Os silêncios sobre as eleições confiscadas em Moçambique
(Votação nas eleições municipais, Montepuez, 2003)
Já em postal anterior referi o que vem acontecendo em Moçambique desde as recentes eleições municipais de 11 de Outubro. E voltei ao tema lamentando o silêncio do governo português. Mas regresso ao tema: sumarizo a situação e aduzo mais razões para lamentar a posição do nosso poder político.
1. O estabelecimento de conselhos municipais tem sido gradual, acompanhando o acréscimo da população urbanizada – a qual em 2019 era já 34% do total –, pois os distritos rurais têm outro enquadramento administrativo. Em 1998, aquando das primeiras eleições locais, estipularam-se 33 municípios, em 2008 o seu número subiu para 43, e desde 2013 passaram a ser 53. Nas últimas autárquicas, em 2018, o partido RENAMO conquistou 8 - entre os quais as relevantes capitais provinciais Nampula e Quelimane -, o MDM susteve o seu bastião Beira, tendo os restantes 44 sido ganhos pelo partido FRELIMO. E para 2023 o reordenamento administrativo implicou o aumento para 65 municípios.
2. O contexto dos grandes partidos nacionais tornava algo imperscrutáveis quaisquer previsões de resultados, e não só pela fragilidade das sondagens eleitorais no país. Por um lado, os carismáticos líderes dos maiores partidos da oposição morreram nos últimos anos, deixando antever ma fragilização por orfandade das suas organizações. Por outro lado, o FRELIMO sofre a erosão de 48 anos de poder e vive um “fim de ciclo”, dado o termo do segundo mandato do actual presidente Filipe Nyusi, implicando uma árdua reconfiguração na escolha de candidato(s) para as eleições presidenciais e legislativas do próximo ano. E enfrenta o efeito de uma crise económica, de causas internas e externas, que muito macera a população de um país subdesenvolvido – em 2021 Moçambique foi classificado como o 185.º entre 191 países integrados no Índice de Desenvolvimento Humano. E ainda devido à sua imagem popular estar maculada pela repercussão de escândalos financeiros de grande monta.
3. Ainda assim os anúncios iniciais dos resultados criaram um espanto geral. Como é sabido o FRELIMO reclamou o triunfo em 64 municípios, deixando apenas a Beira ao MDM, qual enclave partidário, e erradicando o RENAMO do poder local – enquanto este reclama ter vencido em 11 municípios, entre os quais Maputo, Marracuene e Matola, o que teria um impacto histórico, pois apropriar-se-ia do “grande Maputo”, desde sempre forte bastião do partido governamental.
É certo que nos trinta anos de eleições sempre a oposição reclamou a existência de fraudes. Mas desta vez o RENAMO apareceu tecnicamente mais bem preparado, efectuando contagens paralelas, conjugando-as de modo célere e logo apresentando recursos consistentes junto dos tribunais locais. E, surpreendentemente, obteve sucesso, pois alguns desses requerimentos foram aceites, tamanhas as evidências de irregularidades eleitorais. Também por isso durante alguns dias esperou-se que houvesse algum volte-face das instâncias políticas face a esta abstrusa situação.
4. Mas foi esperança vã. A Comissão Nacional de Eleições (CNE) aprovou os resultados antes anunciados – os recursos terão de ser julgados até finais de Novembro, e caucionados pelo Conselho Constitucional até Janeiro, mas a avaliação política do processo decorre agora, no imediato. Esta aprovação ocorreu apesar de apelos à refutação dos desmandos eleitorais oriundos de instituições relevantes, como a Igreja Católica, através de um comunicado da Conferência Episcopal de Moçambique, ou a Ordem dos Advogados. Peculiar foi o facto do próprio presidente da CNE, o bispo anglicano Matsinhe, se ter abstido na votação interna sobre a legitimidade dos resultados. E isto após ter sido publicamente convocado pela Conselho Anglicano de Moçambique a ser fiel à verdade e à lei. Pois que dizer quando o próprio presidente da Comissão Nacional de Eleições se abstém de opinar sobre a legitimidade do acto a que preside?...
5. O RENAMO reagiu convocando manifestações em várias regiões. É consabido que desde a “Primavera Árabe” grassou em sectores das oposições moçambicanas o anseio, até sonho, da mimetização de uma “Revolução de Jasmim” – “a revolução do capim”, sempre a isso reagi, desagradado pois temendo efeitos trágicos, usuais nas imitações históricas. Sob retóricas locais mais ou menos inflamadas, a população demonstrou o seu desagrado. Sobre o acontecido as notícias são díspares, aventam-se detenções, feridos, até mortos. Imagens colhidas em Maputo e Nampula mostraram manifestações ordeiras mas com participação algo reduzida em face do que seria esperado pela oposição. Ou seja, a dimensão do acontecido na passada sexta-feira, por alguns aventado como o momento de afirmação popular da rejeição destas eleições, acalenta a esperança de que todo este processo venha a ser dirimido no quadro político institucionalizado. Salvaguardando-se as hipóteses de que as eleições presidenciais e parlamentares decorram pacifica e democraticamente em 2024.
6. Entretanto o facto mais significativo é o silêncio da elite do FRELIMO. Incluindo o do presidente Nyusi, habitualmente pouco loquaz em momentos de dificuldades políticas. Mas surpreende a inexistência de proclamações provenientes da liderança e dos feixes congregados no topo do partido, e até de alguns intelectuais mais atreitos à intervenção política. Foram relevantes, até por inusitadas, as intervenções de Brazão Mazula, presidente que foi da primeira Comissão Nacional de Eleições, explicitando as más práticas nestas eleições e dando a entender a existência de dolo. Ainda mais o texto publicado por Samora Machel Jr. (popularmente conhecido como “Samito”) - filho do primeiro presidente, empresário e dito como potencial presidenciável – no qual se demarcou com veemência deste rumo assumido pelo partido. O ex-ministro e ex-secretário-geral da SADC Tomaz Salomão expressou a sua descrença na vitória do partido na capital. E o antigo juiz do Conselho Constitucional Teodato Hunguana veio criticar a posição governamental, resumindo a situação à da necessidade de “Dar a César o que é de César, dar ao Povo o que é do Povo”, num aparente diálogo com a frase constante nas manifestações oposicionistas, “Povo ao Poder”, retirada de uma canção do “cantor de intervenção” Azagaia, morto este ano.
Mas, tirando estas excepções, reina no país um tonitruante silêncio do poder. Instaurou-se já uma hermenêutica dos silêncios, num frenesim interpretativo sobre os diversos sentidos presumidos à mudez dos vários sectores do FRELIMO. De qualquer modo o facto que ainda mais denota o acontecido no 11 de Outubro é o silêncio das … bases do FRELIMO. Quando os resultados anunciados apontam para uma esmagadora vitória do partido, um arrasar do grande rival – este perdendo os seus oito conselhos municipais, entre os quais os das sonoras capitais provinciais, incapaz de obter as ambicionadas vitórias no Sul do país e de conquistar alguns dos novos 12 municípios. Vitória histórica, a maior nestes 29 anos de eleições multipartidárias! É óbvio que um facto destes implicaria um gigantesco regozijo de militantes, uma enorme onda festiva. A qual, pura e simplesmente, inexistiu. Pois nem as bases mais ferrenhas acreditam nisto! Nestas eleições confiscadas pelo seu partido.
7. Nestas três décadas as missões de observação internacional, as organizações multilaterais e os diversos países inscritos em relações bilaterais sempre caucionaram os resultados eleitorais, ainda que apontando algumas imperfeições. É possível que a soma de todos esses processos, com o correr do tempo, tenha promovido algum sentimento de impunidade, fenómeno que correu paralelo ao da normalização eleitoral – tão estabelecido que agora nem houve uma missão de observação da União Europeia.
Mas o ineditismo da situação actual provocou também reacções…inéditas. Logo após as eleições os EUA apelaram à consideração das irregularidades eleitorais. E após a consagração dos resultados "oficiais" o Reino Unido – recordo que Moçambique foi o primeiro país externo ao antigo império britânico a aderir à Commonwealth - frisou a dimensão dessas irregularidades e condenou a sua desconsideração pelos órgãos estatais. No mesmo sentido surgiu uma declaração comum do Canadá, da Noruega (grande doador no país) e da Suíça (país com profundas relações históricas com o FRELIMO e com o Estado moçambicano). E a própria União Europeia lamentou o processo em curso.
8. Antes da aprovação dos resultados pela CNE a IL apresentou na Assembleia da República duas propostas no sentido de demonstrar a preocupação com a situação e de instar uma atitude ao governo português. Foram ambas recusadas pelos restantes partidos, estes escudando-se por detrás de um aparente respeito pela soberania alheia, no fundo um pobre exercício de "realismo político". Para, como se vê, se acompanhar que nos dias imediatamente subsequentes tanto a União Europeia como vários países aliados manifestam essa preocupação.
Não se pediriam ingerências, até contraproducentes. Mas sim uma verdadeira capacidade dialogante. A qual, neste caso, não se poderia restringir à surdina diplomática. Essa inexistência é muito surpreendente se se atentar nas profundas ligações com Moçambique que os nossos dirigentes têm. É certo que - justiça lhe seja feita - António Costa não usa recorrer à sua ascendência moçambicana para quaisquer efeitos políticos, mas seria de esperar um seu olhar mais atento, dentro das disponibilidades que um PM possa ter. Mas o PR muito faz alarde da sua experência biográfica e afectiva com o país - e recordo que Nyusi foi um dos três únicos chefes de Estado convidados para o seu empossamento, facto bastante simbólico. E o nosso MNE conhece muito bem o país - doutorou-se com brilhantismo sobre o processo político moçambicano, foi competente presidente da "Cooperação Portuguesa" (hoje "Camões") e foi um excelente SENEC.
Ou seja, este nosso silêncio não é distracção nem desconhecimento daquele país. É uma opção, política. Decerto que defensável por quem a toma, e que para isso terá argumentos. Mas também, exactamente por isso, decerto que criticável por quem a refuta. Mas isso, um debate sobre esta situação, inexistirá. Como quase sempre acontece nestas coisas da política externa.