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Nenhures

Nenhures

31
Mai23

O Conde de Ferreira

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Há 11 anos José Capela publicou o livro "Conde de Ferreira e Cª: Traficantes de Escravos", colecção de biografias de comerciantes de escravaturas ("negreiros") do século XIX. Quando ele morreu deixei no "Canal de Moçambique" esta muito breve recensão a esse livro (e a outro que ele publicara no ano seguinte, uma verdadeira pérola: "Delfim José de Oliveira..."). Foi uma espécie de homenagem minha, pois Soares Martins (de pseudónimo Capela) fora muito importante na minha vida e tinha (e tenho) para ele uma enorme gratidão. E um grande respeito intelectual, também (mas não só) por ter passado décadas a vasculhar documentos e a publicar, sem pejo nem adornos, sobre como o comércio de escravos foi estruturante no pré-colonialismo português em Moçambique. E como isso moldou as características do subsequente regime colonial - apesar das tralhas lusotropicalistas e lusófonas que vão subsistindo, já para não falar das dulcificadas invocações dos "bons velhos tempos", que tanto misturam as normais (e respeitáveis) memórias individuais de juventude com pronunciamentos de cariz sociológico. Enfim, talvez com um bocadinho de exagero, mas cheguei aos 50 anos com a sensação de que se tive algum "maître à penser" acabou por ser ele... sem que isso possa macular a sua memória devido às atoardas que vou botando. Mas já estou a divagar, avante,
 
Nesse "Conde de Ferreira..." Capela deixou explícito que vários desses comerciantes de escravos regressaram do Brasil mais ou menos após a ilegalização da actividade e se integraram na sociedade do novo regime liberal (e o financiaram), usando as doações beneficientes para ascenderem socialmente. Nisso também patrocinando instituições que ainda existem (misericórdias, hospitais, etc.).
 
Sei agora por intermédio do historiador João Pedro Simões Marques que aconteceu o que eu esperava há já anos - os cirugiões plásticos da História descobriram o Conde de Ferreira (tão presente por esse Portugal afora, ainda que quase ninguém saiba quem foi). E o "Público" (claro) já está em ardores de expurgar as tais instituições dessa memória...
 
Eu continuo na minha, ao que consta na documentação da época (ainda que um pouco posterior) o malvado D. Pedro I não só castrou um aio devido aos seus ilegítimos actos sexuais (um antecessor do prof. Ventura e seus acólitos, está visto) como matou por mãos próprias uns esbirros do seu pai (e terá até comido parte do coração de um deles, a crer ou no cronista ou na colecção de cromos a que tive acesso). E apesar de tudo isso, que tanto agride os actuais valores, continua ali, plantado no centro do nosso Mosteiro de Alcobaça, como símbolo de amor, ainda por cima. Não será, mesmo, de acabar o que os franceses começaram, e rebentar-lhe com a tumba? Ou, pelo menos, retirá-la dos nossos olhos, evitar aquele elogio à memória da ditadura, da pena de morte e da castração por infidelidade amorosa (invertida ou não)?

30
Mai23

A recepção camarária ao Benfica

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(Fotografia de Miguel A. Lopes/Lusa)
 
Terminou o campeonato nacional de futebol e seguiram-se os festejos. Há quem lamente a alienação popular, essa que conduz milhares (milhões) ao êxtase por causa dos sucessos de uns tipos (endinheirados) que dão uns pontapés na bola. Tudo isso em detrimento de uma verdadeira cultura - esta normalmente sinalizada por livros, os produtos mais associados a essa tal cultura, pois raros são os que para afirmarem a sua pertença à "Alta Cultura" mostram os seus arquivos digitais epub ou pdf, o rol de música gravada ou mesmo os velhos cds/vinis, ou a arte, original ou replicada que afixaram em casa própria, ou quaisquer outros itens patrimoniais.
 
Há dois anos o meu Sporting foi campeão, quebrando um longo jejum que durava desde bem antes de sofrer eu da maldita radiculite que me triturou nos últimos dias. E lá fui eu, proto-sexagenário, rumo ao Marquês, adornado e eufórico, em companhia amiga para comemorar a vitória dos tais (nossos) pontapeadores da bola. Grande alegria, grande festa (o futebol é festa - e não devia ser pancadaria, mas isso é outro assunto). E aviso os mais renitentes - há tempo na vida para um tipo puxar pela cabeça o mais que pode (com os resultados dependentes das capacidades de cada um) e também se deliciar com as futeboladas. E com as futebolices (entre as quais a mais deliciosa é gozar os outros, nas derrotas e nos triunfos, claro está).
 
Ontem, dois dias depois do triunfo benfiquista e do subsequente arraial dos adeptos na Marquês de Pombal - e não anteontem, domingo, como seria mais normal e até adequado ao ritmo urbano - o presidente da Câmara da sede do clube campeão cumpriu a (recente?) tradição de receber a equipa campeã nacional. E nisso o povo adepto acorreu a saudar os jogadores - um post-scriptum da festa. Julgo esta recepção autárquica exagerada - não se cumpre para todos os desportos existentes - mas é apenas um ademane populista dos autarcas. Não é por isso que cairão os vizinhos "Carmo e Trindade".
 
Na televisão ouvi um pouco do discurso do presidente Moedas. Texto talvez da sua lavra, porventura de um qualquer assessor mais benfiquista... Achei-lhe eu, sportinguista, um tom demasiado enfático. E àquilo de "Cosme Damião e mais 24" terem criado o "sonho de Lisboa" resmunguei um "nunca mais voto neste tipo" e mudei de canal - desiludindo-me com alguém que até gostaria que estivesse num lugar mais importante, rumo a São Bento. Enfim, talvez não venha a cumprir esta minha imprecação, mas senti o autarca por demais lampião para momentos oficiais...
 
Mas enfim, azia futebolística à parte, o que é mesmo criticável - verdadeiro sinal de alienação -, e agora sem qualquer ironia, é que essa recepção aos jogadores de futebol tivesse sido acompanhada em directo por 7 canais televisivos. Sete. Mais o canal Benfica, mas esse é evidente que cumpria a sua função nesta transmissão.
 
Sete (+ um) canais televisivos a transmitirem o percurso do autocarro pelas ruas de Lisboa e a ascensão dos jogadores à varanda da câmara. É totalmente demencial. E um sintoma do boçalismo das direcções editoriais. E não me venham dizer que isto que resmungo é antibenfiquismo.

28
Mai23

A Esquerdalhada

jpt

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(Texto [também] para o Jorge Forjaz, que me escreveu sobre o meu "Descolonizar a Língua Portuguesa" resmungando "Se não te referisses e adjectivasses tanto a esquerdalhada tinhas mais razão" e ao qual eu anunciei "vou-te responder" para dele receber um sorridente "Com direito a resposta? Oh lá lá". Entre viagens e outros afazeres demorei-me demasiado na resposta...)

***

Num postal recente usei o termo "esquerdalhada" (que me é habitual). E logo três amigos me enviaram mensagens, pois com ele incomodados. Nos comentários recebidos (no meu mural de Facebook) também surgiu algum desconforto - e mesmo imprecações. Naquela plataforma a ligação ao texto foi partilhada por outros - o que lhes agradeço - em cujos murais também notei algumas reacções desagradadas, até furiosas. Isto mostra a vigência de um sentimento pelo qual sobre os locutores de “esquerda” não se deve verbalizar menosprezo ou desrespeito pelas suas atrapalhadas ou aldrabadas opiniões.

Reacções ao invés das esperadas face à rapaziada da direita. Sobre esta há dois termos que vão surgindo: o mais raro “direitinhas” - em tempos consagrado em banda desenhada publicada no “Diário”, o jornal do PCP dirigido por Miguel Urbano Rodrigues -, mas que não vinga muito dado o tom pouco ferino que aquele sufixo sempre dá. E o mais habitual - e quase automático - “fascistas” (ou “faxos”), uma evidente desvalorização ética e intelectual.

Ou seja, se eu, ou outrem, diante dos dislates agora até algo habituais daqueles que se propõem decepar genitais alheios, hastear bandeiras nacionais em edifícios oficiais nas antigas colónias ou louvaminhar as inexcedíveis qualidades do colonialismo português (o qual “nunca existiu”, a crermos na douta bibliografia, titulada sem a ironia do texto que glosa), falar de “direitinhas”, de “fascistas” (ou mesmo de “fdp’s” por extenso, como fiz há pouco - quando o professor Ventura inculpou Costa de um duplo assassinato) não tenho ecos abespinhados. E isso não se restringe às peculiaridades do agora CHEGA. Pois sou tão velho que me lembro de ver o tal insulto “fascistas” atribuído a gente como… Franco Charais e Pezarat Correia. Ou António Barreto. E desde então Ferreira Leite ou Vítor Gaspar e um vasto etc. foram assim ditos, e também estrangeiros, estes até mesmo nazis, como Merkel ou Bento XVI. E tais epítetos não colhem apenas silêncios mas mesmo anuências - mesmo entre aqueles que os assumem como meras metáforas (e não são as invectivas, sarcásticas ou insultuosas, quase sempre metafóricas?).

Mas o apreço “neutral” pelo desapreço face à malta à direita é até mais abrangente: nenhum amigo se preocupa quando afloro eu - como aqui o fiz - os dizeres, de facto apenas onomatopaicos, dos negacionistas das alterações climáticas, estes sempre urrando que tal coisa é mito emanado do “marxismo cultural”, deístas pagãos que são, e nisso obtusos crentes de que da divindade Mercado nada de negativo pode brotar. “Sempre as houve”, “dizem que há aquecimento mas está a chover”, expectoram ainda que doutores e engenheiros. E mesmo que pais e avós extremosos das suas “boas famílias” fazem trocadilhos brejeiros com o nome da célebre jovem ecologista sueca, num verdadeiro Cialis deste senil imbecilismo “liberal”.

Tal como não li agravos quando propus o regresso ao útero materno dos energúmenos anti-vacinas do Covid-19 - como, por exemplo, aqui - saídos das grutas mais recônditas do reaccionarismo pimpão, desvairados avessos à intrusão estatal que lhes quis injectar químicos pois entendendo-a escrava das apetências lucrativas das farmacêuticas - ainda que depois não hesitem em encharcar-se (e às respectivas parentelas) em tão dispendiosas quimio e radioterapias que os Estados compram às tais farmacêuticas interesseiras para a eles - e seus próximos - prolongar as verborrágicas vidas. Ou ainda, para último exemplo, quando resmungo contra a rústica inintelectualidade de alguma direita portuguesa, incapaz de avisar um irritante, e de histriónica ignorância, casal nortenho de que a Escola tem mesmo como tarefa Educar Para a Cidadania.

Em suma, neste ambiente é aceitável, e até saudável, usar do sarcasmo para invectivar a “direita” mas é inaceitável, pois ofensivo, escarnecer da “esquerda”. Como se esta, e os seus fiéis, tenha uma universal virtude. Qual uma superior decência e uma acrescida potência.

É um traço interessante porque o pejorativo (e quantas vezes enojado) “esquerdalho” - e o correlativo “grupelho” - são termos que não têm um “pedigree” de “direita”. De facto, emanaram de uma força de esquerda, aplicados às moles de patetas m-l de então, essas que agora se apresentam sob as pestíferas vestes “identitaristas”: tratava-se do feixe de excitados sociopatas que o secretário-geral abordou no seu “O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”, entretanto travestido (ou transvestido, não sei...) num tal de “identitarismo”.

Também por isso esta expressão pejorativa não recai sobre o amplexo PCP. Não só por estas razões históricas mas ainda devido a dados estéticos: mesmo na sua decadente situação intelectual actual - longe vai a época em que o PCP tinha quadros como Luís Sá, Barros Moura, João Amaral, ou Vital Moreira a renovar Marx, para além da tutela de Cunhal, e fica-se agora pelos esparvoados tuítes do tão elogiado António Filipe - o "partido" tem alguma... "correcção formal". Como se uma espécie de quadratura do quadrado, algo que o torna algo imune a algum tipo de críticas mais sarcásticas ou ríspidas: foi decerto por esse desvelo estético, nisso ético, que nesta era de tamanhas retóricas “cuidadoras” das “minorias etnoculturais” puderam os comunistas emanar um comunicado oficial - após a invasão russa da Ucrânia - louvando a excelência das políticas soviéticas relativas às “minorias [étnico-]nacionais” sem que tivessem sequer tremido o Carmo e a Trindade “identitarista”, "multicultural".

Também, fora dos dizeres presentes no espectro partidário, não aplico, nem se costuma aplicar, este tipo de sarcasmo a discursos desenvolvimentistas - de facto muito ausentes da cena pública portuguesa. Mesmo que nestes abundem os utopismos e, bem pior, sejam frequentemente poluídos pela recepção das "causas" e linguajares típicos de alguns movimentos identitaristas ocidentais. É como se a adesão, sob variadas formas, ao ideário do "desenvolvimento humano" blinde algumas das vozes mais impensantes que sob ele se agregam, como por exemplo os palradores do "empoderamento", que nem fabianos se percebem, ou os que mesclam a temática do "género" com as questões da sexualidade, imaginando que o mundo é uma Nova Inglaterra hollywoodesca.

De facto esta “esquerdalhada”, demagógica - e nisso desonesta - ou apenas tonta, e sempre histriónica, não é a “esquerda” mas apenas (plurais) feixes internos à “esquerda”. Por cá muito em voga e muito visíveis dada a descabida influência que têm na imprensa e nas universidades. E tendo alguns agentes de verve fácil muito escapa esta mole ao crivo crítico. Nessa pluralidade loquaz, e abrangência temática, torna-se algo difícil descrever (e assim definir) este cadinho de textos oriundos do “radicalismo pequeno-burguês de fachada identitarista” sem recorrer a laivos de alguns locutores, qual galeria de ilustrações, uma chinoiserie

Mas fazê-lo acabará por ser desagradável. Pois não só eu não leio muitos desses constantes textos idolátricos - até os evito -, como à maioria daqueles a que chego faço-o por conselho de alguns cruéis amigos, malévolos nos seus verrinosos avisos “já viste o que fulano de tal botou?”. Ora isso tem um corolário, pois sou conduzido (deixo-me conduzir) a ler as trapalhadas botadas por gente que conheço ou com a qual tenho conhecimentos comuns, afinal uma pequena “lisboa” do Minho à Madeira. E assim o meu sacar da cimitarra, a volúpia assassina, pode parecer ad hominem. Quando não é, mas sim uma aversão higiénica face a destrambelhados argumentos colectivos individualmente expostos. E, por vezes, mas apenas no caso dos socratistas, um afã sociocida, portanto também colectivo.

Na realidade, mais do que avaliar da hipotética pertinência dos problemas sociais que são apontados ou das soluções que são propostas (quando o são) o que é mais notório é que neste eixo discursivo esquerdalho se tratam de expressões atitudinais, assentes numa vácua superficialidade embrulhada em retóricas histriónicas. O objectivo é sempre o de constituir "grupos"-para-si, entidades mobilizadas para o "activismo", numa burguesa refracção do velho ideário da - agora - "luta das identidades" como "motor da história". Mas ouvindo/lendo os pretensos "intelectuais orgânicos" o que logo se apreende é que na sua grandiloquência surgem como aquilo a que José Cutileiro aludiu no seu "Abril e Outras Transições”, nada mais do que discursos reconhecíveis como “when a man is talking rot”… 

Há três trombos fundamentais nestas vias discursivas, que passo a a exemplificar usando alguns casos que vão vegetando na minha memória. Um é o culto do "construtivismo", a académica ideia - pacífica em si mesma - de que as realidades sociais são socialmente construídas. E que nesses processos - o que é um bocadinho mais discutível - os formatos discursivos (os conteúdos linguísticos, para facilitar) são um material fundamental da edificação das lógicas e das mundividências, assim da miríade de valores e poderes presentes em cada sociedade. Há nisso uma espécie de linear determinismo, como se sociológico fosse, e que vem promovendo esta moda de depuração dos linguajares. Troque-se por miúdos: parece que o governo indiano - agora muito louvado na reemergência geopolítica dos BRICS, considerada fundamental pela esquerda radical para se combater a "episteme" obscurantista "ocidental" - acaba de retirar o evolucionismo darwiniano do ensino escolar. Em Portugal, membro da perversa hidra capitalista ocidental, esse ensino mantém-se, tal como os restantes itens da ciência contemporânea. No entanto para esta esquerda identitarista, prenhe de afã purificador da língua, tudo funciona como se o ensino (escolar e por outros meios) da ciência de nada sirva, pois continuamos a chamar "nascer do Sol" à alvorada e "pôr-do-sol" ao ocaso. Ou seja, crêem que apesar de alguns esforços pedagógicos as palavras nos condenam - e neste caso à mundividência da crença geocêntrica, pois as amarras linguísticas nos farão pretéritos a Copérnico e Galileu.

Tal concepção nota-se no eixo feminista - em sentido amplo, a defesa da igualdade e equidade de mulheres e homens, algo que é historicamente uma matéria de “esquerda”. Um dia li no "Público" um artigo de uma cientista social - muito louvado pelas minhas colegas moçambicanas especialistas em questões de Género, decerto que por conhecerem a autora - a clamar contra o universal masculino gramatical, como sendo este um instrumento de reprodução da opressão falocrática. Reparei que a senhora tinha aposto como epígrafe o Magritte do “ceci n’est pas une pipe” - estava eu a viver na Bruxelas do artista, o que mais me chamou a atenção. Ora a autora feminista passava o artigo a defender que “cachimbo” deve ser cachimbo - no tal ditirambo contra as algemas gramaticais, as masmorras sintácticas e os cadafalsos semânticos que considera serem e promoverem os malvados poderes -, sem perceber a sua gritante contradição. Não pude evitar pensar, e por várias razões, que tudo aquilo (preocupações gramaticais, textinho ufano e aplausos dos cientistas apoiantes) era uma esquerdalhice tonta, típica da esquerdalhada. E é apenas um exemplo de incultura aplaudida pelas "elites" "intelectuais", do ambiente geral cristalizado no patético uso das "Todes" ou "Todxs" e afins por burguesotes que assim se imaginam "radicais" e, mesmo, "cidadãos". E o passo avante desta deturpada perspectiva "construtivista" é o que agora grassa, a vertigem censória, a purga que se faz aos textos do passado e os limites censórios àqueles ainda em produção, convocados a associarem-se a determinadas "sensibilidades" em voga...

Mas este rumo não passa apenas por patetices como este exemplo que dei. Há muita demagogia, no rumo de um verdadeiro aldrabismo. Um dos vectores interessantes nestes "construtivistas" de cardápio é o facto de associarem esta crença de que os termos têm - por si só - efeitos sociais (perversos) à vontade de instaurarem a discriminação oficial de categorias raciais, uma evidente contradição. O debate sobre políticas equitativas é salutar e fundamental. Uma das dimensões desse debate - o qual em Portugal é muito frágil por deficiência intelectual societária - é o que opõe o secularismo comunitarista da esquerda identitarista aos adeptos da laicidade universalista, defensores de uma cidadania republicana. Os primeiros querem fragmentar a população em entidades discretas de cariz “étnico” e “racial” (ainda que não as saibam definir) para promoverem “discriminações positivas”. Este é um debate interno à “esquerda” mas também com a “direita” e o “centro”.

Ora, também no famigerado “Público”, li há anos um artigo - de alguém que se subscrevia com o nome da instituição científica estatal que o emprega (ou seja, convocando o empregador para sedimentar as suas opiniões políticas, uma manobra rasteira...) - no qual se defendia o tal recenseamento “étnico-racial” afirmando “numa sociedade aberta o Estado deve poder perguntar tudo” e “cumpre aos cidadãos comprovar a razão de não quererem responder”. Ou seja, o Estado deve exigir às pessoas que se identifiquem e situem segundo classes "étnicas" e "raciais", se pensem e actuem consoante tal, e sejam objecto de políticas estatais peculiares sob essa condição. Sendo assim a tal "sociedade aberta". A mim, diante desta torpe manipulação da célebre expressão de Popper, crucial no ideário liberal, ocorreu-me o óbvio, que o artigo era uma esquerdalhada, abjecta demagogia, talvez típica do seu autor, decerto que disseminada entre os seus admiradores. E convém perceber que este fervor racialista - apresentado como factor de equidade - implica a utilização das tais palavras que manipulam as mentes (como sempre assumem em relação a outros assuntos). Assim sendo, para estes esquerdalhos eu estou errado quando digo "todos" ou "todas" e estou errado quando não digo "negros" e "amarelos" - como se houvesse discriminações a fazer e outras a evitar. No fundo, o que este esquerdalhismo quer é sedimentar, enquistar, entidades conflituantes. E entretanto evitar que um cozinheiro "branco" apresente uma receita de moamba na televisão - e a desfaçatez é a minha. E não a dos esquerdalhos que se congregam em torno destes dislates.

Um segundo trombo desta "esquerda" radicalizada é o seu evolucionismo, metástase do seu marxismo vulgar. Pois nela habita a crença de que as sociedades evoluem (se direccionam num sentido positivo, pois é preciso traduzir isto num país onde amiúde se ouve o oxímoro "evolução negativa"), num rumo relativamente pré-determinado, "progressista" dizia-se. Nesse marxismo vulgar vigente o tal trombo é a crença de que as sociedades ocidentais, as do capitalismo pérfido, esgotaram as suas capacidades de se transformarem e daí a necessidade de uma qualquer "transição". A efectivação desta crença do actual "imobilismo" por "exaustão" social, conduzindo a um "atavismo", tem agora um tópico em Portugal - para este "esquerdismo", o tal "esquerdalhismo" folclórico, a sociedade portuguesa é um mero e malévolo epifenómeno do passado recuado.

Daí o surgimento, cinquenta anos depois das independências das antigas colónias, de uma série de paladinos da necessidade de afirmar o país como fruto de uma história escravista, como se esta moldasse o Portugal actual, lhe estivesse no âmago. A vontade é simples, transformar o ensino da História e a consciência nacional numa traumatizada versão de nós-próprios, de facto seguindo o desígnio de apoucar a identidade nacional, e nisso a comunidade nacional - pois esta dada a capitalismos e até conservadorismos. Um projecto até contraditório num país que nem tem um ensino patrioteiro nem alberga projectos de expansão nacionalista ou neo-colonial.

Parte deste rumo vem de uma até pungente condição, o facto de alguns intelectuais (historiadores e afins) terem dedicado parte das suas carreiras de investigação a temáticas da expansão portuguesa em África (e no Brasil) e de ansiarem por um estatuto de "intelectuais públicos". Algo para o qual sentem (erradamente, diga-se) necessitar de capitalizar, usando-o linearmente, o que estudaram sobre séculos prévios, atribuindo as características que nesses identificam às realidades actuais. O interessante é que se forçam a presença actual das categorias existentes na sociedade portuguesa de antanho são incapazes, ou disso desinteressados - por alguns motivos ideológicos -, de vasculharem nas sociedades africanas actuais alguns vestígios dessa realidade escravista ali duradoura durante séculos.

O que demonstra que, por mais punitivos que queiram ser sobre o passado e o presente português, são incapazes de ultrapassar um traço típico nacional - o da distracção face a realidades outras, sempre centrados no nosso país (isto é algo que esmiucei num texto longo, "O Olhar Português"). Ou seja, estes doutos intelectuais, 50 anos depois das independências das colónias portuguesas, sobre África pouco ou nada dizem, apenas lhes importam os ecos (demoníacos ou gloriosos) da história pátria. E é isso que os torna "intelectuais públicos", "críticos". É evidente que há diferenças internas neste eixo de discursos, entre os que analisam a história portuguesa, na sequência do que fizeram alguns da geração anterior - quantas vezes seus mestres -, e os que se limitam a gesticular - como alguns que, também no "Público" (sempre o palco privilegiado deste coro), defendem a "intervenção" "anti-colonial" sobre o património artístico. Mas, e o que é uma deliciosa demonstração da pantomina desses autores, daqueles itens patrimoniais que estão na rua, pois isentam os itens alojados no interior de edifícios desses propósitos "intervencionistas"...

O terceiro trombo, evidentemente ligado aos anteriores, é a afirmação de que o nosso país é um extremo caso de racismo, que "Portugal vive num apartheid", como clamava (no "Público", claro) há anos um antropólogo defendendo a inenarrável Katar Moreira (a tal da moamba racializada). Talvez por isso possa ter eu visto uma activista, apresentada como senhora professora, na televisão defendendo o "Mamadu" - assim como um sindicalista em apoio à "Isabel" (Camarinha), um autarca ombreando com o "Rui" (Moreira), um académico louvando o "António" (Sousa Pereira), um camarada subscrevendo o "Francisco" (Louçã), etc. E nessa candura, até pungente, afirmando a pés juntos que o racismo é monopólio dos brancos, explicitando querer ensinar isso à audiência televisiva enquanto tentava balbuciar uma recensão oral de um qualquer "paper" onde aprendera a atoarda, tão "decolonial". Pobre jovem senhora, com todos os sinais físicos e verbais da boa pessoa, cheia de boas intenções salvíficas, avatar de avoengas missionárias, nem sabia o que significava "uigures"! E ali estava defendendo, pedagógica, um conjunto de sábias (porque produtivas) patacoadas. 

Esquerdalhada? É isto, entre inúmeros, constantes, exemplos, provindos de algumas almas caridosas ou mentes fabianas misturadas com uns mariolas "activistas" - estes sempre com "um olho no racializado, outro no burro". De facto militantes da superficialidade, eles sim algemados à "atitude". Que julgam certa ou isso lhes convém no mercado estatutário.

Há uns anos dediquei um postal a uma querida amiga, que senti demasiado sensível a alguma daquela verve esquerdalha. Tinha até a ideia de lhe dedicar uma série de postais, procurando demonstrar-lhe os chorrilhos de asneiras convictas que ia lendo por cá. Mas depois desisti, que há tanto mais em que pensar. Então, sobre a superficialidade esquerdalha e suas patéticas atitudes, ficou só aquele postal: "O Corredor", minha memória de quando trabalhei na África do Sul. 30 anos depois o mundo mudou bastante. Mas não o esquerdalhismo, seus ademanes, trejeitos. E objectivos. Os quais são, como antes o foram, malévolos. Por mais roupagem garrida que traga.

No fundo, no fundo, a diferença é mais ou menos como olhar para este mural que encontrei patente na construção de um prédio de Bogotá: "Obrero Sexy". Que cada um interprete à sua maneira. De modo mais ou menos em voga...

27
Mai23

A Carris Metropolitana

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A Carris Metropolitana é uma complexa iniciativa, agregando transportes rodoviários em torno da grande Lisboa. Ao que me constou foi atribuída por um concurso público, ficou nas mãos de empresa espanhola que terá adjudicado este negócio a uns israelitas - talvez seja verdade, talvez não. Consta que importaram dezenas de motoristas caboverdianos, por défice de profissionais habilitados que para esta nova empresa quisessem trabalhar. Enfim, depois de uma longa gestação, na articulação inter-municipal, a empresa (julgo que criada para o efeito) começou a operar. De imediato surgiram inúmeras queixas da população sobre o seu funcionamento e planificação de trajectos - ou seja, e em linguagem mais apropriada à Margem Sul do Tejo, a mão-de-obra contestou como os municípios os conduziam até à labuta diária ao serviço do patronato, público ou privado.

Dito isto: passado um ano de funcionamento abeiro-me de um autocarro que me leve a sul do Tejo. Na página da empresa os horários estão afixados. Tal como estão nas paragens da linha do autocarro 4710. Mas a empresa alterou os horários sem que tenha modificado a informação digital e física, descurando-nos. Assim em vez do anunciado transporte das 12.30 agora há um às... 14.30! Duas horas de espera. 

Eu perco assim uma, consabidamente excelente cachupa, à qual me dirigia. Outros perderão o que bem sabem. Todos perdemos algo. Tempo, pelo menos. 

Os autarcas, diante desta inaceitável arrogância da empresa a quem adjudicaram este serviço, protestarão que nós clientes (e não utentes, como nos querem desvalorizar) temos a mania de protestar por tudo e por nada. Os donos da empresa continuarão a lucrar, os administradores a serem tonificados com bons bónus. 

E nós, povo, que nos lixemos. Em 2023. Como sempre até agora.

27
Mai23

Feira do livro

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Há um mês visitei a Feira do Livro de Bogotá. Enorme, também alimentada pelo gigantesco mercado editorial hispânico, também palco de críticas devido à mercantilização/padronização devida às grandes editoras multinacionais. Mas muito diversificada. E apinhada de gente, esta entrechocando-se, entre o turbilhão de expositores e o vasto manancial de palestras e apresentações. E nisso fruindo, numa verdadeira Festa do Livro, algo comprovado na imensidão de gente, famílias e grupos de amigos ali enfileirados para petiscar, e mesmo (ainda) sem livros nas mãos. Foi um prazer cruzar essa festa popular, cobiçar capas, comer maçaroca de milho, ver alguns pavilhões peculiares, até os alguns encontrões sofridos.

Amanhã começa a Feira do Livro em Lisboa. Só vejo, redes sociais afora, resmungos, exigindo a sua superioridade sobre a malta da bola (sim, o país está futebolizado, mas não é de agora...) porque uma parcela desta se prepara para festejar ali perto. E reclamações de que há autores a mais e abundância de maus livros, proclamações de que há temáticas indignas ou pouco próprias, resmungos sobre palestras e conferencistas, que são vácuas e ocos, etc. E a um amigo, que lá vai apresentar um livro, diz-lhe a editora que "não é próprio" fazer-se acompanhar de uns singelos "comes e bebes" para animar o convívio...

Não tenho dúvidas sobre uma certeza - e neste passo sigo o "achismo" do agora centenário ilustre e tão louvado posfaciador do "Senhor Engenheiro José Sócrates" (sic) -, a característica central dos portugueses não é sebástica, ou atlântica ou hiper-identitária, ou lá o que seja. É mesmo a cagança.

27
Mai23

As reacções ao discurso de Cavaco Silva

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(Postal para o Delito de Opinião)

Cavaco Silva fez um discurso muito crítico do governo e do (actual) PS. À esquerda as reacções foram iradas. Por um lado as habituais convocatórias socialistas ao silêncio de Cavaco Silva, fundadas no seu estatuto de ex-presidente - nenhum desses mariolas se quer lembrar que Mário Soares continuou a sua carreira política, discursiva e eleitoral, após os seus dois mandatos presidenciais. Alguns galambistas vieram clamar contra o conteúdo moral das palavras de Cavaco Silva: o novo Ana Catarina Mendes indexou-as à frustração do ex-presidente por não ter popularidade. E um tal de Azevedo, decerto que emanado da cultura das "redes sociais", quis reduzi-lo a um discurso de "raiva e ódio" (hate, como naquelas se diz).

Mas mais interessante, pois inovadora, foi a reacção do agora secretário-geral do PCP, Raimundo. O sucessor de Cunhal, Carvalhas e Sousa, ripostou tentando ser algo elíptico, "diluindo" Cavaco num indito - por não discriminado - colectivo de políticos "de direita". E mandando-os, lá em Baleizão, para a barriga das mães deles. Ou seja, e falando como nós povo, os operários, camponeses, desempregados, pequenos empresários, funcionários empobrecidos, etc, -a reclamada base social daquele partido - mandou-os, de facto, "para a cona da mãe".

É a isto que baixou o PCP.

27
Mai23

A reacção do PS ao discurso de Cavaco Silva

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(Postal para o Delito de Opinião)

Cavaco Silva foi contundente nas suas críticas ao governo e ao (actual) PS. Também contundente foi a resposta institucional do PS, chegada pela voz do seu secretário-geral adjunto, João Torres: entre outros argumentos desvalorizou os argumentos do ex-presidente a efeitos da sua triste condição psicológica, que o terá conduzido à "agressividade e violência verbal" intentando uma "lição de moral" que o PS repudia como sendo "inaceitável". E mais ainda, considerando que Cavaco Silva "perdeu o sentido de Estado que se exige".

Eu sorrio. Nunca votei Cavaco Silva nas eleições presidenciais. Nem nas legislativas votei no partido que ele presidia - aliás, na vida votei 2 vezes no PS, em 1991 tentando contribuir para evitar a sua recondução como primeiro-ministro, em 1995 avesso à continuidade do "cavaquismo" já sem Cavaco. Mas se sorrio nem sequer é por esta patética pantomina de se querer impedir os ex-presidentes de opinarem politicamente - ao invés do que Mário Soares, figura tutelar do PS, sempre fez (tal como aqui lembrei e até o "Público" refere). Pois o motivo maior do meu sorriso é outro: o actual secretário-geral adjunto do PS, João Torres, acusa Cavaco Silva de ter perdido o exigível sentido de Estado. Mas há três anos Torres era secretário de Estado - função à qual se presume uma filiação ao tal "sentido de Estado". E intentou obter o destacamento para as funções de seu motorista de um capitão do Exército, ainda por cima seu companheiro / namorado. (Sobre o patético caso botei aqui no DO o postal "O capitão motorista").

Entenda-se, o relevante disto nem é o facto de um tipo içado a secretário de Estado querer cooptar um capitão do Exército como seu motorista, ainda por cima tendo com ele uma relação de cariz afectiva-sexual. E de com esse "currículo" ter o desplante de vir refutar "qualquer lição de moral" de outras forças políticas ou invectivar a "falta de sentido de Estado" de outrem.

De facto o verdadeiramente relevante deste caso é que o PS de António Costa escolhe um tipo destes para suceder à actual ministra Ana Catarina Mendes no posto de secretário-geral adjunto, alguém que tem este "sentido de Estado", esta impudicícia. Sim, alguns poderão querer desculpar/compreender João Torres, atribuindo-lhe o desvairo a causas de amor ou fervor sexual. Mas não chega. O que fica é que o PS escolhe para um posto desta relevância um tipo que entende a política como implicando que um posto governativo lhe permite destacar como motorista o capitão de quem é amante. E que tem o atrevimento agora de vir perorar sobre "o sentido de Estado" alheio.

Por mais Galambas que por aí andem não há outro exemplo maior do estado a que chegou este PS...

24
Mai23

Tina Turner

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 Tina Turner durante apresentação na O2 Arena, em Londres, em março de 2009 — Foto:  REUTERS/Stefan Wermuth/Arquivo

 

Vi a Tina Turner em 1991, talvez, depois dos Stones e do Bowie, antes do Santana, lá no José de Alvalade, então sede lisboeta do rock... - aquilo dava-nos cabo do relvado mas valia bem a pena, pelas receitas para dissipar pelo clube e pelos grandes espectáculos. Lá cheguei um bom bocado antes do concerto, como sempre dirigi-me ao nosso "ponto de encontro" - "onde nos encontramos?", perguntavam os neófitos mais ansiosos. "No sítio onde o Oceano joga", respondia, veterano, para desnorte alheio, logo acabrunhados num "isso é onde?" para acolherem um ríspido e rústico "em qualquer lugar do lugar do relvado!!", tão omnipresente era o nosso grande Oceano, que eles decerto desconheciam.

Ou seja, ia lá para o rock e não para o convívio - sim, isto foi um pouco antes de conhecer a Inês, que me mudou (e bastante) a "abordagem" às coisas. E não estou a romancear o passado - a Carolina faz 21 anos amanhã, e tudo começou algum tempo antes, estou apenas a ecoar a empiria de então. Enfim, lá aportei, aproximei-me da velha Bancada Central. Estava apinhada. A Tina original, a Turner, havia ressurgido há anos, estava no topo dos topos, o grande Mad Max também ajudara.

Lembro bem que ao lusco-fusco do crepúsculo, ainda ao som de música gravada, o público já dançava exultante. Mas mais do que isso, estava pejado de Tinas - negras, mulatas, até brancas. E de Tinos também, que não Ikes. Tudo dançando. Depois encheu o relvado. Sim, ela reaparecera anos antes neste pop-rock até manso, mais do que tudo sexy, um embrulho abrangente que a tantos agradava - será que os miúdos de hoje poderão perceber o impacto daquilo? E nisso a quantidade de noites bamboleando nestas cançãozinhas que ela tornava um "must"? Um caldo comum?

Não tenho qualquer vinil ou cd dela. Mas ficou a memória dessas imensas danças. E de um grande concerto, esfuziante. E de como - perceba quem quiser - este embrulho amalgamado, produtor de amálgamas, era virtuoso. Por isso aqui deixo esta versão ao vivo. Com ela cantando e dançando de calças - porque era muito mais do que umas "hot legs".

24
Mai23

Jorge Forjaz

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(Jorge Forjaz, Ilha de Moçambique, 2017)

Ao longo da vida vão-se fazendo amigos, mais quando se é novo como é consabido. Na meninice, na escola e universidade, às vezes na tropa, na boémia. Nos empregos. Passos biográficos conjuntos, convívios, projectos ou obrigações comuns. Depois a gente cresce, vai envelhecendo, enquista, escasseiam as novas amizades pois rareia a disponibilidade, a abertura. Conhecimentos sim, até simpatias, mas afecto?

Jorge Forjaz é um desses meus raríssimos últimos amigos. Conheci-o já no início dos meus 40s, ele acabado da ancorar na Ilha de Moçambique - imerso no seu projecto de reabilitar uma feitoria para fazer um hotel, num interessante projecto de turismo comunitário que nunca veio a terminar. E, um pouco depois, como gerente do célebre "Relíquias", o restaurante do bom do Jorge Simões. E também nos seus trabalhos de reabilitação das casas da cidade. E por aí afora, nas minhas inúmeras estadas ou visitas à Ilha.

Não tenho projectos ou interesses comuns com ele, nem as nossas biografias são muito próximas. A minha amizade com ele veio mesmo só da minha empatia, a promover-me carinho e um grande prazer em estar com ele. E mesmo saudades, quando demorava em regressar a Muipiti... Talvez por isso aquele meu hábito de então, de lhe entrar feitoria adentro com uma Famous Grouse e de irmos bebê-la (apesar da sua consabida frugalidade) para diante do continente, com o mar a bater-nos quase nos pés, em risonhas - o tipo tem uma calma risada deliciosa - conversas.

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(A feitoria, fotografia de Miguel Valle de Figueiredo, 2011)

E depois há isto, que a muitos será até imperceptível, a suave elegância do Jorge: ainda hoje lembro a primeira vez que ele foi jantar à nossa casa em Maputo, todos naquela informalidade que nos caracteriza mas mesmo assim a forma como ele tratou a Inês (que conheceu nesse dia) num tão discreto trato fino. E que, à sua saída, eu comentei entre-casal "(não desfazendo...) o Jorge é o único cavalheiro a Sul do Rovuma"... - e isto num país carregado de proto-oligarcas, administradores arvorados e doutorados do Equador.

Há cinco anos fui à Ilha para proferir uma conferência, para aí a minha 30ª visita. Fiquei 4 dias. Não me deu para as poesias que tantos sentem quando lá chegam, não invoquei antepassados nem me deu para reescrever a história, não me encantei com o mussiro das mulheres, não calcorreei o macuti nem me espantei com a pedra-e-cal, não fui mergulhar alhures. Pois para mim, e desde há muito, a Ilha é um punhado de amigos. Com o Jorge na cabeceira (que não na Cabaceira...). Ou seja, passei a maioria desses dias sentado no restaurante que então ele tinha, o Karibu, onde se comia muito bem, bebericando e palrando na sua companhia. Assim deliciado. É desses dias esta fotografia.

Há três meses fui passar uns dias junto ao Sousa, tomar conta da quinta de uma amiga. O Jorge - que entretanto voltou a Portugal - apareceu por lá, almoçámos frugalmente com o casal Bacelar, também já regressados de Maputo e que também me visitavam nesse dia. Foi um dia óptimo, de conversa animada, risadas. Um bocado na sequência de umas visitas que antes me fez em Lisboa, mesmo aos Olivais. O outro dia enviou-me uma mensagem gravada, sabendo que eu estava na Colômbia, a dizer-me que continuava no espírito de "avante...".

Há uma hora uma querida amiga telefonou-me de Maputo. O Jorge morreu ontem, em Braga. A gente, ele e nós, sabia que ele estava muito mal. Ainda assim se fosse eu um tipo diferente, talvez melhor, estaria ali a chorar. Mas como não sou, sou apenas isto, escrevo.

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