Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Nenhures

Nenhures

29
Ago24

Uma década após Eduardo White

jpt

white.jpg

De manhã recebo no telefone o programa do simpósio realizado hoje na AEMO, dedicado ao Eduardo White. "Já passaram dez anos?!!!", assusto-me. E sim, logo comprovo, cumpriu-se há cinco dias a década após a morte, inesperada, do Dino, do White. Era a minha última semana em Moçambique, senti-a também como um malvado epílogo.

Os especialistas falarão da sua obra - alguns estão hoje a falar... Que haja leitores. Eu apenas deixo ligação, memória, do texto que nesses dias sobre ele balbuciei no "Canal de Moçambique".  E lembro-me agora mesmo, em sorriso saudoso diante da triste coincidência, do tão difícil Eduardo a entrar-me restaurante adentro, barafustando comigo e com os nossos imensos convidados, mais de oitenta - a Inês fazia 40 anos -, a propósito de... nada, ladeado pelo atrapalhadíssimo sorriso do Jaime. "Estás a desatinar Eduardo!... Comigo não, pá!", respondi-lhe. E assim logo me deu as costas, seguindo a resmungar com o mundo alhures, o que lhe era nitidamente urgente. Até a um qualquer outro uísque que nos sentou juntos. Mas já não.

(O Eduardo White foi companhia no ma-schamba, e também para lá enviando alguns textos).

29
Ago24

Regresso aos DVDs

jpt

dvdn.jpg

É importante louvar "isto" enquanto por cá se anda. Mais que não seja para que não aparente eu ser um velho cansativamente negativo... Nisso não caindo na cantoria das utopias metafísicas, tais como aquela da insuportável, de insustentável, "felicidade". Mas sim saudando o fruir, esse que se vem com a aparência material é mesmo obrigação moral.
 
Há dias recebi uma encomenda postal, contendo este dvd do "Notting Hill", enviada por uma boa mas bem longínqua amiga, carinhosamente irónica no dito "directamente das ruas de Maputo" - dvd pirata, pois então, como lá abunda(va)m - "pois não quero que te falta nada", sabedora da minha militante (e eterna) afeição por aquele "indefinitely" da Julia Roberts...
 
Acontece que o meu leitor de dvds se estragara há muito tempo, e já o remetera para o apropriado lixo. Em roda de amigos narrei o caso - orlando-o, sou franco, com laivos de gabarolice, espúria como esta sempre o é, naquilo do "ainda há miúdas, e bonitas, que me mimam". Logo um velho amigo, rindo-se, me resolveu o caso "não seja por isso, tenho um leitor velho a mais, dou-to", e dias depois retornou à esplanada do bairro com a máquina.
 
Ontem fui a um aniversário, e contei a historieta, enquanto vasculhava as estantes do casal cinéfilo. "Então leva já este, que é o melhor filme do mundo", diz o aniversariante, dono do ali repetido "Leopardo" de Visconti. O qual já não revejo há uns bons anos.
 
Depois, em modo breve, aflorou-se Delon, e foi bom ver gente "de esquerda", e muito letrada, desprovida do cretinismo abespinhado com o actor agora morto devido às suas ideias políticas. Pois não são destes folclóricos de agora, incapazes de perceberem o mandamento "Para que tudo fique na mesma, é preciso que tudo mude", com que Lampedusa prenunciou (e denunciou) estes patetismos de agora, os "cancelamentos" com que se intumescem.
 
Enfim, sigo agora - hoje à noite -, bem para além dessas gentes minudências. Pois para rever o baile no Leopardo de Visconti. Nesse belo louvando as dádivas recebidas.

27
Ago24

Jaime Santos

jpt

jaime.jpg

Morreu o Jaime Santos. Quando fui para Maputo uma das surpresas que tive foi a apetência que ali reinava por saraus de poesia - coisa então algo em desuso por cá. Logo à chegada me deparei com vários. O trio de declamadores que mais ouvi era composto pelo bom do Calane da Silva - que também já foi -, a minha querida Ana Magaia, e o Jaime. Todos eram bastante enfáticos, mas isso mais me surpreendia nele, naquela sua força fragilíssima, de onde lhe viria tudo aquilo? Era um homem peculiar, logo ombreámos, "olhe que o Jaime é um tipo difícil", avisavam-me os mais desatentos àquela sua infinita doçura, às vezes mal disfarçada. "E não sou eu também?", resmungava-lhes... E dizia-lhe disso, ele gargalhava, naquela sua casquinada tão própria.
 
Andei agora aqui vasculhando as prateleiras mais esconsas, onde guardei as coisas da "cultura", catálogos e preçários, folhas de sala, biografias, sei lá mais o quê, do que fui vendo por lá. Procurando materiais com ele, para ilustrar este meu adeus (sou ateu, não uso os insuportáveis RIPs e DEPs, "paz à sua alma", "um dia estaremos juntos..." e quejandas superstições). Mas nada encontro, tamanha a profusão de pastas, não seja por isso... Entre tantos dias mais avulsos lembro-me de uma sessão mais composta, "produção" mesmo, que fez com a Ana Magaia sobre Pessoa & Heterónimos, uma realização muitíssimo bem conseguida. Era para seguir até à Beira, ele próprio não quis, demasiado descrente naquele dia. Teria encantado....
 
Com o passar dos anos fui-me retirando das coisas da "cultura". Nisso vendo-o menos. Mas encontrava-o, quase sempre, quando ia a uma livraria - eram pouquíssimas em Maputo. Nelas - mais na Escolar Editora, seu poiso habitual - ele abancava a ler, tinha "carta branca" devida ao leitor compulsivo e - sempre - pouco abonado que era. Às vezes interrompia o livro para me explicar o que lia. Outras pausava um pouco mais para irmos beber um copo - "vinho" - ao estaminé mais próximo. Outras vezes mal me ligava, embrenhadíssimo num qualquer texto...
 
Esta fotografia que partilho, tirada do mural de Facebook do Tomas Cumbana (e talvez da sua autoria), muito provavelmente será da última vez que o vi declamar, com o mundo irado dentro dele, no funeral do Alexandria, o escultor inacreditavelmente linchado por uma turba desaustinada.
 
Mesmo cá de tão longe, e provavelmente nisso para sempre, "isto" sem o Jaime fica mais deserto.

25
Ago24

Uma semana jubilosa

jpt

1.jpg

2.jpg

3.jpg

4.jpg

Por mais rusticidade, até altaneira em modo desprendido, que vá eu encenando sigo vaidoso, como tantos outros, a maioria desses, diga-se... E, pior ainda, mimalho. Como tal foi-me jubilosa esta semana que agora termina. Num tão assim que rara, mesmo. Narro-a para que não me reduzam a resmungão, dado ao azedume, amargurado pela vida, desatento às benesses que me recobrem.
 
Começou-me no texto do amigo Pedro Correia, o maior elogio - se explícito, másculo e público, ressalvo - que alguma vez recebi, louvando o meu "Torna-Viagem" em tais moldes que, como lhe disse, até me causou um frémito de estar já com "os pés para ... o forno", dados os laivos de eulogia que ali... temi. Nisso empurrou o livro. Este quase invisível (edição de autor, desconhecido, numa plataforma digital em impressão por encomenda). O amigo Pedro Morais, homem da banda desenhada, avisara-me de início, "editado assim se venderes 50 é livro de platina!". Eu esperava impingir 100, a utopia era 150... Mas agora, com este elogio chegou às 175 vendas! Digo-me, a mim-mesmo pois, se chegar às 200 encomendarei chamuças de diferentes origens para uma "prova cega".
 
Mas mais mimos me chegaram. A minha querida Ana, de que tanto gosto e me faz falta quando se ausenta, minha mana - "com a idade tornaste-te sentimental", há dias protestava outra amiga, telefonando de longe a combinar comigo os moldes de festa que aí vem, "sempre fui, agora não tenho é pejo de o mostrar", defendi-me -, a Ana, dizia, voltou após meses de Moçambique. Trazendo na carga - "só carreguei porque é para ti..." - uma bela oferta da também tão amiga Fátima: um grande frasco de achar de limão, confeccionado com os seculares saberes de Inhambane. Que mais pode querer um homem? "Mal arranje um portador envio-te um de achar de manga...", responde-me ela ao meu agradecimento! Matabicho de hoje? Malga de café, torrada barrada de achar...
 
Tudo isto orlo com um pouco de cultura, inesperado auto-mimo. Ando a ler os Voltaire - a reler, como se diz dos clássicos, avisou Calvino. E descubro, caído na estante atrás da fileira vigente, este "A Princesa da Babilónia", colecção de seis contos, que - a este sim - nunca lera. Comprado há vinte anos, diz lá. Muito melhor do que um livro novo é mesmo encontrar um esquecido.... E também recuperar um antigo, e nisso leio este "Vélazquez" (sic) com oito reproduções fac-simile em cores, editado em tempos bem recuados por Pierre Lafitte e Cie. Pois preparo-me, dado que ando há meses para ir à Gulbenkian ver o retrato do nosso rei Filipe III e não passa desta semana... "Não tens livros novos, aqueles da Taschen, e isso?, sobre o Velásquez?", mais as "Histórias de Arte" canónicas, carregados de ilustrações e de ensaios actuais?. Tenho, mas assim irei com o meu avô Flávio, que a este mono cá de casa, que resdescubro, comprou em 1911. Razão suficiente para me preparar deste modo, mimando-me com a ancestralidade.
 
Nisto cruzei o Tejo, rumo a almoço às portas de Almada, casa amiga sempre de boa mesa. Não sou grande admirador do comestível coelho, mas não me nego. Mas ontem, e já nestes meus 60 anos, deparo-me com o melhor coelho da minha vida - à mesa o autor reclama que o molho não ficou o espesso suficiente, adiantando razões que nem compreendo tamanha a voracidade com que mastigo. "Como se chama a receita?", pergunto, enquanto me sirvo de segunda pratada, "Coelho à sem nome", diz-me, ríspido, o talentoso artífice, que estou ali a conhecer...
 
Mas o maior dos mimos foi outro. "Pai, podes-me rever a tese?", pergunta a Carolina, e nisso estive eu, nestes dias, a reduzir-lhe as palavras - ajudando a adequá-la aos limites impostos -, a garimpar-lhe a (extensíssima) bibliografia, a comprovar-lhe a justeza sintáctica. Entregou-a na sexta-feira. Numa mescla metodológica difícil, associando Ciência Política com Economia (quantitativa, não a sociologia dita Economia Social). Debatendo as articulações entre investimento em energias renováveis, dívida externa e condicionamento político. Como estudo de caso esmiuçando o exemplo moçambicano. 22 anos, culminando o seu segundo mestrado, antes um na Nova, este agora na LSE. Deparo-me, sem espanto mas ainda assim com alguma surpresa, com um trabalho de grande robustez. E atrevendo-se a correr riscos intelectuais. Com competência e denodo. Pujança. Fica assim um pai babado, muito mimado. E como sempre a frisar: "quem sai aos seus não degenera". Pois a jovem puxou mesmo à Senhora sua mãe. Grande profissional, arguta intelectual.
 
E para esta semana já chega. Tanta coisa boa foi que vou celebrar, uma estroinice: almoçarei um crepe no chinês dos Olivais. Se alguém quiser passar por lá...

22
Ago24

As "Pessoas Que (Não) Menstruam"

jpt

O diretor da Universidade de Verão do Partido Social Democrata (PSD), Carlos Coelho, discursa durante a sessão de encerramento da Universidade de Verão do partido em Castelo de Vide, 04 de setembro de 2022. NUNO VEIGA/LUSA

(Foto de Nuno Coelho, Lusa, retirada daqui)

Há duas décadas conheci em Maputo uma jovem antropóloga espanhola, competente e simpática, que ali leccionava com agrado discente e apreço colegial. Um dia, em conversa decorrida no café do "campus", aludi - e decerto que com amoroso desvelo - à "minha mulher". Ela saltou, inopinadamente, furiosa com a utilização que eu fizera do possessivo, cenho (até belo) franzido, voz alterada, invectivando-me "és o dono dela? é tua propriedade?".

A nossa relação era curial, naquele pacífico tom de colega, e aquela sua reacção extravasava-a por completo. Eu sabia-a dada aos execráveis nacionalismos - dos daquela turba que se diz "catalã" e nisso geneticamente mais aparentada com os franceses do que com os portugueses e marroquinos, entre outras lérias. E de pendor feminista - ideário louvável, ainda para mais naquele país austral, onde, tal como na esmagadora maiorida das sociedades, a igualdade de direitos e a equidade de oportunidades é um necessário desiderato, mas ainda bem longínquo... Mas que me agredisse assim - apesar de ser eu um verme masculino e um desprezível mouro independente -, com armas sintácticas e semânticas, foi-me surpreendente.

Avanço que detesto quando algum não falante de português como língua primeira me vem dizer, doutoral, como devo falar a minha língua - como aquela espanhola naturalizada portuguesa por via de casamento que gritava, mão na anca, que a devíamos chamar "presidenta", "colona" miserável, disse-a, entre outras mudas alusões à comercialização dos seus dotes físicos. Entenda-se, desses alterfonos aceito correcções e propostas, mas não mandamentos linguísticos. Tal como detesto estrangeirismos inúteis, pois desprovidos de conteúdos semânticos - como o "seivar" no lugar de "guardar" ou "gravar", o patético "deletar" em vez de "delir", ou o insuportável "link" como "elo", para exemplos. Já para não falar dos inúmeros que são meros arrivismos guturais, a julgarem-se cosmopolitas. Não é isto nacionalismo linguístico. Mas apenas a consciência de que nem tudo o que vem "lá de fora" é de oiro. Aliás, nem tudo o que desse "lá" por cá aporta reluz...

Mas apesar de tudo isso, e porque estava num bom dia, à minha colega não respondi desabrido, mas sim sorridente. O que lhe piorou a disposição, pois as feministas quando estúpidas e/ou ignorantes - e "ele" há-as - sentem como machismo (o que chamam "mansplaining") a explanação ponderada e eficiente da sua ignorância e/ou estupidez. Avisei-a pois de que quando o amor da minha vida se me referia como "o meu marido" não estava a afirmar-me como sua propriedade, qual escravo (ainda que eu dela me sentisse assim, e disso ufano, na escravidão voluntária que alguns historiadores referem). E aduzi que quando tratava alguém, respeitosamente, por "Senhor" ou "Senhora", ou mesmo "Minha Senhora" não me estava a reclamar seu servo ou lacaio. Não ficou ela convicta, a conversa ali morreu, lembro apenas que um antes apalavrado jantar em nossa casa com ela e o "companheiro" (decerto seria esse o estatuto) não se veio a realizar, por mútuo esmorecimento de vontades.

Leio agora que a Pessoa Que Não Menstrua Carlos Coelho - um antigo excitadinho da jsd, que pelos vistos 40 anos depois continua na politiquice - vem defender a Pessoa Que Menstrua (ou Menstruou) actual ministra da Juventude. Ambos repudiando a utilização dos termos "homem" e "mulher", considerados vilanias anacrónicas, pois coisas do "antigamente". E afirmando ser necessário seguir as instruções vindas "de fora", o palavreado das "organizações internacionais".

Diante disto o que é que um tipo diz a este ex(?)-jotinha? Um mero "vai-te menstruar, pá!"? Ou explica-se-lhe, com verdadeiro mansplaining, as matérias do conteúdo social (semântico) da língua? Hum, duvido que esta pessoa desmenstruada, mero jotinha profissional, chegue a tais compreensões... Quanto à menstruada ministra, de qual nunca ouvira falar, presumo que seja da mesma estirpe. E é esta tralha humana que se julga "atenta". E, ainda pior, que nos governa.

19
Ago24

O Barbeiro do Alain Delon

jpt

delon.jpg

In illo tempore fugi de Direito, primeiro, e de Sociologia, depois, e fui estudar Antropologia. Um erro, crasso (desaconselho-o às novas gerações - não por causa dos saberes disciplinares acumulados, esses louváveis...). Tal se deveu à complacência dos meus pais, crentes de que eu, de facto então petiz, mesmo se barbado, saberia do melhor para o meu destino.
 
No final da licenciatura (que cumpri de modo trôpego, arrastado e sofrido) tinha de concluir uma disciplina, mal leccionada - sei do que falo, pois vim a leccionar tal coisa, anos depois e alhures, fazendo-o de modo muito melhor e ainda assim mal. Para esse êxito era necessário escrever um trabalho e apresentá-lo oralmente. Era uma "história de vida", coisa então muito em voga, fruto do sucesso de "Os filhos de Sanchez" do célebre O. Lewis e, menos, do anterior "Juan Perez Jolote, biografia de um tzotzil", do mexicano Arciniega. A ideia, nada má de per se, era que da "história de vida" (que não da biografia) de alguém se induziam os feixes constitutivos / constrangedores de determinado contexto histórico.
 
A colegada, impregnada de "sensibilidade etnográfica" - ainda que à bolina naquele Portugal "europeu" que tornou a velha etnografia em meros "salvados", sem que nenhum dos funcionários públicos doutorais a avisasse disso - correu a buscar um qualquer vizinho vulto típico, pitoresco, que lhes contasse a sua "história". Já não me lembro, mas presumo que tenham saído do armazém a velha criada, o pescador curtido pelo Sol, um oleiro ou amolador, etc.. Eu, "do grupo dos Olivais" - como ainda hoje me apresentam - disse uns palavrões, peludos e líquidos, sobre isso de andar a estudar durante os melhores anos da vida para depois ir à procura do "típico". Em monólogo mudo insultei colegas e professores. E fui entrevistar o meu querido barbeiro.
 
Esse era um excepcional "cabeleireiro" (como exigia ser chamado, dado que tinha formação profissional, e disso era ufano) de homens. Aos seus clientes regulares oferecia dois cortes: o da tropa - e quando segui para Mafra fez-me um pente zero à mão (!!!!), tão rapado que o mancebo alferes me veio a dizer que não era preciso tanto... uma obra de ofício mesmo espantosa; e o de casamento, coisa que algo depois fui cobrar, chegado de Maputo na antevéspera do meu feliz enlace.
 
O seu salão olivalense, de labor imparável, era também um refúgio. Ali se acoitavam os jovens depressivos do bairro, "drunfados" claro, os outros "drunfados" oficiosos, pois voluntários, alguns ex-junkies mais mansos, enfim, o colectivo dos desamparados sem mais. E mesmo amigos e vizinhos que ainda seguiam inteiros, ou isso julgavam. Crente Ba'hai, e algo prosélito, mas sem excessos, a todos acolhia e, com imensa generosidade, aconselhava. Num saber que os pobres doutos diriam de "senso comum" mas que a todos acalentava - e por isso sempre regressavam os seus ouvintes. Verdadeiras terapias de grupo...
 
Enquanto nos aparava - com a sua, de facto, magnífica técnica - perorava, incansável. Não só sobre os rumos que cada um presente naquela plateia, real congregação, deveria seguir. Mas também, e essa era tema constante, sobre a sua experiência de vida. Pois ele era um magnífico, grandiloquente, mitógrafo de si mesmo. E o que mais me fascinava era o facto daquela sucessão de mirabolantes episódios ser contada e recontada sem falhas, sem aquelas alterações que desvendam a ficção e, muito mais, a autoficção. De facto, ele era um talentoso mitógrafo, pois crente irredutível do mito que construía, ele-mesmo...
 
E basto credível nisso  - ainda hoje os que o frequentaram afiançam da veracidade dos detalhes então narrados: a participação na resistência armada antifascista, o mergulho na clandestinidade, a partida "a salto" para o estrangeiro, as desavenças com o (micro)movimento em que militava. E o ressurgir da "normalidade", fazendo-se cabeleireiro no Sul de França, estudando isso e estabelecendo o salão em Marselha. Tendo-se seguido a fuga daquele país, para Norte, para mais um mergulho na clandestinidade da resistência armada antifascista. Depois viera o 25 de Abril, a liberdade e o seu regresso ao país. E só então o remanso - laborioso, é certo - da vida familiar, vivida naquela religiosidade bonacheirona, até anafada, de uma imensa generosidade, esse a que nós assistíamos, acompanhávamos. Que tanto me encantava. E a tantos dos meus vizinhos, seus fiéis clientes.
 
Nesse rodopio que lhe fora o vivido narrado havia um episódio que me era mais sonante, a causa da sua fuga de Marselha, norte afora e regresso à luta antifascista clandestina. Pois o seu salão marselhês havia tido um rápido sucesso, a clientela crescera desmesuradamente. Alain Delon cedo se tornara cliente habitual. Mas esse tinha um defeito: julgava que o seu estrelato lhe concedia estatuto privilegiado. Um dia, farto das irrupções de Delon no seu salão, o cabeleireiro disse-lhe, sem rodeios: "Ó Alain, tens de ir para fila como os outros, espera a tua vez...". Claro, o actor, despeitado, mandou os seus capangas violentá-lo, tendo ele fugido, felizmente antes de ser seviciado. E nunca a história faltava, e nunca tinha versões adulteradas...
 
E talvez a lembrança dessa prazerosa, mas convicta, encarnação do Delon de Borsalino seja exemplo maior de como através do cinema a ficção se pode tornar real - verdadeiramente real. Sendo assim uma grande homenagem ao actor que agora morreu. E que fez das suas personagens parte da nossa vida, de forma tão... viva.
 
(Claro, escolhi como meu objecto de "história de vida" o maior mitógrafo que conhecia, o menos típico "informante" que tinha à mão. Porque acreditava, e ainda acredito, que era o mais significante para ser ouvido... Apresentei o trabalho final na minha última aula de licenciatura, dia grande... A assistente do regente, jovem ainda, quando expliquei as causas daquela minha opção, respondeu-me, crítica, lá do meio da sala: "isso é o contrário do que qualquer manual de investigação recomenda!"... Eu, também jovem, ripostei, até sem querer: "se eu estivesse preocupado com manuais tinha ido estudar Gestão" - coisa que, de facto, deveria ter feito, estaria agora numa prateleira algo remunerada, em teletrabalho pré-reforma. 
 
Dispensava-se de exame final se obtida uma nota de frequência bastante acessível, até medíocre. Mas tive de o ir fazer, foram implacáveis... Mesmo assim ainda hoje penso que "O Barbeiro do Alain Delon" foi o melhor texto que já escrevi.)
 
 

16
Ago24

Biblioteca José Capela (José Soares Martins)

jpt

quelimane.jpg

Uma notícia que me enche de júbilo. Esta é a igreja de Nossa Senhora do Livramento (a dita Catedral Velha), sita na marginal do Rio Bons Sinais, erguida entre 1776-86. Com a construção do novo templo, inaugurado julgo que em 1974, e a independência - com a concomitante partida de muitos católicos e alteração das relações entre igreja católica (e outras) e Estado (e empresas) - estas instalações foram decaindo.
 
Recentemente a Associação dos Bons Sinais - dedicada à promoção sociocultural da Zambézia - conjugou esforços para reabilitar este património, tornado Centro Cultural Bons Sinais.
 
Ora, na semana próxima, dia 22 de Agosto, inaugurará em instalações adjacentes, agora construídas, a sua Biblioteca, que decerto virá a ser preciosa para a cidade. E a qual será denominada "Biblioteca José Capela (José Soares Martins)", uma homenagem muitíssimo devida ao historiador que tanto trabalhou sobre a história zambeziana. E moçambicana. E também ao exemplar cidadão que tantou pugnou por uma melhor compreensão mútua entre os nossos países.
 
O meu júbilo com a notícia não é "protocolar", formal. É mesmo real. Pois tenho para com José Capela (1932-2014) - que era o pseudónimo historiográfico de José Soares Martins - uma enorme dívida de gratidão pessoal. À qual associei uma outra, intelectual, lendo-lhe a vasta obra, que me foi preciosa para entender Moçambique, o Portugal colonial (e um pouco do Portugal actual).
 
Não as saldei, a essas dívidas, apenas tentei enunciá-las num texto que em tempos lhe dediquei: "José Capela: o escravismo em Moçambique como violência estruturante".
 
E como tal aqui venho saudar a Associação dos Bons Sinais pela belíssima e tão justifica iniciativa. E fazer votos para que Quelimane, e a Zambézia, muito fruam a nova biblioteca.
 
Adenda: antes deixara uma breve nota aquando da sua morte, em 2014.  E também uma curta recensão a dois dos seus livros (Conde de Ferreira & Ca. Traficantes de Escravos", "Delfim José de Oliveira, Diário de uma Viagem da Colónia Militar de Lisboa a Tete, 1859-1860"), e uma outra recensão ao seu "Caldas Xavier. Relatório dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1884". 

14
Ago24

Morreu o Mário "do B'artis"

jpt

Artis.jpg

(Bar Artis, Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

Recém-octogenário morreu ontem o Mário Pilar, o qual sempre dizíamos Mário "do B'artis". Discreto, fez do seu bar um dos grandes pólos daquele Bairro Alto que mudou Lisboa na década de 80.  Abrira-o no início de 1983, na Diário de Notícias, mesmo no centro do que veio a ser a nova azáfama noctívaga do velho e então decadente bairro. Pouco antes estabelecera-se a discoteca "Rockhouse" também na Diário de Notícias, que cedo mudou para "Jukebox", e logo depois o celebrizado "Frágil", ali ao lado, na Atalaia. E para suporte daquilo havia apenas a vetusta "Tasca Azul", como lhe chamávamos, de seu nome "Arroz Doce", que logo gentrificou (como então não se dizia) a clientela, pois defronte ao "Frágil" e pertença da Tia Alice, irmã do Alfredo que sargentava (e sargentou durante décadas) a portaria do então novo bar-discoteca, desde cedo feito coqueluche lisboeta.

E logo o "B'artis" abriu portas. Num registo diferente dessas casas e das que vieram a pulular na área, o qual manteve durante o quarto de século de existência. Uma pequena sala sob decoração levemente bric-a-brac, com mesas fresquíssimas pois com tampos de brecha da Arrábida, música jazz gravada emitida em tom baixo, a convocar conversas, e preços nada especulativos - apetecíveis naquela era de FMI, louváveis anos depois, já na era das "vacas gordas" europeias. E servindo produtos que se tornaram clássicos locais, pois corriam quantidades do excêntrico "Favaios" e, acima de tudo, ali nos socorríamos de umas decentíssimas e sempre lembradas tostas de frango, que nos escoravam noites afora. A clientela era heterogénea, descomprometida no sentido de descomplexada. Ou seja, isenta da real pinderiquice dos modismos, de vestes, modos e ademanes, que preechiam o sacrossanto "Frágil" e adjacentes. Lembro-me de ter lá chegado, aquilo muito recente, eu ainda caloiro universitário, e ter resumido o ambiente: "é um sítio de professores do liceu", naquele sentido de gente não pintalgada de parvoíces...

O Mário era afável, sem falsos companheirismos com a clientela, e isso vinculava-nos. Rapidamente me tornei, e alguns dos meus, residente naquele curto balcão - mais tarde, num aniversário meu, um amigo chegou com um pequeno presente, tinha mandado imprimir na máquina de multibanco um pacote de cartões de visita meus: a morada era a do "B'artis"! 

De facto, o "Bairro" passou a ser o "B'artis". Claro que havia outros sítios apetecíveis. De início passava-se lá a beber um copo, ou mais, depois ia-se até ao "Lábios de Vinho", onde pontificava o Hernâni, espreitar um "Ocarina" ou outro, e subia-se ao "Frágil". Com o passar dos anos esse roteiro foi mudando mas a base, o ponto de encontro (e de fuga, também) sempre era o "B'artis". Ali se continuava a bebericar, antes de se partir à volta obrigatória. O "Frágil" foi-se tornando cansativo, crescentemente homossexual e suburbano, ia-se lá, até com fastio blasé, para se dizer que se fora, e voltava-se ao "B'artis", para depois, claro, avançar até aos "Três Pastorinhos", tornado o grande sítio, belo ambiente e excelente música. E se houvesse dinheiro (e força) seguia-se ao "Lontra" na Rua de São Bento, ou às "Caves Adão", mais tarde até aos poisos nas Escadinhas do Duque e à inicial 24 de Julho. Anos depois, ainda no Bairro Alto abriram casas apelativas, como o "Mahjong", mais coito das gentes cinéfilo-artísticas, e o "Targus", do sempiterno Hernâni, esta mais abrilhantada pelos núcleos da então viçosa publicidade e da explosiva comunicação social. Mas picava-se o ponto por lá, "viam-se as modas", e "B'artis" connosco, até porque a casa cada vez ia fechando mais tarde, e sempre cheia... Pois era ali o sítio, por estar lá o "ambiente". Sem poses, entenda-se.

Sendo ele discreto poucos lembram ter sido o Mário Pilar, casapiano desde sempre, que cativou o palacete do Casa Pia Atlético Clube para aquelas loucas "Noites Longas", que durante cerca de três anos agitaram - e mudaram - a noite lisboeta, não só alongando-a até às alvoradas como também miscigenando os convivas, como nunca antes naquela ainda velha e provinciana cidade. Mais tarde, já na Lisboa Capital de Cultura de 1994 ao Mário Pilar surgiu-lhe mais uma iniciativa de conjugação, metendo-se a empurrar as Noites de Jazz no Café Luso, esse seu vizinho, pondo o tradicionalista mundo do fado a dar espaço aos melhores músicos de jazz nacionais. Então uma quase heresia...

Desde finais dos 1980s, o Mário Pilar foi-se para a Comporta e investiu o fruto do seu industrioso e incansável labor em casas no Possanco e Brejos da Carregueira, pensando numa explosão turística por aquelas zonas. As quais se tornaram o seu mimo. E orgulho. Um precursor, como é agora evidente, sorrimos nós ao lembrá-lo. Atento. Em 2007 decidiu-se a fechar o "B'Artis", trespassando-o (ainda lá está, com o mesmo nome mas outro perfil). Há alguns anos, pouco antes do COVID, fui jantar nas cercanias do Largo do Caldas, estava à porta do restaurante a fumar e passou ele - vivia ali perto. À minha mesa estava gente da "velha guarda", também antigos residentes do balcão do "B'Artis", levei-o até lá. Foi uma festa, horas de conversa, ele notoriamente agradado com o rosário de memórias ali percorridas, e com o agrado, genuíno, que mantínhamos pelo seu bar. Contou-nos da sua vida, fruindo então de uma velhice saudável e bem-disposta. Viajava imenso, pelo Oriente, Japão e isso, chegara há pouco do Irão, preparava-se para partir para a Coreia do Norte (!), naquelas viagens guiadas pelo escritor Peixoto...

"Foi na casa dele que a gente verdadeiramente se divertiu aos 20 e 30 anos", sumarizava o amigo que me telefonou ontem a anunciar a sua morte. "Quando ainda nos divertíamos!", resmunguei, pesaroso, para sua imediata concordância.

O funeral do Mário Pilar é amanhã, quinta-feira, dia 15 de Agosto. A cremação é às 14.00 horas no cemitério do Alto de São João. Lá irei, por causa de tudo isto que narrei. E talvez encontre algum antigo residente do balcão do "B'Artis". E depois da cerimónia teremos de encontrar um qualquer sítio para se beber um "Favaios".

13
Ago24

Passado colonial

jpt

mossuril.jpg

 
(Isto não é um ensaio, e muito menos um artigo. É um desabafo. )
 
Na fotografia estou eu no Mossuril, impante quarentão ladeando o velho canhão pátrio. Não estava ali traumatizado, nem me sentia um Atlas com o peso da História aos ombros. Nem o devia estar. Nem sentir...
 
1. Para quem não saiba o Mossuril foi durante séculos um dos cais de embarque para a Ilha de Moçambique, que lhe está defronte. Esta - sempre romantizada, com laivos de poesia (há muita versalhada sobre o sítio) ou de devaneio turístico - foi sempre um entreposto, ali se carregavam as embarcações as quais seguiam Índico afora. E, como outras feitorias portuguesas em África (ditas "possessões"), sobreviveu séculos com as taxas alfandegárias e os ganhos comerciais dos... funcionários. Pois desde XVI - pelo menos - ali chegavam as caravanas vindas do interior, fronteiro ou muito distante. Trazidas por gentes várias que vieram a ser ditas macuas ("selvagens", na língua das gentes algo sualízadas do litoral, pois vistos como inferiores boçais do  mato), por ajauas, por outros. Algumas caravanas iam até ali, para Quelimane também, tal como ao Ibo, outras calcorreavam rumo a outros portos exportadores onde inexistiam portugueses, na demanda de melhores custos-benefícios.
 
Ao longo dos séculos vários foram os produtos transportados. A partir do primeiro quartel de XVIII e, acima de tudo, durante XIX o que mesmo cresceu, com enorme afinco - uma verdadeira "bolha" para falar como agora -, foi o comércio de escravos. Lá para meados de XIX isso foi ilegalizado mas continuou como "tráfico", e seguiu - assim mais lucrativo, qual bootleg da Lei Seca americana - até inícios de XX. Progressivamente mais difícil, e também mais raro, mas ainda assim numa azáfama de transportadores terrestres, vindos cada vez de mais longe, pagando portagens aos sucessivos "donos da terra" - tipo as chefaturas ekoni do interior de Cabo Delgado ou os namarrais que se chegaram à Ilha para cobrar ainda mais caro (mas a mitografia nacional veio a torná-los "heróicos", por se terem oposto à ocupação portuguesa). E uma azáfama de transportadores marítimos, árabes, suaílis, franceses, holandeses diz-se, brasileiros também e muitos. E portugueses.
 
Lá mesmo para o final, século XX já encetado, os portugueses (e julgo que também os franceses, mas assim apenas de memória não o posso afiançar) tiveram um episódio cristão bem denotativo: embarcavam-se os desgraçados, no convés estava um padre, "baptizava" as criaturas, elas "assinavam" um papel, e eram "elevadas" a cristãos trabalhadores livres, "contratados". E seguiam às ilhas índicas. (Vá lá, chamai herege a este ateu.) Depois isso acabou - dizia-se, e bem, "Britain rules the waves" e era cada vez mais difícil, pois esses não queriam mesmo tais práticas.
 
Já República feita, mandando a maçonaria e os antepassados dilectos do PS - mais os terroristas que hoje seriam do Bloco -, os portugueses adaptaram-se. E viraram-se para arregimentar gentes, enviando-as também como "contratados" para São Tomé, às roças que por lá medravam. Iam para a... vida toda. Seguiam tantos, e também recrutados para as minas sul-africanas (trabalho que dava gigantesco lucro ao... Estado, tipo os médicos cubanos de agora que pagamos a Havana, mas vivendo então bem pior), que os administradores do centro e norte contestavam tais práticas, pois faziam escassa a mão-de-obra por essas paragens, tão necessária para plantações (onde as havia) e para ... o trabalho forçado. Tudo isto está escrito, nos arquivos e em livros.
 
2. Nesse rumo foi-se instalando o colonialismo moderno, a "ocupação efectiva", de facto terminada lá pelos anos 20s. Na tal I República, trapalhona. E, depois, no Estado Novo, competente q.b., mesmo que se algo trôpego colónia adentro. O regime europeu em África foi bastante diversificado, consoante o país colonizador, os tipos de colonos chegados, as características dos colonizados. As especificidades de cada uma das colónias. Ainda assim tinha duas características básicas:
 
a) racismo: a crença na legitimidade da tutela exercida sobre os locais, pretos. Estes considerados inferiores por condição racial, assim individual e colectiva. Ou por um estado transitório, seu contexto, seu "atraso", assim também colectivo, mas possibilitando a ascensão "civilizacional" individual. Grosso modo, diferenças ditas como entre a visão segregacionista e a assimilacionista. Na administração portuguesa conviveram as duas visões, até mesmo coabitaram, desde a mais desbragada consideração da impossibilidade dos pretos ascenderem, até à crença de que "a seu tempo" evoluiriam a contento. Cerca de 1950 vingou a mais aprazível versão oficial assimilacionista - que tinha sido esfacelada desde a tal República -, aquilo de "os rapazes fazem-se". E na década de 60 - após a reforma de Adriano Moreira, imposta não pela sua magnitude mas pelos "ventos da História" - as barreiras raciais administrativas foram muito aliviadas, as sociais algo matizadas, nesgas de assimilacionismo urbano medraram.
 
São essas nesgas que sempre surgem convocadas no memorialismo dos ex-colonos, a ladainha dos actuais sexagenários e septuagenários do "eu tinha indianos e mulatos, e até negros na minha turma de Liceu", "nós lá em casa tratávamos bem os empregados", "nunca vi racismo", "os pretos andavam na rua", etc. São estes aromas benevolentes que permitem que um tipo como Rui Ramos vá em 2024 à rádio disparatar "a descolonização começou em 1961", para encanto de Maria João Avillez - essa que eu ouvi, com estes ouvidos que o forno cremará, clamar diante de uma elite moçambicana muito crítica (demasiado crítica, em meu entender) "vocês não gostam de nós?, depois de tudo o que fizemos por vocês?!!". Isto não serve para entender o real. O passado. E um bocadinho do presente.
 
b) opressão e sobreexploração: as formas de opressão eram várias e os seus conteúdos diversos. Também há muita coisa escrita - sim, sei que muita da literatura anticolonial era muito militante, antes e depois das independências, a gente torce o nariz às formas selectivas dessas narrativas e análises. Mas é preciso não querer ver os âmbitos em que desvalorizações e a proibições eram exercidas para as ignorar, ou dulcificar. E depois a sobrexploração. Dir-se-á (e bem) que em Portugal também os direitos laborais (e outros) eram escassos. Mas por ali eram diferentes: a corveia ("trabalho por papas") - para o Estado e para os privados que tivessem boas ligações com a administração - era pesadíssima. E imensa - e não é preciso ser um esquerdalho para relembrar isso, leia-se o bispo da Beira, Soares de Resende, um prelado conservador (um dos seus livros levou como título "Ordem Anticomunista"), exasperado com a apropriação continuada do trabalho  africano. E as culturas comerciais forçadas, que eram imposições muito gravosas sobre os pequenos agricultores (quase toda a gente), praticadas em muitas áreas. Entenda-se, tudo isto se associava a castigos corporais recorrentes. Que as crianças e adolescentes urbanos não viam ou, pelo menos, não percebiam - e por isso, por não saírem do seu anacrónico saudosismo, continuam a remoer espúrias negações.
 
Após 1961, as reformas legislativas alteraram os regulamentos mais impositivos e discriminatórios. Pouco depois Salazar já falava de um futuro (imaginado como algo longínquo) de "comunidade de países lusófonos", conjugação de interesses e sentimentos sedimentada pela unidade da língua portuguesa - mas ainda não lhe ocorrera a necessidade de um novo acordo ortográfico. Mas ainda que em alguns núcleos, particularmente urbanos, a situação se tivesse matizado, permitindo alguma mudança no acesso de nichos da população negra a serviços, até empregos, as formas de opressão e sobreexploração não desapareceram, pura e simplesmente. As práticas continuaram, avulsas porventura mas não apenas episódicas. Pois as categorias mentais, as concepções ordenadoras dos interrelacionamentos, mesmo sendo vividas de formas distintas tanto por colonos como por colonizados, não desaparecem num ápice (como clamam os "críticos" actuais, no histrionismo de apontarem perenidade imorredoira entre os portugueses das formas extremas do ideário colonial), nem as condições económicas casam com imediatas alterações radicais, principalmente se sob uma administração autoritária e socialmente enviesada.
 
3. E em tudo isto a repressão. Em Portugal vivemos não só o cinquentenário dos "gloriosos capitães de Abril" como continuamos a louvar a "resistência antifascista". Ora o 28 de Maio e o subsequente Estado Novo advieram da devastada e perversa I República - e 2010 podia ter-nos ensinado isso, mas não vejo ninguém na imprensa (no "Público" ou quejandos) a insistentemente exigir o ensino dos detalhes da trapalhada republicana aos petizes do secundário... E a ditadura salazarista sobreviveu décadas com a anuência de forças armadas, policiais e da... população.  Houve repressão, claro. A qual depois da II Guerra Mundial se atenuou (os tais "ventos da História"). Continua-se a ouvir falar das desgraçadas mortes de José Dias Coelho ou Catarina Eufémia (Delgado é um caso muito diverso) mas o certo é que mortandade foi escassa. Não estou a dizer que foi uma ditamole. Mas sim que tal como o tratamento dado aos presos políticos "doutores" ou "filhos de doutores" era diferente do dado aos do "povo", também a repressão em África era muito mais carregada. 
 
É 1994, meu primeiro trabalho em Moçambique, estou em casa de Namwenda, um velho régulo, chefe mwekoni, está também Kolokoha, seu congénere - ambos postos da antiga chefatura macua-meto Inkigiri, dessas que in illo tempore haviam estado metidas até aos pescoços no comércio escravista. E mais uma dúzia de homens velhos, conselheiros, cabecilhas de parentelas. Eu estou a perguntar sobre as transições agrícolas do tempo colonial até àquele presente - mas deixo a conversa, animada, divagar. Até porque o que me interessa nem são as tais mudanças, estas são só pretexto. Contam-me que "antes de ter entrado a Frelimo", durante a "guerra dos macondes", os portugueses prenderam vários chefes macuas - entre os quais Namwenda - e levaram-nos para a prisão do Ibo. De sevícias em sevícias alguns haviam morrido, outros depois foram levados para a Machava (então Lourenço Marques) e desaparecido. Eram camponeses, macuas, nada tinham a ver com a guerra de independência - todos os que tenham visto filmes de guerra, tipo "Vietname", reconhecem a situação: passam os guerrilheiros a população encolhe-se, vêm os dos exércitos regulares e acusam-nos de cumplicidade e reprimem. Mas só ali, naquele episódio, já se fizera uma mole de "José Dias Coelho".
 
A conversa segue, longa tarde. Eu sei que o gravador cerceia a liberdade alheia e por isso escrevo, frenético, o que me vão dizendo. Voltamos à agricultura, ali chegou um projecto de incentivos à cultura comercial de milho e também de tabaco. Pergunto como eram os incentivos no tempo colonial. Sobre esse "fomento" logo falam da palmatoada, e descrevem. Eu sou jovem, inexperiente, e deixo escapar um esgar, impressionado. Namwenda fala, sorrindo, e todos se riem, pergunto a Tomás Brito, meu intérprete, qual a piada. Ele responde, traduzindo: "não foi você!". E todos se riem, percebendo o que está a ser traduzido mesmo que não entendam português. Eu sorrio e penso "foda-se!", "que lição!".
 
4. Ultimamente o tópico do "passado colonial" (de facto os do passados pré-colonial e colonial) tem sido sugado por um feixe de jornalistas e académicos oriundos de partidos de origens comunistas. As abordagens são panfletárias, enviesadas. As aleivosias historiográficas são constantes, as tiradas demagógicas comuns. Ora não me parece que seja necessário doirar a pílula do passado - o qual, aliás ,está patente em vários textos consistentes, e disseminados, e é interesseiro que esta gente surja repetidamente anunciando um estado de inocência da sociedade portuguesa sobre o seu passado.
 
Muito mais do que discutir as mariolices que se vão escrevendo conviria perscrutar a agenda política que tem essa minoria altissonante. De uma forma mansa poderei convocar a ideia de patriotismo de Orwell, que o disse um "conforto identitário". E o que esta extrema-esquerda identitarista deseja é romper o nosso "conforto identitário" português. Mas qual a sua agenda mais profunda, para além das pequenas benesses estatutárias (o apreço dos pares, por exemplo) e de pequenos financiamentos (os projectos, as performances, os colóquios)?
 
Cada um interprete como queira as ambições desta gente, neste seu afã de demonizar um passado que encerra numa visão que quer ser bicromática, a do mal e do bem, insensível à miríade de situações que - mesmo neste enquadramento colonialista - foram vividas. E que quer apagar os múltiplos reflexos e refracções que as variadíssimas dimensões do colonialismo tiveram e têm, em Portugal. E, mas isso então é que nada lhes interessa, nos países africanos antigas colónias.
 
O que me é relevante é não ser preciso higienizar o colonialismo, ou mesmo vasculhar em busca de um ou outro aspecto menos opressor para o poder contrapor, para perceber que estes tipos d'agora não querem entender melhor a História. Querem aldrabar - como o socratista Vale de Almeida quando clama ser Portugal um apartheid. Ou querem exercer a sua patética candura - como o (ex?)comunista Francisco Bethencourt quando vem perorar que é preciso pagar "reparações" para que as sociedades tenham um melhor  relacionamento futuro.
 
Há tempos conversava com um antigo - e excepcional - meu professor, PC "dos tempos", homem de esquerda profunda, o qual deve ter andado por esses movimentos pós-Perestroika, nem perguntei, e também ele incomodado com estas constantes patacoadas: "estes tipos sentem um défice de não terem feito a luta antifascista, anticolonialista, não tinham idade para isso, então afocinham agora nisto...", rematou. Ri-me, claro, concordando em parte, pois alguma coisa virá desse pobre entendimento autobiográfico.
 
Mas não basta como explicação global. Pois isto se faz pagar. Até a Gulbenkian, como vimos há pouco tempo, paga esta tralha.
 
(A ver se um destes dias volto ao assunto, à tal agenda política desta gente)

 

13
Ago24

Chamuças et al

jpt

chamuças.jpg

Há dois anos o José Paulo Pinto Lobo - um tipo gentilíssimo, moçambicano de ascendência goesa que há décadas vive em Portugal, e com o qual me vinha a cruzar desde aquela já longínqua era dos blogs - mandou-me uma mensagem urgentíssima: "Zé, sei que gostas de chamuças, esta semana há umas festas populares na Encarnação, estará lá um amigo conterrâneo que é expert na matéria, vai provar, que ele tem lá uma barraca!" (um stand, como se diz no português burguesote de agora).
 
Arregimentei um comité amigo e avançámos. Em boa hora o fizemos. Chamuças de mestre, inigualáveis. Achares (chutneys, diz-se também) de grande quilate (e uma bebinca de trás da orelha, lembro). E um tipo porreiro ao leme - aliás, estava ali em navegação solitária - o Edgar Bragança.
 
Os anos passam e eu à míngua... Mas há dias avancei na gula. Ele tem a World Masala - Comida com C.alma, que vende comida para fora. Eu tinha uma almoçarada perto do Sado, uma "velha guarda" rabugenta iria enfrentar umas caras de bacalhau (a gente junta-se sempre para umas comidas esponjosas). Julguei ser boa ideia aparecer com uns agrados mais orientais. E perguntei ao Edgar o que me aconselhava a levar...,
 
"Nem pensar nisso", impôs ele, com entoação de tutor. "Anda cá buscar" e decidiu o quê, sem que eu opinasse. Apareci e avançou "isto não é a tua comida, não tem o punch que tu mais queres", "é algo mais calmo". E entregou-me duas generosas doses de Korma de Frango (um caril suave com amêndoas e caju). "Mas isto não é para comeres com os teus amigos", mandou. "É para jantares com uma amiga!" - dado ser um sabor mais adamado, mimoso melhor dizendo -, concluiu, notoriamente preocupado com a minha solteirice. Obedeci. Para depois constatar ser uma delícia, e a amiga também assim pensou, e melhor comeu - ainda que um pouco atrapalhada com a picância, mesmo se esta ligeira, e também algo horrorizada com o conviva que lhe cabia ali, a picar a malagueta vermelha fresca, que o Edgar tinha juntado à embalagem, qual bacela, e com ela aspergir a parcela que me coubera. "Consegues?", dizia ela, até afogueada só de ver....
 
No dia seguinte cruzei o Tejo, integrei a meia dúzia comensal. E antes da bacalhauzada fritámos a meia dúzia de chamuças que também tinham vindo mas que escondera do jantar - pois mimar as senhoras é bom mas também não em demasia. E há que cuidar dos amigos.
 
As chamuças, essas, estavam gloriosas! Recomendo. O homem é mesmo um Sacerdote do chamucismo.

Pág. 1/2

Bloguista

Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Contador

Em destaque no SAPO Blogs
pub