Amanhã é dia de (tristes) efemérides. Passam 50 anos sobre o golpe de Pinochet, que marcou a minha geração - e as anteriores. Fui ler os chilenos que tenho. Mas mantenho-me nada atreito a Neruda. Por isso virei-me para este nicho de Luís Sepúlveda, que o meu pai me legou. Reli "O Velho que Lia Romances de Amor", a história de António José Bolívar Proaño, num livro bonito, com um grande começo, "O céu era uma inchada barriga de burro, pendendo ameaçadora a escassos palmos das cabeças". Gostei mais do que antes gostara - então havia resmungado com a antropomorfização final da onça, com o tom "new age" que havia naquela novela antropológica, com o muito Hemingway que pressentira, pois aquilo é uma espécie de "O Velho e a Selva" - e agora leio em vários textos Sepúlveda a convocar a admiração que tem por Hemingway, a confirmar, se necessário fosse, essa filiação. Mas é óbvio que baixei a crítica, estou mais sensível, velho - mas continuo a resmungar que um romance "amazónico" se espeta quando chama insecto a um escorpião (ou será que estou errado?).
Li depois "O General e o Juiz", textos de opinião de quando o juiz espanhol Baltazar Garzón tentou prender o já velho Pinochet, não só sumarizando a malvadez do ditador como irando-se contra os obstáculos que foram sendo levantados pelos Estados a esse julgamento - e o vieram a inibir. E mais três colectâneas de textos de opinião e algumas crónicas - "Histórias Daqui e Dali" (o mais interessante, em minha opinião), "Crónicas do Sul" e "Uma História Suja" -, mostrando o escritor empenhado e de verve solta. Mas com grande défice na ironia, pois constantemente a escorregar para o sarcasmo, furibundo quantas vezes, até cruzando o que se poderia antever - como quando resumiu Colin Powell a um "escurinho" que cantaria "spirituals" na Casa Branca ("Uma História Suja", pp. 115-116). São textos nos quais apresenta laivos de memórias do regime de Allende e a (triste) história chilena desde o golpe, entre factos da ditadura e protestos contra a urdidura constitucional que enquadrou a subsequente democratização do país, salvaguardando os implicados na repressão. Mas também as suas opiniões pessoais sobre o estado do mundo.
Entretanto comecei hoje o "A Sombra do que Fomos", romance com belo ritmo inicial, que me parece ser uma memória ficcionada dos tempos de Allende - mas vou mesmo no início, não posso afiançar. Promete... E depois seguir-se-á o último que tenho, "A Lâmpada de Aladino", conjunto de contos.
Antigo membro do PC chileno, miliciano de Allende, guerrilheiro sandinista, exilado na Europa, Sepúlveda tem nestes textos, escritos até cerca de 2010, um anti-americanismo -- anti-gringuismo, se se quiser -, típico da sua região de origem. É mesmo um olhar típico de região e de era: nas centenas de páginas que percorri em que vitupera EUA, a UE, os democratas europeus que não sejam da esquerda profunda (e para todos estes vai usando epítetos como "fascistas" ou similares) - ainda que se deixe louvar, em voz indirecta, pois por interpostas personagens, a social-democracia sueca -, elide o mundo comunista, tendo eu notado apenas uma referência à STASI. E para a considerar similar ao governo de Bush Jr... Ou o mais liminar "julgávamos que o mundo ficava melhor com a queda do Muro mas ficou pior" (cito de memória). Um tipo vai lendo isto e não diz "não acredito". Porque sabe que era assim, uma enorme franja de intelectuais (e não só) pensou assim: décadas passaram a lamentar as vigentes e passadas ditaduras, os sofrimentos, torturas (e Sepúlveda alude as que sofreu e assistiu), assassinatos, censuras, etc. E depois as mesmas sensibilidades esqueciam os sofrimentos, afinal, vizinhos, sob os jugos comunistas, "camaradas". Um tipo de facto sabe que era assim. E que, não se deve esquecer, ainda é entre os escombros das "Internacionais", agora muitas delas feitas "identitaristas".
Mas, apesar de tudo isto, vale bem a pena correr os textos de Sepúlveda. Para que não se esqueça a barbárie de Pinochet e dos seus congéneres de então. E para que sempre se refute o malvado aforismo "os nossos ditadores são melhores do que os dos outros", ou coisa parecida, que norteou (e vai norteando, ainda que menos do que antes) a "política real" de tantos Estados democratas.
E, após todas estas leituras, mais uma coisa: Sepúlveda era visita recorrente em Portugal. E morreu de Covid, após ter sido contaminado nas "Correntes de Escrita" no início da pandemia. Nessa época vários o invocaram, nas habituais eulogias, dizendo-o um homem interessante, simpático, cativante. Um tipo lê-o, vai discordando, resmungando, de vários dos textos opinativos - mas noutros percebe-o bem pertinente... E, acima de tudo, fica com a sensação que deve ter sido um gajo porreiro.