No Cemitério dos Olivais
Mais uma vez acorro ao vizinho cemitério, para ombrear com uma querida amiga que agora viu findar a sua bela e tão simpática mãe. "É a lei da vida", sempre dizemos, qual legitimação da dor sentida, como se assim a minorando.
Esperando o féretro em seu torno nos congregamos, os da família pesarosa, alguns dos seus mais chegados amigos, colegas próximos escapados à azáfama diária, escassos amigos da quase nonagenária defunta. É uma breve pausa, momento de contidos cumprimentos e parcas palavras. Afasto-me um pouco, esfumaço e nisso esvoaço até aqui, ao muro fronteiro, entrada da "última morada" de tantos dos nossos conterrâneos. Noto o seu estado descuidado, já rumo ao devastado. Murmuro umas imprecações e logo regresso ao cortejo, já completo.
Seguimos ao crematório, como agora é por cá opção quase universal. Breve cerimónia, neste despojamento face à morte que nos é típico, a nós laicos. Talvez assim mais doloroso, pois restamos desprovidos dos mimos que os rituais esperançosos sempre dão. Aos crentes.
Depois, já apartados da urna, deixamo-nos, como sempre ali, em breve convívio, forma de comunhão. Desgarrado, olho em torno, e nisso atento no matagal defronte ao crematório. Mais sinais de que reina a incúria, desde a entrada até às traseiras, naquela casa dos mortos. Forma de desrespeitar os seus vivos.
Escapulo-me até ao cendrário, esse onde há anos deixámos as cinzas dos meus pais. Noto, vá lá, que dali tiraram a placa "WC" espetada exactamente sobre aquele espaço, e que tanto me exaltara no funeral da minha mãe. Decerto que alguém ali terá percebido a displicente afronta funcionária assim afixada, e deixo-me imaginar que devido a protestos de algum enlutado mais enérgico.
Recolho-me um pouco, até à demasiada comoção. E saio, deixa-me à porta do cemitério esperando pelas despedidas. Nesse entretanto reparo na azáfama automobilística. Atento e percebo o que ali acontece. Pois 2/5 do parque de estacionamento do cemitério foram entregues à EMEL, que os usa para arrumar os carros rebocados. Entram três desses naquele meu (outro) breve cigarro...
E noto que a vedação colocada pela altiva empresa impede o acesso aos lugares de estacionamento sitos mesmo à entrada das instalações. E mesmo aos iniciais, esses que haviam sido reservados aos deficientes que ali se desloquem para enterrar os seus mortos. Isto sem que os serviços públicos tenham reservado outros para o efeito... "Questão de pormenor", dirão alguns munícipes. "Questão de princípios" responderei, crente ciente de que sem estes nem há meios nem fins. Não há rumo.
E é desarrumo que esta ida ao cemitério tanto me mostra, a mescla entre a altivez frenética e a incúria letárgica dos funcionários. Camarários. Públicos. Lestos a cobrar, relapsos no servir.
"Ao menos que o dinheiro da EMEL servisse para arranjar o cemitério", conclui um amigo. Rimos, contidos, disso descrentes. E vamos almoçar todos juntos, que é dia de irmanar no luto com a nossa tão querida amiga, mana...