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A plataforma SAPO publica um curto vídeo (que não é integrável em blog - e não compreendo como uma plataforma que acolhe blogs não inclui uma opção "incorporar" nos vídeos noticiosos que publica, como fazem várias outras plataformas) em que se vê a futebolista Jenni Hermoso e as suas colegas, recém-campeãs, a rirem-se, com humor e sem preocupações ou mágoas, da beijoca entre o presidente da Federação de Futebol e essa futebolista durante a cerimónia final do Campeonato de Mundo de futebol. É evidente o júbilo, brotado da vitória história, mas ressaltado para as brincadeiras entre várias jogadoras que, em coro, referem o brevíssimo episódio. O filme, que decerto muito em breve estará em plataformas que permitem a sua captação para blogs, está aqui.
Como é sabido, passados dias, após a estratégica intervenção de ministras socialistas espanholas - decerto que influenciadas pelo confronto com os peculiares discursos sobre este tipo de temáticas emanados do partido rival VOX, e isto sublinhado por se estar em pleno processo de formação de governo coligado no país - a jogadora apareceu a lamentar-se do caso. Depois secundada pelas colegas. E por todo o lado - desde a patética intervenção do porta-voz da ONU até ao próprio Delito de Opinião, passando pelo primeiro-ministro espanhol até aos patetas televisivos nacionais do costume - cai o "Carmo e a Trindade", denunciando o caso de "assalto", "assédio sexual", de machismo empedernido que teria conduzido a tamanha violência. A própria SAPO destaca hoje um postal lacrimejante sobre o assunto, que remete - dando-lhe estatuto de prova - para um texto de jornalista espanhola que afirma haver machismo e falta de educação entre os membros da federação espanhola de futebol. Nem duvido que haja, mas a questão é outra: o que aconteceu ali, durante a cerimónia?
Já aqui botei sobre o assunto: o que o homem fez - ainda por cima sendo ele não um "doutor" tutelando a bola nacional, mas um antigo jogador -, é mesmo o inverso, tratou a jogadora "como um homem", replicando um gesto tantas vezes feito pelos praticantes quando em júbilo. Para não me repetir sumarizo: é um gesto assexuado (no sentido de desprovido de erotismo). Basta ver. Voltei ao assunto aqui, diante da histriónica incapacidade analítica de propalados intelectuais. Esse tipo de gente para quem é porreiro surfar as vagas em voga, e botar umas coisas na imprensa...
O assédio sexual (laboral e não só), a violência sexual, o mais abrangente machismo, são temas fundamentais. A combater, pela lei, pelas instituições, pela opinião pública, pela sensibilização. Profissionalmente cruzei casos tétricos disto. Até incríveis, de inacreditáveis, passe a aparente redundância. Mas quando uma mulher feita e realizada, trintona bem sucedida, campeã mundial, se ri a bandeiras despregadas, quando um conjunto de mulheres feitas e realizadas, profissionais campeãs mundiais, se riem a bandeiras despregadas, isso a propósito de um gesto que bem entendem desprovido de qualquer violência ou ameaça, não podem depois invocar terem estado sob "assalto", "assédio", "violência". Nem há argumentos convocando contextos "infalsificáveis" (a la Popper) que justifiquem estas inflexões interpretativas. Ou seja, entenda-se, como prevalece um machismo violento e desrespeitador aquele gesto é violento e desrespeitador. Isso é um acto falsário, um silogismo aldrabão. E contestar essa evidência, em nome de uma qualquer "boa causa", é apenas desvalorizar, apagar, superficializar, as abissais realidades do "assédio", da "violência sexual", do "machismo", mundo afora. É uma pantomina abjecta. Matéria-prima por excelência para políticos demagogos e para os "activistas" de agora. Mas uma vergonha para quem se veste (ou traveste, melhor dizendo) de intelectual, de militante. Ou, pior do que tudo, de professor. Uma vergonha intelectual. E uma vergonha moral.
E isto tudo independe de Rubiales.
Ontem, Estação de Metropolitano de Chelas, quase 23 horas. Comboio parado, luta de grupos - verdadeiramente multicultural. Tem ar de coisa avulsa, mera "zangadaria", não aparentando ser confronto de grupos "orgânicos" (os sempre ditos "gangs"). Nada de tiros, felizmente, nem se vêm brandir naifas, pedras ou coisas do género. Mas muito mais a tradicional gritaria histérica. A passageira brasileira que me ladeia - talvez por me ver seráfico, ainda que amarfanhando o pobre livro de bolso - pergunta-me "é preciso esperar que chegue a polícia?" antes que retomemos o nosso rumo, pois "assim vou perder o autocarro das 11...". Respondo-lhe, fleumático - já espreitei, notei a tal ausência de armas e a prevalência dos apenas símios gritadores, tendencialmente inofensivos - "não faço a mínima ideia, nunca vi uma coisa assim". Crianças choram, mulheres praguejam, transumância entre carruagens, velhos caducos caducam. Um destes, que é da zona - di-lo pelo sotaque e, mais do que tudo, através dos trejeitos -, logo avança a bom som as suas explicações para o caso pois "há pretos", olhado com algum espanto pelos circundantes ali retidos, entre os quais haverá um ou outro "branco" para além de mim e dele, e da brasileira (a qual talvez se reclamasse, lá no país dela, "parda" para ver se colheria alguns apoios estatais). Os dois sikhs estão calados, ainda que os turbantes lhes pendam um pouco. Imensos brasileiros brasileiram, e como praguejam!, comprovando os seus "avôs transmontanos", apesar de serem - se necessário - também "afrodescendentes". Os chavalos de Chelas seguem a la Olivais, não se ficando atrás no esbracejar e no vernáculo, mas este sai-lhes sem o trinado arábico típico do nosso bairro. Não há dúvida, para além da Marechal Gomes da Costa o sotaque é diferente. A malta PALOP está calada e furiosa com estes atrasos a atrasar o descanso. E alguma olha-me, quero eu imaginar, com simpatia - haverá algo no meu semblante que dirá por onde andei? Ou será por ser o único dos dois velhos tugas brancos que ali não clama "há pretos"? Os funcionários estão excitados, cais acima, cais abaixo, armados de velhos Motorola, ou similares. Enfim, espera-se a polícia. Milhazes é citado com abundância. Uma das alas contendoras avança e dissemina-se na minha carruagem, continuando a gritar os impropérios que são rescaldo, catarse e ressaca.
O comboio avança. Mais uma estação e chego ao destino. Estou, verdadeiramente, em casa. Na escada rolante um companheiro de viagem, talvez angolano, murmura-me, entreolhando-me, "filhos da puta!". Sorrio-lhe, encolhendo os ombros. E não lhe digo o que penso: somos, de facto, aqui e agora, nós os dois, lusófonos!
Esta semana morreu a mãe de uma querida amiga, também vizinha. Segui até às exéquias, nesse nada supérfluo mas, de facto, sempre superficial ombrear para minorar a solidão alheia. No velório encontrei uma grande amiga dos meus pais, rara sobrevivente - octogenária mas de olhar ainda basto viçoso... Não a via há mais de uma década, desde o funeral do meu pai - pois a minha mãe findou durante a praga Covid. Logo para ela avancei num "não sei se se lembra de mim?", acolhido com um sorriso "claro que sim, ainda por cima és igual à Marília!" - comovendo-me, pois quem é que ainda me diz isso? Trocámos algumas palavras, sem ser de circunstância, e ela diz-me para irmos até ao exterior, desentorpecer as pernas, algo que lhe é ainda mais necessário devido à recente fractura que lhe apôs esta muleta que a acompanha... Logo concordo, automaticamente remexendo o pacote de Amber Leaf, e lá seguimos. A senhora recorda os meus pais, nisso aflorando-os com humor irónico nada saudosista, assim verdadeira saudade. Rio-me, com aquela perspicácia de conhecimento deles feita, e até me apetece beijá-la, tal a gratidão que me invade... Diz-me que conheceu primeiro o meu pai, e que lhe disse "tenho de conhecer a tua mulher, deve ser interessante!"... Isto porque "trabalhavámos juntos", e já há algum tempo. "Trabalhava no CNE?", perguntei, apesar de ela já me ter convocado ao "tu" - e eu, proto-sexagenário, com dificuldades nisso e a perceber que pareço os mais-novos que se torcem quando lhes digo o mesmo... "Não!", ri-se ela (com o tal viço que já referi), "éramos comunistas!...", trabalho militante, pois então. E rio-me também eu agora, nessa alusão às andanças (nunca em casa explicitadas) do Camarada Pimentel. Depois avança e vem a dizer-me "o teu pai achava que tu és muito reaccionário". "E achava muita piada a isso...". Eu rio-me, para não chorar (pois, foda-se!, que saudades tenho eu do meu pai, o Camarada Pimentel). Pois só agora, aqui, tenho a garantia que ele percebera, isso de ter ele ficado, e nisso já algo "heterodoxo" - talvez até demais para o que reconheceria - no Brel e eu já ter vindo no tempo do Rockin' In The Free World... Num mundo deveras diferente.
[Neil Young - Rockin' In The Free World - Accor Hotel Arena Paris 2016]
[The Shadows - Theme from The Deer Hunter 1979]
Amigos dados ao cinema, oficiais do ofício, talvez (e muito provavelmente) contestem Cimino, uma espécie de narrador oitocentista. Passantes ex-esquerdistas, agora identitaristas - ainda que, por isso mesmo, sempre pouco ou mal lidos -, talvez ainda critiquem o "reaccionário" Cimino. Mesmo assim partilho o que o zapping me trouxe, que talvez a alguém interesse. No canal Fox Movies está disponível desde hoje "O Caçador". Um filme inesquecível..., que acabo de rever passados tantos anos. Com gáudio.
(E com o tal final imperdoado pelos comunistas de várias extrações, e seus "amigos". Esse mesmo que a história veio confirmar, já agora... E aqui o deixo, para que tantos "intelectuais" de pacotilha possam compreender o que se vem passando (também) desde há décadas. À revelia das suas, tão erradas, perspectivas sobre o real, presente, passado... e futuro. Cimino, o tal "conservador", "reaccionário", entendeu - no tempo próprio - o que se passava. Os outros, ufanos de si, nada perceberam, perorando).
[The Deer Hunter ending]
[Michael Cimino on the final scene in The Deer Hunter]
(Postal para o grupo no Facebook "Mostra o que estás a ler")
Este postal é um "quatro em um" face aos usos deste tão simpático grupo. Pois mostro as minhas estantes - como aqui vem sendo hábito; e nisso divulgo (defendo, até) os escritores portugueses - como por vezes é aqui reclamado. Daí esta opção pelo nicho de corredor onde estão postos os "Car..." de literatura portuguesa. Avanço também a minha participação no simpático movimento em curso de doação livresca, pois tendo agora mesmo detectado mais casos de livros repetidos, coisa que me continua a acontecer devido ao acoplar dos herdados com os que fui comprando: assim apresto-me a ofertar (ainda que sem lhes inserir qualquer postal) "O Hóspede de Job" e "O Anjo Ancorado", de José Cardoso Pires. Quiçá a um membro deste grupo, se para isso estiver disponível. E, finalmente, "mostro o que estou a ler" - que é o que gosto mesmo de encontrar aqui:
"Na tarde de ouro / ou numa serenidade cujo símbolo / poderia ser a tarde de ouro, / o homem dispõe os livros / nas prateleiras que aguardam / e sente o pergaminho, o cabedal, a tela / e o prazer que lhe dão / a previsão de um hábito / e o estabelecimento de uma ordem. / Stevenson e o outro escocês, Andrew Lang, / reataram aqui de modo mágico / a lenta discussão interrompida / pelos mares e pela morte / e a Reyes não lhe desagradará decerto / a vizinhança de Virgílio. / (Ordenar bibliotecas é exercer / de um modo silencioso e modesto / a arte da crítica.) / O homem, que está cego, / sabe que já não poderá decifrar / os belos volumes em que vai pegando / e que não o ajudarão a escrever / o livro que o justificará perante os outros, / mas na tarde que talvez seja de ouro / sorri diante do curioso destino / e sente essa felicidade peculiar / das velhas coisas queridas."
(Jorge Luís Borges, "Junho, 1968", no "Elogio da Sombra" (1969) - inserido em Obras Completas, 1952-1972. Vol. II. Teorema, 1998).
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