2. Explico-me sobre Venâncio Mondlane: há uma década fora de Moçambique não acompanhei a sua ascensão política, desconheço-lhe os discursos e ideário. Apenas o vi com detalhe uma vez: Victor Hugo Mendes convidou-me para o seu programa "Tem a Palavra" (RTP-África), para debater os transportes em Maputo onde decorreria uma "greve" (de facto uma paralisação patronal, uma espécie de "lay-off"). Naquela manhã a situação fora já resolvida, por acordo entre governo e associação patronal, eu saudei o facto - e foi evidente que pareci ali uma espécie de porta-voz governamental.... Havia mais três comentadores, em Maputo, Mondlane era um deles. Nada gostei - sublinho, nada -, pareceu-me histriónico e descabido.
3. Explico-me sobre a elevação do clero na política: sou ateu, não anticlerical. Mas radical ("fundamentalista") adepto da laicidade. Traduzo-me para os meus interlocutores moçambicanos: defendo que o presidente português Rebelo de Sousa deveria ter sido imediamente destituído após ter feito uma visita oficial - ou seja, como presidente - na qual beijou o anel do Papa, acto que significa submissão à hierarquia católica. É consabido que Rebelo de Sousa é um "dandy" político, o cume da superficialidade, o que ele faz pouco significado tem. Mas a república não deveria aceitar atrevimentos destes. Assim sendo, não vejo problemas se um cidadão sacerdote se inserir nas instituições políticas subordinando-se ao princípio da laicidade estatal. Mas apenas nesse caso.
4. Explico-me sobre ideologia: o "messianismo" político não usa apenas tópicos religiosos. Os que se declaram ou são declarados "ungidos" por um Destino, os "Salvadores da Pátria", não se restringem aos iluminados por qualquer divindade. Os portugueses sabem-no bem, com a nossa tradição de "sebastianismo" (uma espécie peculiar de messianismo). Os moçambicanos também o têm, construído na I República e potenciado na desgraça de Mbuzini. A consagração de Putin pela igreja ortodoxa russa (coisa que os actuais russófilos moçambicanos e os comunistas portugueses fazem por esquecer) é um exemplo muito actual desse "messianismo". A incorporação em Trump de uma "American Renaissance" pelos sectores cristãos fundamentalistas dos EUA é outra expressão messiânica.
5. Dito isto salto para o assunto. Há dias escrevi contra críticas acintosas a Mia Couto. Pois as críticas devem incidir sobre os argumentos apresentados, não sobre putativos interesses, alegadas malevolências, estatutos sociais ou mesmo qualidades pessoais (houve quem até misturasse contestações políticas a invectivas de cariz literário). Diz ele que "há uma elite muito predadora, desatenta ao outro e ao sofrimento dos outros. Essa raiva contida estava à espera que a tampa saltasse. Há um acumular de tensões que, quando se expressa, fá-lo sempre de maneira explosiva. E se há alguém que a manipula...". E avança "Isto poderia ser resolvido se não existisse a manipulação de alguém que quer tirar proveito em nome próprio e tem uma presssa enorme em chegar ao poder." E aponta a existência "desta tendência de milagreiro, de alguém que aparece sozinho e que quanto menos ligação tiver com o partido, melhor" (e invoca o exemplo de Bolsonaro), referindo-se implicitamente a Mondlane. Sublinho que cito excertos da entrevista mas não trunco o sentido das declarações.
6. Esta análise deixa-me estupefacto. Digo porquê:
a) Seguindo o que já Álvaro Carmo Vaz - ilustre e probo intelectual moçambicano - escrevera ("O Crime do Outro Zédu", de finais de Outubro, que recebi via whatsapp, desconheço se foi publicado), Couto refere a "pressa" de Mondlane em chegar ao poder. Ora este, como Luca Bussotti bem lembrou, teve uma candidatura autárquica em 2013, a qual é provável que tenha sido efectivamente vitoriosa. Voltou a candidatar-se nas autarquias em 2023, e é muito mais do que apenas provável que tenho sido vitorioso. Agora, 11 anos depois da sua primeira candidatura eleitoral, estas eleições têm, pelo menos, uns resultados muito "manhosos". Ele contesta-os. E os intelectuais - que devem ter sensibilidade historiográfica, uma atenção ao passar do tempo - dizem que o homem "tem pressa"? Isto tem cabimento?
b) A afirmação do "unipessoalismo" eleitoral (forma sintética de afirmar o tal "messianismo" e "populismo") de Mondlane, a sua excentricidade aos partidos é também surpreendente. Ele já militou em partidos. Tentou candidatar-se no interior do Renamo e foi afastado - disseram ilegítima a sua tentativa. O Renamo está, é consabido, cooptado pelo Estado, pertence agora - ainda mais desde a morte de Dhlakama - ao "bloco histórico" do poder, o que se comprova na forma plácida como aceitou receber 4 ou 5 municípios após a escandaleira eleitoral de 2023. Então Mondlane tentou criar um partido. Foi-lhe recusada essa hipótese, por razões administrativas. Candidatou-se assim através de uma pequena plataforma, algo fluida e até heterogénea. Neste processo encontra-se um trajecto avesso a partidos? O tal populismo unipessoal? Afirmar isto tem algum cabimento?
c) A contestação política ao poder instalado há cinco décadas é resumida a "raiva", uma fúria até irracional. Esta análise é não só deficitária por defeito de psicologismo como comporta uma visão sociológica do real: as massas actuam "irracionalmente", por derivas psicologistas; as elites actuarão racionalmente, por reflexão. É a velha matriz dos intelectuais orgânicos. E, atenção, do clero politizado. Pois os "intelectuais orgânicos" e os "cleros" sempre se dizem os disseminadores da boa palavra dos... "messias".
d) Mia Couto diz que tudo poderia ser resolvido se não existisse a manipulação de alguém (o opositor ao regime, claro). Aceite-se a formulação de quem tão bem conhece o país. Mas pergunte-se-lhe então "como"? "Como" é que poderia resolvido? No quadro actual do regime? Com a tal "elite muito predadora" que ele refere? Que não tem outra oposição política organizada, para além dos conflitos internos do partido do poder, de interesses interesseiros feitos? Seria interessante saber esse "como"!
e) etc.
7. Também ontem vi este filme. E face a estas análises e outras posições similares ocorreu-me isto. E também por isso coloquei agora os pontos anteriores, uma "introdução" ao meu desabafo: "Apaga lá um, chefe!", "Apaga lá um aí, chefe!" grita-se, incentiva-se... Homens uniformizados e à civil, disparam sobre a população... (E - aparentemente - até se filmam a si mesmos, no desplante da vanglória).
Será de lembrar uma coisa a algumas pessoas mais antigas. Por mais que não gostem do "messianismo" do "evangelista" conviria perceberem que esta acção militar não é contra matsangaíssas mobilizados pelo "tabaqueiro Smith", coordenados pelo apartheid, comandados por "mercenários ocidentais", ou machababos armados por uma qualquer "Total francesa" ou "americana", remunerados por empresas "neoliberais".
Pois estes disparos procuram atingir mera população, gente quando muito armada de tachos e panelas, e algumas pedras que nem pedregulhos são. E do seu desespero diante da contínua cupidez malevolente dos mandantes.
Convirá que esses intelectuais percebam isto, vejam isto. Falem disto, se decidirem falar. O direito ao silêncio é irredutível. Mas os que querem falar e a isto são cegos, se abstraem isto da sua reflexão, então condenam-se ao mutismo significante. Ao opróbrio da irrelevância.
Serão apenas os catedráticos da complacência.