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Nenhures

Nenhures

24
Fev24

Slava Ukraini!

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Há alguns anos (muitos, já, cada vez mais, raisparta) fui mais uma vez à Ilha de Moçambique. À porta da Fortaleza, então sob qualquer intervenção, estava isto. Resmunguei, decerto (eu conheço-me, ainda que mal), a um "portão" barrando o acesso ao agora sacrossanto "Património Cultural" ungido pela UNESCO, pintado com as cores das duas empresas de telefones (Vodacom, MCEL) que invadiam todos os recantos do país com as suas publicidades... Só muitos anos depois alguém me soprou que talvez isto fosse obra, "como quem não quer a coisa", de algum imigrante (quiçá ex-"coooperante") ucraniano, ali resguardado em coisas da construção civil... Talvez. E que belo argumento para um conto seria...

Lembro a fotografia hoje, dois anos após a invasão russa da Ucrânia. Para além dos russófilos actuais (essa mescla nada-excêntrica de bafientos fascistas e comunistas) vejo críticas à Ucrânia e aos seus aliados ("ocidentais") porque a derrota militar se apercebe como provável, exaurido o país. Não deixo de achar uma triste piada ao ver a rapaziada que se imagina de "esquerda", no afã do seu nojo pela democracia liberal dita "ocidental", a filiar-se assim no ideário do "sucesso", do "empreendedorismo" bem realizado, essa ideia de que a fraqueza relativa (a tal derrota militar contra um inimigo superior) significa a fraqueza absoluta, como se uma injusteza ôntica.

E também encontro nenhuma piada aos que vêm "denunciar" a propaganda pró-ucraniana, que para eles conduziu a isto. Ou seja, implicitam que se devia ter apoiado/exigido a rendição imediata. Como esse "eterno comentador" (e mau escritor, já agora) Sousa Tavares que do palanque televisivo veio perorar essa tralha. E tem lugar cativo como "fazedor de opiniões". Por falar de propaganda e estar a botar uma fotografia da Ilha lembro a abjecta consideração do escritor Agualusa, logo no início da guerra, botando no Globo brasileiro o seu lamento de estar na distante Ilha enquanto os "nazis" defendiam a Ucrânia, regurgitando a energúmena propaganda russa, forma canhestra de ser "Sul". Típica, aliás.

De tudo isto me lembrei há horas, ao ver no telejornal as comemorações (fogo-de-artifício e tudo) em Moscovo dos dois anos de guerra. Dezenas ou centenas de milhares de mortos sofridos, idem de baixas alheias causadas, por um regime que se propunha derrotar em três dias (!!!) um poder de "drogados", "nazis", e até "judeus". E comemora.... E estes escritores sofríveis, e intelectuais de merda, e seus enlevados leitores? Dizem o quê?

Slava Ukraini! Especialmente se vier a sua derrota.

24
Fev24

António Sérgio

jpt

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Por mais que o canonizado Eduardo Lourenço o tenha torpedeado (há já meio século...), recompensa ler António Sérgio, textos com um século ou quase, mas imensamente contemporâneos, na forma e na atitude. E sagazes, caramba. A propósito de reler Camões peguei neste volume IV dos seus "Ensaios", poderosos afianço, legado do meu avô, seu cultor. Livro um pouco em mau estado, nota-se. Mas os textos jovens... Vieram até à tasca comigo.

23
Fev24

"O Eixo da Bússola", de Mário Cláudio

jpt

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Há coincidências, e abundam nisto das leituras. Há dias um amigo que fora ver - e gostara - a antestreia do "O Pior Homem de Londres", filme de Rodrigo Areias, actualmente nos cinemas, resumia-me o argumento. E isso fez-me sorrrir, pois acabara de ler um texto sobre a personagem protagonista do filme, o pelos vistos nada recomendável luso-britânico (?) Charles Augustus Howell, objecto que fora de uma já antiga alusão (1992) em "Esboço de um Valdevinos" que integra este interessante colectânea "O Eixo da Bússola", de Mário Cláudio, publicado pela peculiar (e falida, ao que me constou) editora Quasi em 2007.
 
O livro, que vou lendo pausadamente (cada vez leio menos ficção e mais crónicas, ensaios ou opiniões, coisa da idade, dizia o meu pai), agrega textos publicados na imprensa pelo autor desde finais da década de 80. Estava na estante, esquecido, e ainda bem que o resgatei à ileitura, ainda que alguns sejam agora algo crípticos. Mas é interessante seguir ao ritmo da prosa de Mário Claúdio, diferente daquela que foi instituída na sua geração autoral, num cuidado estilo - ainda que por vezes exagerado, como ao referir-se ao grande Aquilino Ribeiro num "Um dos ângulos mais interessantes do território aquiliano, entendido este como expressão de uma personalidade perpetradora do texto, e como obra extravasante de quem a segrega, resulta da coincidência de um irresistível apego à domesticidade e um forte pendor para as amplitudes do Planeta" (167) - sequência que me convoca um "raisparta, homem, facilita...!".
 
Mas é mesmo recompensador percorrer os textos - como quando lhe encontro um breve "Um Mau Escritor" sobre o espanhol Blasco Ibañez (há 100 anos um best-seller, como tantos de agora que tão elogiados são), de quem tenho os avoengos livros, já puídos, à espera de serem lidos, e que agora decerto não o serão...
 
Enfim, fica a recomendação, quem apanhe este volume nuns quaisquer salvados fique com ele. Vale bem lê-lo.

22
Fev24

A Defesa no processo eleitoral

jpt

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Foram escassos os debates políticos televisivos a que assisti. E não tenho perseguido com efectiva consistência as declarações dos responsáveis partidários nem lido sistematicamente a documentação que os partidos vêm produzindo. Mas perguntei a alguns amigos mais atentos se a minha sensação tem justificação e eles corroboram-na. Ou seja, a questão da Defesa está invisível. É invisível, melhor dizendo.

Certo, é pouco popular, pouco "eleitoral", agitar custos que não sejam dirigidos à putativa melhoria imediata das condições de vida. Na direita propõe-se a redução dos impostos (um tal de "choque fiscal"), em alternativa ao velho arrazoado utópico da amputação das "gorduras do Estado". E na esquerda - onde vigora o sonho geringôncico - não só vigora a mitografia "pacifista", na qual o antibelicismo é confundido com desmilitarização e até mesmo desarmamento, como é vigente a união entre a aversão à democracia e aos compromissos com a NATO. E nisso não esqueçamos as reacções dos partidos comunistas aquando da invasão da Rússia: o PCP sempre defendendo os interesses russos, o BE logo defendendo os direitos expansionistas da Rússia - foi antológico o momento em que Mortágua, então ainda deputada a tempo parcial, usou o argumento nazi de defesa do "espaço vital" da grande Mãe Pátria russa E depois disso, em sinal da generalizada anuência dos seus militantes a esse ideário, foi a futura professora do ISCTE eleita "coordenadora" desse partido.

Ou seja, a ambição geringôncica inibe à esquerda o debate político sobre o reforço do sector da Defesa. E o fervor anti-estatista à direita tem o mesmo efeito. Para mais, os recentes ministérios da Defesa têm sido fragilizados por temáticas pouco "políticas". O antepenúltimo ministro, Azeredo Lopes, foi arrombado por um simples roubo de paiol e a forma como descomandou essa situação inibiu-o de ser voz activa - para além de o ter conduzido ao mais pungente episódio do regime democrático, ao clamar em tribunal a sua incapacidade para exercer o cargo governativo para o qual aceitara o (descuidado?) convite de António Costa. O penúltimo ministro, Cravinho, foi também vítima de difíceis questões orçamentais, que lhe terão reduzido a amplitude das suas hipotéticas ambições estratégicas para o sector. E a actual ministra Carreiras entrou no governo logo após o início da guerra na Ucrânia, o que presumo lhe tenha redireccionado o azimute estratégico para o sector. 

Enfim, há uma continuada irrelevância política associada a um desinvestimento crónico na Defesa, fruto das opções orçamentais deste regime, não só eivadas de questões desenvolvimentistas e também do expurgar da militarização das finanças públicas durante o Estado Novo tardio, mas também da tal ideologia "pacifista" e, explícita ou implicitamente, anti-NATO vigente nos vários sectores da esquerda. O patético recente exemplo dos tanques Leopard, quase todos inoperacionais quando foram convocados para participar no apoio à Ucrânia, deveria ter sido suficiente para convocar a atenção pública. E o ainda pior caso da tripulação do navio que se recusou a sair ao mar, invocando questões securitárias - que eram certeiras, ainda que de inadmissível convocatória daquele modo -, para acompanhar uma embarcação russa que se aproximava das águas territoriais deveria ter sido o sinal extremo. Mas o silêncio continua...

Cumprem-se agora dois anos sobre a invasão da Ucrânia, o grande desafio colocado à NATO desde há décadas. Entretanto o isolacionismo norte-americano, sob retórica orçamental, reafirma-se com Trump. Para atingir o patamar de gastos orçamentais com a Defesa tem Portugal o prazo mais distante dentro dos países da Aliança (apenas em 2030). Ou seja, 40 anos depois da entrada na UE o país mostra-se ainda incapaz de integrar objectivos estratégicos. Que maior demonstração de incapacidade desenvolvimentista terá este regime?

Entretanto, neste contexto de pressão interna e externa sobre a NATO, neste após dois anos de guerra na Ucrânia, a organização convoca os maiores exercícios das últimas décadas, com a participação de 90 000 militares. Portugal participará com ... 37! É evidente que não se requerem umas enormes Forças Armadas nacionais, mas sim funcionais. E que neste caso a pertinência da participação no esforço de defesa comum não obedece apenas a critérios quantitativos. Mas ainda assim, e mesmo sendo leigo na matéria, esta situação causa algum espanto... interpretativo. 

Em última análise estes situação justificaria que se debatesse este assunto. E note-se que este não é assim tão excêntrico. Pois se se debatem temas "sociais", como as reformas ou o sistema de saúde, também são prementes temas que convocam custos estatais direccionados sectorialmente, como a questão do professorado ou das remunerações policiais. E, sem rodeios, debater a questão da Defesa é debater não só o estatuto de Portugal entre os seus aliados mas também - e até mais - debater o estado do Estado de Portugal. Sem patrioteirismo, sem belicismo, apenas com realismo.

Adenda: após ler este postal um amigo enviou-me esta imagem, denotativa do pensamento que os partidos concorrentes dedicam às questões da Defesa, notoriamente inexistente. E acrescenta, muito correctamente, que também nada aparece de substantivo sobre as relações exteriores, os posicionamentos geoestratégicos. Esta é a actual velocidade de cruzeiro deste regime...

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(Postal no Delito de Opinião)

21
Fev24

"Tempos, Lugares, Pessoas" de Nuno Teotónio Pereira

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Coincidência, em conversa um amigo comenta que leu na última revista Sábado um artigo sobre a (renomada) família Teotónio Pereira. E estava eu a ler este "Tempo, Lugares, Pessoas" (Público, 1996), uma bela colecção de textos de opinião - há quem lhes chame "crónicas" mas, de facto, não o são - do arquitecto Nuno Teotónio Pereira, um dos integrantes dessa genealogia. Estava-me nas estantes, herdado e desconhecido - mas é daqueles livros que decerto poderão ser encontrados em qualquer Feira da Bagageira, injustamente relegados aos montes de monos a 50 centavos cada.

Teotónio Pereira pensava bem, sabia-se - e também assim escrevia. Estes textos concisos, publicados há já três décadas naquele início fulgurante do "Público", quando o jornal era mesmo "de referência", são preciosos. Estão aqui arranjados por temáticas. Alguns convocam um sorriso - como os que incidem na sua defesa da regionalização, essa polémica que tanto durou... Outros são muito actuais, apesar das tantas diferenças, como os que abordam a questão da "Habitação", com o interventivo autor a convocar a tétrica situação pré-1974 e as posteriores tentativas de descentralizar os processos de construção habitacional. Tal como aborda as (então) mais actuais dinâmicas de necessária intervenção municipal.

Mas em cinquentenário do 25 de Abril ainda mais é de referir a dezena de textos evocativos dos movimentos de oposição, grosso modo no último decénio do Estado Novo, em particular os da chamada "oposição católica". E ainda nesse eixo estão os textos para mim mais interessantes - leigo que sou em arquitectura, e sua história -, esses que abordam a influência do Estado Novo na arquitectura nacional, e as diferentes correntes arquitectónicas que foram vigorando. Breves (2, 3 páginas) lições.

Ou seja, tinha uma pérola em casa e não sabia.

20
Fev24

Desde Moreira de Conégos

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Às oito e um quarto soou o apito inicial. Logo nos primeiros minutos houve uma oferta da defesa do Moreirense e o Sporting inaugurou o marcador. Bons augúrios. Pois se é certo que o Sporting está pujante - há 50 anos que nenhuma equipa marcava tantos golos, é evidente que o jogo flui, nisso Trincão reassumiu-se, e também o jovem Quaresma recuperou o estatuto de "muito prometedor", o sueco avançado é um verdadeiro achado, o médio dinamarquês é bem mais do que se esperava, Gonçalo Inácio está soberbo, o "nosso" Catamo pegou de estaca, Adan não está como no ano passado ... -, o Moreirense vem fazendo um bom campeonato e sempre se teme uma escorregadela em qualquer "terreno difícil". Ainda por cima porque o malvado Benfica também está forte, com avantajada panóplia de recursos. Enfim, cinco minutos estavam decorridos e o sempre difícil primeiro golo estava alcançado, a repousar a equipa, assim mais disponível para explanar o seu jogo. E nos minutos seguintes viu-se que estava mandona, ciosa de si, empurrando os de Moreira de Cónegos para o seu último reduto, com pressão alta, muita posse de bola num jeito quase turbilhão. A sossegar o adepto no sofá, tão esperançoso nisto do "este ano é que é". Apesar do tal Benfica...

Por tudo isto às 8.30 passo o canal para a outra peleja, o combate, perdão, o debate entre o capitão do PSD, perdão, AD e o capitão do PS. Para "Meia-hora" daquilo, "Vê-se o debate, que demora a primeira parte do jogo e depois volta-se, até durante o intervalo". Entretanto telefonara-me um amigo sportinguista, mesmo já durante o jogo, por coisas cá nossas, e anunciara-me estar o Capitólio cercado por polícias arruad(c)eiros.

Chego ao evento e deparo-me com algo diferente do que esperava, quase um Super Bowl politiquês. Haviam-se congregado as três estações televisivas generalistas, num verdadeiro espavento, deslocadas para o tal "Pavilhão dos Debates" e o embate previsto para uma duração de uma hora, afinal! Ou seja, a de serviço público e as outras com alvará público para emitirem, delineam um modelo de debate eleitoral que reestabelece o velho primado da "bipolarização", como se esta uma realidade virtuosa, esse aldrabismo que os fazedores de opinião propalavam há décadas. Consagrando - e nisso reproduzindo - um "estatuto preferencial" para o PSD e para o PS. Como se isso seja uma realidade "natural", geológica até, e assim autojustificada.

A árbitra Clara de Sousa fez soar o apito inicial e logo Montenegro, campeão da sua causa, foi ao tapete. Pois perguntado sobre o que pensava daquela policiesca ululante que os circundava mostrou-se para com ela muito compreensivo, fazendo nisso lembrar António Guterres titubeante, e de lesto passo atrás, diante da arruada dos produtores de vinho, nesse então dispostos ali ao Terreiro do Paço reclamando contra a redução da taxa de álcool permitida aos condutores. O que lhe valeu um KO técnico, como estarão recordados alguns dos mais antigos... Logo, lesto, Santos assumiu-se como vigoroso estadista, situando que há limites no entre as "quatro linhas" da democracia, rijo num que "não se governa sob pressão", no fundo reclamando ordem unida à polícia. E nisso fez lance de três pontos, como no basquete. Depois seguiram-se 55 minutos de "você lá, você cá", entre chutos para a frente com previsões económicas salvíficas, futebol de praia sobre promessas aos "jovens" para que estes não emigrem, e um catenaccio ríspido dedicado aos pensionistas ("como reformar um país em que os governos tanto dependem dos velhos eleitores?", mastiguei eu enquanto me servia do pacote de vinho, um decente Palmela a preço apetitosíssimo).

Disso tudo ficou-me na retina uma bela ida à linha, seguida de cruzamento bem medido, em que Santos proclamou que com ele não se patinaria, ao contrário dos anteriores governos socialistas - nisso invectivando os modelos de jogo instaurados pelos antigos treinadores Costa, Sócrates e, decerto, Guterres. Assim como se proclamando "eu sou o Rúben Amorim do PS". E entretanto prometeu que nos próximos tempos o seu partido iria estudar as "áreas económicas estratégicas" para as quais será dirigido o investimento público. Assim recordando-nos que o PS está, grosso modo, no poder há trinta anos e, ainda mais, de modo seguido nos últimos oito - nos quais ele próprio governou, ao que parece um pouco a contragosto. E que nesses longos períodos não conseguiu descobrir quais as tais "áreas estratégicas" preferenciais. Do outro lado Montenegro optou pelo jogo de repelões, com algumas entradas duras, para meter o adversário em respeito, num arcaboiço técnico que me lembrou o seu (quase) conterrâneo Paulinho Santos. Ou, para ser mais actual, o geniquento e bem sucedido molde táctico-comunicacional do nortenho Sérgio Conceição. 

Tudo aquilo demorou - o tal desplante das estações televisivas - e terminou já a meio da segunda parte do confronto de Moreira de Cónegos, tendo encontrado o Sporting a ganhar por 2-0, e decorrendo o jogo em modo modorrento. "Este ano é que é", para o Sporting? A ver vamos, que será bem bonito se tal for. Depois caí à cama.

Hoje, na alvorada, "busco" notícias sobre o embate do Capitólio. Os comentadores dão notas aos contendores, como se tudo aquilo integrasse o velho Prémio Somelos-Helanca do "A Bola", quando o jornal existia. Os tipos do Sporting dizem que o Sporting ganhou, os tipos do Benfica dizem que o Benfica ganhou. Os tipos do Porto estão calados. E ainda não há notícias sobre as punições aos polícias que invocaram "doença" para faltarem ao Famalicão-Sporting. Nem sobre o despedimento dos médicos que lhes passaram os atestados médicos fraudulentos.

Para a semana vamos a Vila do Conde, mais um "campo difícil", o sempre codicioso Rio Ave. Lá para Março votar-se-á.

(Postal para o Delito de Opinião)

20
Fev24

O Manifesto d'Os Lusíadas

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Um belíssimo amigo, meu (bastante) mais-velho, morreu já há cerca de 15 anos. Mas vem-se mantendo presente nas nossas conversas, nas cíclicas alusões à sua verve, seu sarcasmo até ternurento, suas atitudes convocatórias... Agora, há meses, morreu a sua viúva. As filhas, cada uma em seu saudável rumo, desfazem a casa. E nisso dividem entre si a vasta biblioteca do casal, segundo os seus múltiplos interesses respectivos. Depois sou chamado, amigo mais-novo do saudoso pai, para "ir ver" "se há alguma coisa que te interesse...". Acorro até cerimonioso, mas sou admoestado num mui franco "leva tudo o que queiras". Saio ajoujado. E deliciado.
 
E enceto os sacos com este opúsculo, que desconhecia, O Manifesto d'"Os Lusíadas", a prelecção de Adriano Moreira quando recebeu o honoris causa na Universidade do Amazonas (Manaus), naquele 1972 centenário da publicação da epopeia de Camões. Vigorosas 50 páginas, demonstrativas do pujante intelecto de Moreira. E que a mim, leigo que sou em Camões, me despertam a curiosidade sobre as causas do efectivo silêncio nacional, estatal e não só, neste quinto centenário do nascimento do poeta. Ou seja, convocando-me a outras leituras sobre a sua obra e sobre a utilização que dele foi sendo feita em diferentes épocas históricas.
 
Mas, e o que é mais importante, reavivando-me a memória do seu antigo dono. Por isso, Coronel, aqui bebo um uísque consigo enquanto passeio entre livros.

19
Fev24

A partida dos outros

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Envelhecemos para ver morrer outros, os nossos... Em todos estes casos, todas as vezes, limitamo-nos a para nós carpir "Carpe Diem", usando um parco latim, esse que já nos fizerem desconhecer, pois cada tradutor nos traz um Horácio diferente: "De inveja o tempo voa enquanto nós falamos: / trata pois de colher o dia, o dia de hoje, / que nunca o de amanhã merece confiança", resumiu Mourão-Fereira um mais completo "Não interrogues, não é lícito saber a mim ou a ti que fim os deuses darão, Leucônoe ... Sábia, decanta os vinhos, e para um breve espaço de tempo poda a esperança longa. Enquanto conversamos terá fugido despeitada a hora: colhe o dia, minimamente crédula no porvir", arranjou outro. Enfim, e de modo rústico, aproveite-se o dia, cada um deles, que nunca se sabe o que aí vem...
 
E mais, muitíssimo mais, custam as mortes camaradas quando inopinadas, como a que agora assumiu o Filipe. Vizinho de quatro décadas de cruzamentos, mais-velho - ele do progressivo, dos Genesis e outros, eu muito mais aos trambolhões entre Zappa e Clash. Raisparta, um daqueles tipos jóia, sem ponta de maledicência, menos ainda de malevolência. Nem mesmo de verrina. Resguardado no sorriso (bonito, diz este "tóxico"). E feito grande no interesse pelo que o outro diz(ia).
 
Há dias, já neste Fevereiro, a nossa última conversa de esplanada, sempre curta. Nunca com intimismos - que não eram para o nosso estreito entre-nós -, ele com a sua eterna garrafa de água, há 30 anos carregada, eu ainda com o meu cálice viscoso, que não o perturbava. Sorrimos a propósito de uma (serôdia) beldade local, balzaquiana aprazível de nosso apreço comum, ele impávido, na sua serenidade, eu vertendo lamentos (talvez já dado o tal viscoso) pelo amor que desbaratei alhures. E agora, assim de repente, foi.
 
Filipe, dir-lhe-ia agora, eu também gosto dos Genesis. Mesmo o início pós-Peter Gabriel... E sim, não nos podemos distrair, temos de "aproveitar o dia", Carpe Diem.
 
Genesis - I Know What I Like 1976 Live Video

19
Fev24

Navalny

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(Photo by Olaf Koens. Fotografia retirada da página "Kasparov" no facebook) )

"Um texto sobre o Navalny!", convoca-me por Whatsapp um amigo, lá no seu Benelux... "Que aconteceu?", respondo, ensimesmado em leituras... "Morreu, pá, os filhosdaputa assassinaram-no"... Regurgito uns palavrões. Depois lembro-me dos tempos de Brejnev - esses quando os soviéticos invadiam o Afeganistão, apenas uma década antes da invasão do Iraque pelos americanos, mas isso não convém dizer aos "esquerdistas" de agora -, tempos em que os mais afamados "dissidentes" ainda se safavam com vida e, alguns, com exílio.
 
"Um texto sobre o Navalny", convoca-me por Whatsapp o amigo lá de Schaerbeek (tenho saudades de Bruxelas, cada vez mais, sempre o noto). Sorrio, ao que dizerei eu? Lembro que há não muito tempo uma beldade minha contemporânea à qual - apesar de mim mesmo, nisso julgando-me mais novo ou mesmo outro - eu estaria a "arrastar a asa", me perguntou, maltes nos nossos copos, "porque me dizem que viraste à direita?", ecoando imbecilidades de colegas esquerdalhos do Campo Grande orlados de ADSE, clientes destas gerações de políticos e simpáticos para com estes académicos LIVRES e BEs... Com estas Mortáguas e Marisas Matias (estas votarem há tão pouco contra um pedido de libertação de Navalny e agora, mulas, a lacrimejarem o seu assassinato).
 
"Virei à direita", o que estes "clientes" implicitam défice intelectual e, acima de tudo, ético... "Um texto sobre Navalny" para o blog, meu querido amigo? Claro. Está aqui escrito: em 19 de Agosto de 2012. E neste longo entretanto esses da ADSE (que tu até preferes...) apreciam as Mortáguas e Matias. E votam ... nos Medinas. São, dizem - e grandolam quando em Abril - de "esquerda". Enfim, companheiro, é este
 

 

Garry Kasparov has just been arrested outside the Moscow courthouse where the Pussy Riot trial is taking place. He was not there to protest, simply to attend, and the police cornered him and dragged him into the police van. This photo shows the police assaulting him inside the van. We hope he is all right and we will provide updates when we have them.  

Era muito novo na era Fischer. Depois veio Karpov, um grande jogador nada carismático. Até porque símbolo do malévolo Urso. Claro que sempre torci por Boris Spassky e ainda mais por Korchnoi , também porque símbolos do (verdadeiro) futuro, disto de sermos imperfeitamente livres. Depois veio o génio Kasparov. Depois desliguei-me do xadrez, deixei de ler, depois deixei de jogar. Agora até perco, sem ser de propósito, com a minha filha. Kasparov ficou assim o último grande xadrezista da minha paixão, medíocre apaixonado que fui.

Agora no mundo de Putin é assim que Kasparov, cidadão não "Herói da União Soviética", é tratado. Os meus democratas europeus? Compram o gás.

Hoje como ontem.

18
Fev24

Escola Pública

jpt

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(Escola Secundária dos Olivais, nos anos 1980s, agora chamada Eça de Queirós e reconstruída)

Consta dos anais familiares que o filho do casal Pimentel sofreu de uma agudíssima nefrite aos seus três anos, causando angústia familiar. Já na convalescença o seu pediatra, o consagrado doutor Abílio Mendes, - que o petiz viria, alguns anos mais tarde, perceber como o homem diante do qual o seu pai assumia a pose mais respeitosa, numa mescla de agradecimento pelos dotes médicos e de anuência à sua postura avessa à "situação" de então -, o doutor Abílio Mendes, dizia, recomendou que a criança fosse criada o mais ao "ar livre" possível. E assim quatro anos feitos foi inscrito no Colégio Valsassina, tanto pela (vera) excelência do ensino ministrado como pela esperada robustez advinda dos ares da magnífica Quinta das Teresinhas. E assim, enquanto os homens novos da sua família partiam para as guerras d'África, medrou, mais ou menos viçoso, jamais o último do  pelotão (excepto na traumática mesa alemã, nessa ex aequo com alguns outros coxos medrosos), e nem tanto o primeiro na meta ou no quadro de honra e louvor... Nas vésperas do então notório exame da 4ª classe irrompeu o saudado "25 de Abril" e subsequente imensa agitação. Poucos dias após a "intentona" da "maioria silenciosa", já sem bibe e calções, o rapazola avançou até ao andar térreo do edifício dos "grandes", para cursar o Ciclo Preparatório, o qual cumpriu ali resguardado do PREC circundante.

Depois, Constituição aprovada, "normalidade democrática" (enfim...) encetada, e após oito anos de permanência naquele ninho de saber, ao tal filho do casal Pimentel foi dada paterna "guia de marcha" para se apresentar, logo que possível, na Escola Secundária dos Olivais, então a inaugurar. Para cumprir o obrigatório rumo de encetar o ensino secundário, o então chamado 7º ano. Como o festivo evento estava atrasado o rapaz ainda fruiu o seu Colégio até Janeiro, quando, finalmente, a novel Escola oficial estava pronta e encetou o ano lectivo, pujante no seu chão de material tóxico que alguns anos depois seria substituído.

O menino sentiu a transferência como um descalabro. Deparou-se com um compósito social assustador, a pequenada da zona oriental daquela Lisboa, com a insurreição discente - da qual, alguns anos depois, se tornou agente activo, forma óbvia de se integrar e afirmar - e com a impotência docente. E com pormaiores impressionantes, como o nunca mais ter tido Educação Física, dada a inexistência de um pavilhão ou mero espaço disponível. E da ausência de quaisquer actividades extra-curriculares, às quais estava habituado, ali resumidas a espontâneos campeonatos de flippers na fronteira tasca do Sô Álvaro, onde corriam também taças sub-15 de "submarinos" (o cálice de bagaço dentro das "imperiais"), e as maratonas de ganzas, então fumadas em cachimbos de prata (os invólucros dos maços de tabaco). Tudo isso causou efeitos tremendos nos hábitos laborais e na aprendizagem curricular - ainda que alguns anunciados falhanços fossem ultrapassados  pela intervenção doméstica do paterno engenheiro, se em questões "científicas", e da materna (e bilingue) professora, se em questões linguísticas, isto para além dos laivos colhidos na biblioteca caseira. Pois o capital cultural familiar reproduz a estratificação social, aprenderia depois o já pós-adolescente quando estudando ali ao Campo Grande...

Um dia, mais tarde, já homenzito, chaves do Fiat 600 no bolso, cigarro na mão, o filho enfrentou o pai "com que propósito é que me tiraram do Valsassina?, é que aquela escola era uma catástrofe!". O Camarada Pimentel sorriu - naquele seu sorriso algo desanimado diante do mundo imperfeito que não se aperfeiçoa à velocidade tão desejada. E resumiu "Não queríamos que fosses um menino de colégio!"...

O filho do casal Pimentel cresceu. E até amadureceu. Estudou antropologia - "nos Olivais, não ali ao Campo Grande", faz sempre questão de dizer. Depois envelheceu, empobreceu, ensimesmou. E nisso tudo nunca foi um "menino de colégio...".

Obrigado Camarada Pimentel. Obrigado Pai António. Obrigado Mãe Marília.

(Lembrando tudo isto: nesta nossa continuada "normalidade democrática" o político "já-não marxista" Rui Tavares tem a descendência em boas escolas privadas, como refere o Paulo Sousa? Não vejo problema, não vejo contradição radical entre defender uma boa escola oficial e dar o melhor enquadramento possível aos filhos. Nem todos têm de seguir as mesmas concepções de paternidade. E não confundamos a esfera pública e a privada. Pois o problema é o da demagogia nas posições e o da irrealidade das propostas. E o LIVRE é um partido muito demagógico. Nisso até melífluo. Tenhamos fé que as boas escolas façam medrar melhores cidadãos entre as futuras gerações.) 

Adenda: não quero provocar ou alimentar polémicas. Mas somando ao que disse escreve-me um amigo, após ler o postal, chamando a atenção para que a mulher do político do LIVRE é uma diplomata. Se outra razão fosse necessária - que julgo não ser - para justificar a colocação dos filhos em escolas de ensino internacional, privadas sempre, esta seria mais do que suficiente. 

(Postal no Delito de Opinião)

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Bloguista

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