
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