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Nenhures

Nenhures

29
Nov24

Renovação de passaporte

jpt

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Subo as escadas do metropolitano, aproximo-me da cancela, ninguém em meu redor - a esta hora todos já partiram deste poiso da "linha vermelha", voltarão já quase noite feita. Sinto alguém estugando-se para trás de mim, eu já de bilhete na mão olho-o de viés, um jovem (hoje em dia quem é que não me parece jovem?), homem feito, sem pingo de miúdo irreverente - mesmo que sem causa -, barbicha aparada, vestes informais mas nele nada há de vagabundo. Estanco, olho-o num aceno de "o que foi?", percebendo-lhe a causa do apreço pela minha senda. Ele dá-me largo sorriso, até solidário, e informa-me - num português veicular de sotaque inconfundível - que passará logo atrás de mim. Semicerro-me, irritado, "não!, paga o bilhete!". O sorriso atrapalha-se-lhe, insiste, querendo explicar-me o óbvio, eu repito "paga o bilhete!", ele oscila, ágil (é novo, o sacaninha), muda de eixo e salta a outra cancela. Eu penso "vai para a tua terra, cabrão!" mas censuro-me e só lhe atiro o "cabrão" enquanto ele corre, assustado, corredor afora.
 
Avanço, comigo protestando "um dia ainda levas um par de estalos!". Mas no último lanço de escadas ainda murmuro impropérios contra o mariola estrangeiro: "Brranco!!", desprezo-o em ímpeto xarroco!! "Francês!!" ("ou, vá lá, da Valónia", aponho-me em rodapé).
 
À boca da estação entro no primeiro café. Peço uma Coca-Cola. E ofereço-a ao Professor Ventura que em mim vive. Depois sigo à loja do cidadão, recolher o renovado passaporte deste meu país.
 
Fundado por... francos.

28
Nov24

Eurodeputados portugueses sobre Moçambique

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(Maputo, Av. Eduardo Mondlane, Fotografia de Luísa Nhamtumbo/LUSA)
 
 
De Maputo um amigo moçambicano avisa-me que anteontem houve uma sessão no Parlamento Europeu, e deixa-me ligação para esta resenha das intervenções dos eurodeputados portugueses. Chama-me também a atenção para a posição do PCP, enfatizando a justeza das eleições de Outubro e atacando a oposição, bem como a "ingerência externa". (o comunicado daquele partido).
 
E nisso, de imediato, lembro-me do Camarada Pimentel, meu pai. Comunista "ortodoxo", sempre implacável com os "desvios de direita", tipo aqueles "eurocomunismos". Militante até à morte - já contei a história mas repito-a: muito doente, tão mirrado, no hospital, eu no fundo da cama, a minha sobrinha - sua neta querida - junto a ele, e antes de sairmos, hora de visita terminada, disse-lhe "avô, hoje estás com muito melhor aspecto, muito rosadinho". E ele, com um fio de voz, murmurou "rosa por fora, mas vermelho por dentro..." Morreu nessa noite, a última coisa que lhe ouvimos foi essa ironia, até cáustica...
 
Cresci a conversar com o Camarada Pimentel. E continuo nisso, num diálogo que me é intelectualmente profíquo. E moralmente penoso, pois ele, preocupando-se, não me desculpa o desarrumo seguido. E agora mesmo, quando - após ter visto vários filmes de hoje, com a polícia atropelar manifestantes com carros de assalto na Eduardo Mondlane, com soldados ruandeses nesta avenida, de cadáveres assassinados pela polícia no meio da rua em Nampula, etc. - lhe disse a posição do "Partido" sobre a situação de Moçambique, ele - como tantas vezes nas últimas décadas - semicerrou os olhos, meneou a cabeça. E lamentou "a falta de quadros no partido".
 
Eu, como já passa do meio-dia, servi-lhe um cálice de rum, carregado de carinho. E a mim também.

28
Nov24

Uma questão sobre Moçambique

jpt

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"Homem forte de corange eestá preceguido com os inimigos" (Mitande, Mandimba, Niassa, 2002).
 
Esta frase, tão denotativa de uma mundividência, é por demais rica, polissémica, para ser manipulada para uma só situação. Mas ainda assim uso-a para a dedicar aos compatriotas do seu autor que clamam "este país é nosso!" e não de uma "mamã" ou de uns "papás". No fundo, apenas gente republicana, irada face a uma nobreza anquilosada.
 
Quanto a nós, cá de longe, não nos devemos imiscuir? Talvez sim, talvez não. Mas quando vemos, como hoje se viu com abundância, as forças militares e paramilitares a terem acções violentíssimas contra população desarmada, há algo que podemos - e devemos - perguntar.
 
Devemos perguntar isso ao presidente do Instituto Camões (o antigo Instituto da Cooperação), ao secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, aos ministros dos Negócios Estrangeiros, da Administração Interna e da Defesa (as tutela envolvidas), ao primeiro-ministro e até ao presidente da República.
 
Há um "Programa Estratégico de Cooperação Portugal-Moçambique 2022-2026" (google-se...). Nele, na sequência do que acontece há já décadas, consta um forte vector de "cooperação" incidindo na formação do oficialato policial e militar moçambicano.
 
Assim sendo, não têm estes nossos eleitos, nossos servidores, algo para nos dizer? Algum rescaldo do que vem sendo feito, algo sobre os frutos deste trabalho do Estado português?
 
Ou não temos nada a ver com isso, é assunto reservado aos dos gabinetes?

26
Nov24

Sobre a "Desconstruir o Colonialismo"... (2)

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Escrevi, com tamanho repúdio que até repulsa, sobre a exposição "Desconstruir o Colonialismo. Descontruir o Imaginário". É uma espécie de "pôr a cabeça no cepo" pois são cerca de 50 autores envolvidos, e todos tenderão a defender o seu objecto. Gente graduada e qualificada, desde a sua Comissão Executiva, encabeçada pela prestigiada historiadora Isabel Castro Henriques, a uma vasta Comissão Científica - da qual, como exemplo, saliento a investigadora da faculdade de Medicina Isabel do Carmo, que assim descubro especialista da história colonial portuguesa, presumo que nas suas áreas de referência Endocrinologia, Diabetes e Nutrição - ainda que estes assuntos não sejam abordados na exposição, nem nem tão pouco as questões da velha "Medicina Tropical". Juntos a um farto enquadramento institucional, o ISEG, o Ministério da Cultura através do Museu Nacional de Etnologia e a Comissão Comemorativa dos 50 Anos do 25 de Abril. Para além de um poderoso rol de patrocinadores: Gulbenkian, FCT, FLAD, Comissão Nacional da UNESCO, UCCLA, ISEG, Universidade de Lisboa...
 
"Zezé, queres pedir um financiamento para algum projecto?", logo disparou um amigo ao ler-me, provocando um unânime coro de sonoras gargalhadas entre os que nos rodeavam!
 
Tendo transcrito o postal no meu mural de Facebook aí recebi pedidos de melhores esclarecimentos, provenientes de duas investigadoras estrangeiras - uma norueguesa, outra brasileira - que fizeram longas pesquisas em Moçambique. Presumindo que elas não visitarão a exposição - apesar de estar programada a sua permanência no Museu de Etnologia durante um ano e de estar anunciada a sua itinerância -, respondi-lhes esmiuçando as causas do meu profundo desagrado com esta iniciativa estatal. Nisso alonguei-me nos argumentos e apresentei detalhes ilustrativos. Coloco-os aqui, retocados: 
 
1.  "Desconstruir (o jargão obrigatório) o Colonialismo"? "Descolonizar o Imaginário"? É normal, salutar, que durante as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e das independências das antigas colónias, se regresse a essa temática. Se celebre o fim do anacrónico império, se dissequem as suas características. Deixo ligação a um postal meu, "Passado Colonial", escrito há meses irritado com um conjunto de dislates que uma antropóloga vinda dos EUA disseminou na Gulbenkian entre os professores do ensino secundário. Ou seja, não trato de fazer a apologia do colonialismo, nem a sua higienização. Mas refuto o aldrabismo como ideologia do agit-prop académico.
 

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 (Painel com o rol de patrocinadores da exposição)
 
2. Como logo referi o problema não é o catálogo. Este contém 30 textos, decerto que desiguais, que apenas acompanham. Autores haverá que se defenderão dizendo que os conteúdos dos seus breves textos (cerca de 5 páginas cada) serão mais equilibrados do que os resumos expostos, e que também sofrerão a exiguidade de espaço textual disponível para resumirem as suas longas e complexas reflexões sobre matérias dos quais são especialistas. Poderão até - admito como hipótese - afirmar que as resenhas afixadas algo deturpam os seus textos. Serão "explicações" impertinentes. Pois o que conta é o conteúdo da exposição, o que é divulgado e "patente ao público" (e estará durante um ano). E que eles subscrevem, na sua totalidade.
 
Mas mais ainda, e também o referi, o problema fundamental não é a pobre execução do objecto-exposição físico. Ainda que seja pertinente questionar as razões daquilo. O Museu tem orçamento para actividades. E o rol de patrocinadores é enorme. O que aconteceu para os painéis (ou estandartes, se se quiser) serem tão descuidados? Não falo do catálogo, pois esse apenas acompanha (não tem grande impressão mas escapa). O que aconteceu na produção? Quais os critérios para a sua adjudicação?
 

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Pois a impressão dos painéis é descuidada, deixando-os de imagens pouco perceptíveis ou mesmo imperceptíveis. E a revisão, por superficial que fosse, aparenta ter inexistido. Por exemplo, esta fotografia de um grupo de mulheres em São Tomé no início de XX aparece em três diferentes painéis com erros crassos de atribuição (neste como "grupo de funcionários superiores da companhia de Moçambique, na Beira", noutro como "residência do administrador de Ribaué"). E, em termos textuais, é notável que o ror de académicos prestigiados subscreva uma exposição desta temática que informa, e o repete, que a independência da Guiné-Bissau foi unilateralmente proclamada em ... 1974. 
 
3. A esta pobreza "física" já associei a pobreza conceptual da exposição, apenas aqui recordo o anacronismo de consociar uma vasta dissertação textual sobre o colonialismo português a um conjunto de peças, como se de bric-a-brac, uma deriva oitocentista para ser simpático. Pensando que assim aos "africanos", "colonizados", se faz "falar" através dos seus artefactos. Como se o "imaginário" lisboeta, e dos seus arredores, se desconstrua com aquele "artesanato",  como se os colonizados sejam a máscara mapiko, a peça de Reinata - para quem não conheça deixo um texto meu sobre ela. E aquelas restantes peças avulsas..., num efectivo potlatch de primitivismo serôdio.
 
 

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4. O relevante nem sequer é o tema do enquadramento e funções requeridas ao Museu Nacional de Etnologia. Mas sim como esta exposição demonstra ser o contexto político nacional determinante intelectualmente na actividade de núcleos da academia portuguesa, em especial nestas áreas da história colonial. Convocando os profissionais para produzirem - ou se associarem, placidamente - discursos tão politicamente empenhados que panfletários, tudo a coberto do "simbólico" científico e institucional. Isto exemplifica-se com um dos últimos painéis que sumariza o fundo ideológico e o objectivo político desta tarefa. Enceta por um indiscutido "Na sociedade portuguesa, que se caracteriza por um racismo sistémico..." e segue num pedagogismo empenhado "Torna-se necessário proceder à alteração da forma de pensar o passado colonial para que, através da descolonização das mentes, se possa combater o racismo de forma mais eficaz.". Será que as pessoas não percebem o atrevimento - a "lata", em calão - na produção estatal de textos destes?
 

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É evidente que estes panfletos académicos, sob blindagem "académica", têm repercussão em alguma imprensa "gauchiste" de implantação nacional, e também para isso são produzidos. Em última análise, servem para os minoritários partidos de extracção comunista conduzirem a forma actual ("decolonial", peroram) de "luta de classes", a "luta de "etnias" e "raças", como agora se estipula. É a actividade dos "intelectuais orgânicos" e dos "publicistas" para transformarem a "etnia"/"raça"-em si em "etnia"/"raça"-para si. De facto, é isto este projecto de "Descolonização do Imaginário"... Com a história colonial portuguesa tendo como corolário a manifestação a propósito da morte de um cidadão norte-americano, convocada por grupos de extrema-esquerda, então mais ou menos na órbita do partido LIVRE.
 
5. Mais do que tudo, "Descolonizar o Imaginário" pode e deve começar por perceber que é uma falsidade o que estes intelectuais apregoam, que a sociedade portuguesa vive como um reflexo deste império, que estes cinquenta anos de democracia (grosso modo o equivalente ao tempo de efectivo colonialismo em África) mantiveram intactas as representações sociais, as mundividências portuguesas (ou, mais ainda, as existentes em Portugal). Ou seja, que o "imaginário" actual é similar, reflexo simples, do pretérito. Refracta o passado, claro. Mas não da forma mecanicista que esta exposição - e tanta propaganda política - o diz. (Por outras palavras, se há décadas vigorava o "marxismo" vulgar, mecanicista, agora vigora o "identitarismo" mecanicista, simplório).
 
E ainda mais, se é para "Descolonizar o Imaginário" então também será o âmbito de o fazer em relação aos imaginários africanos, sair do facilitismo dos registos que vigoram sobre a época, convocando as múltiplas leituras do colonialismo que então existiam. Implica isso menosprezar as palavras de Amílcar Cabral (evocado na exposição) ou de Mário Pinto de Andrade (que é ouvido na exposição)? Não. Mas qual a razão de não se ouvir/ler, por exemplo, Domingos Arouca? Ou ouvir, analisar, as múltiplas considerações de então e posteriores sobre o regime colonial? Estou a fazer a apologia do colonialismo? Ou estou a dizer que se trata de uma exposição no Museu Nacional de Etnologia, um trabalho congregando dezenas de académicos, no 50º aniversário do fim do regime colonial? Isso sim, seria dissecar as representações que temos sobre as múltiplas realidades coloniais, fazendo-as dialogar com discursos variados (e não com o panegírico de algumas, orlado com "arte" bonita).
 
6. Para além de outras dimensões criticáveis a exposição tem, na sua parte textual, dois grandes problemas. Que passarão despercebidos - e isso é o pior - ao "grande público", àqueles que desconhecem as temáticas. Mas reconhecer esses problemas reclama a vontade do espectador. Ou seja, são subjectivos. Um é a incompetência intelectual - que para ser reconhecida exige uma "dessacralização" textual, um afastamento de um texto afixado numa instituição museológica que vem com autoria de dezenas de "Senhores Professores". Quantos de nós, vulgares de Lineu, interrogaremos aquilo? 
 
Começo por aquilo que digo incompetência. Vários painéis atacam o "luso-tropicalismo", fazendo-o de modo básico e esquecendo as constituintes históricas da composição desse ideário, bem como sobrevalorizando-o, até contraditoriamente. Numa dessas investidas escreve-se "Em Lourenço Marques ... os jovens sentiam-se parte dessa "terra nova", apesar de serem brancos, negros, indianos ou mestiços - ou tudo ao mesmo tempo, como a mais brilhante poetisa do tempo, Noémia de Sousa. Como resposta, em Lisboa, a assustada elite colonial inventou o "luso-tropicalismo"...".
 
Sobre isto eu vou ser um pouco egocêntrico, até porque sei que os autores desta parcela cresceram em Moçambique e poderiam escudar a resenha que lhes foi feita do texto nessa empiria própria. Ora deste grupo de jovens, entre os que mais se vieram a celebrizar, eu conheci - superficialmente - Virgílio de Lemos, e tive o privilégio de induzir a publicação de dois dos seus livros. Conheci bem mais, com verdadeira amizade de visitas mútuas, o José Craveirinha - e também induzi a publicação de um dos seus livros. E ainda mais o Ricardo Rangel. Ora presumo (pois conheci-o menos) que o Virgílio e tenho a absoluta certeza que do Zé Craveirinha e o Ricardo - eles tão dados à impiedosa ironia - se ririam, mesmo, se fossemos ver esta exposição e lessem esta formulação.
 
Outro detalhe, que é hiper-significante mesmo que as pessoas nem atentem (o que demonstra o estado de sonambulismo ainda que activista). O repetitivo e frágil ataque ao "luso-tropicalismo" culmina na crítica da "lusofonia". O painel é pobre, o texto é naturalmente curto e, em meu entender, esquece outras componentes da sua formação. Mas tem o mérito de recordar, e bem, Alfredo Margarido que num opúsculo disse de modo suficiente o que era necessário dizer sobre a tralha. Eu nada sou paladino da "lusofonia", um ideário incompetente e frágil. Ainda por cima sofri-o, quando era a ideologia do lumpen do funcionalismo público socialista. Um dia até escrevi um enorme ditirambo contra aquilo.
 
Mas há dois pontos esquecidos nesta exposição:
 
1) a lusofonia já não é, trinta anos depois do seu vozear, uma ideologia dominante nos aparelhos de Estado. Pois é um discurso político tão incompetente que foi sendo engavetado, e isso não transparece na exposição, desesperadamente à procura da perenidade das representações - ou seja, agarrando-se à ideia, "denunciando-a", de que se antes dominava o "luso-tropicalismo" hoje domina a "lusofonia";
 
e pior ainda, 2) esse ideário da "lusofonia" teve em Portugal uma consagração estatal: o Acordo Ortográfico de 1990, o qual tendo sido ratificado por um governo do PSD teve origem num agrupamento luso-brasileiro de intelectuais maçónico-socialistas da velha guarda ("republicanos", passe o grande anacronismo). O AO90 é a grafia da "lusofonia" desejada por esses sectores da velha "nostalgia colonial", no fundo actualizando o projecto salazarista dos 1960s de uma futura "comunidade de Estados de língua portuguesa", unidos pela língua e... sentimentos.
 
Eu não escrevo com o AO90 não por preguiça em actualizar-me. Mas porque sempre o repudiei dado ser símbolo e patético instrumento desse projecto político estuporado que é a "lusofonia". Justiça seja feita, o autor que aborda esta temática da "lusofonia" é Diogo Ramada Curto. Um intelectual robusto - e muito temido, pois é muito truculento na imprensa, distribui bordoadas a eito. E o qual, ainda que sendo o actual director da Biblioteca Nacional, não escreve sob essa tal grafia lusófona. Mas muitos dos outros autores lá vão grafo-lusofonamente ordeiros.
 
Dir-me-ão que isto é um pormenor. Não é! Neste contexto de intelectuais especialistas, embrenhadíssimos no "denuncionismo" "activista" isto é um pormaior, denotativo da ligeireza agit-prop.
 

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7. O outro problema, que é o fundamental, é o viés. Alguns nunca o reconhecerão, aceitarão as palavras doutas. E outros apreciarão, considerarão uma boa acção, um bom "activismo", para a "causa". 
 
A este viés panfletário, recordo, é preciso querer reconhecer. E sublinho que está no "pacote" inteiro, gritado. Escolho alguns exemplos, apenas avulsas ilustrações.
 
7.1. Escolhi como primeiro a fotografia que encima o postal, tão explícita que nem é necessário comentá-la: o então famoso - e típico - Movimento Nacional Feminino é representado daquela forma, a querer-se chocarreira. "Palavras para quê?"...
 
7.2. Outro exemplo é uma ausência. Eu acompanhei a génese de um trabalho (livro e exposição) feito por Isabel Castro Henriques (coordenadora desta exposição), "Espaços e Cidades em Moçambique". Uma exposição cuja apresentação em Moçambique foi muito problemática - um dia terei de escrever essa memória. E que conduziu a uma digressão em Moçambique da sua autora - então acompanhada do seu marido, o grande intelectual Alfredo Margarido -, a qual tive o privilégio de acompanhar.
 
Ora nesse trabalho foi abordado a temática do desenvolvimento urbano - induzido pela presença portuguesa em períodos pré-colonial e colonial, e sobre a qual julgo que fez pelo menos outro livro-exposição relativo a Cabo Verde. Essa temática é completamente apagada desta exposição, por razões que são obviamente ideológicas. Entenda-se, há espaço para mostrar uma gravura da pré-colonial Tombuctu. Mas não para o rol de pequenas unidades urbanas até finais de XIX ou abordar o seu crescimento futuro. Porquê? É evidente por não ser uma temática imediatamente apreensível pelo público como "denunciável" (até poderia ser analisável desse ponto de vista, mas arrisca sempre que alguém passe por lá e deixe um "pelo menos construímos cidades", a prejudicar o efeito da cartilha).
 

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7.3. Há um painel dedicado aos "Saberes Coloniais". É aborrecido resmungar com isto, pois tenho o maior apreço pela autora do texto, e lamentarei se ficar magoada, Mas sigo. O painel apresenta desenhos sobre as "viagens filosóficas" no Amazonas de finais de XVIII. E depois restringe-se a imagens e texto sobre antropologia, enfatizando a antropologia física - predominante em Portugal até a II GM, nas suas crenças da relevância de medições populacionais, e que tinha ênfase racialista e, muitas vezes, racista - e também o trabalho de Jorge Dias, eivado de preocupações de antropologia política aplicada. Ou seja, o que resta é que os "saberes coloniais" portugueses eram racistas e controleiros.
 
É certo que a propaganda oitocentista de um grande saber acumulado em Portugal sobre África servia interesses políticos - "direitos históricos" na "partilha de África" - e era irreal. E durante XX o conhecimento sobre as colónias africanas sofreu os contrangimentos devidos às limitações do campo científico português. Mas ainda assim foi produzido um vasto saber em ciências naturais (zoologia, botânica, medicina, veterinária, etc.) e matérias técnicas. E também fazia parte do discurso colonial o enfatizar da grandeza desse saber. Mas ele existiu, foi abundante e competente. Muito tinha dinâmicas utilitaristas, muito era utilitário. Mas não era só isso - e nessa sua redução ao "utilitarismo" (colonialista) vem também outro mecanicismo, a da redução da curiosidade científica dos técnicos e investigadores portugueses aos interesses económicos e políticos. Ora nada disso é aludido. Dirão alguns "ah, mas isto é sobre o racismo!! E o colonialismo repressor!". E eu responderei que não, é - e assim está anunciado - sobre o "colonialismo". E, neste "capítulo", sobre os saberes que nele foram produzidos. Mas, claro, se se afixar em exposição alguns progressos na área da hidrologia, ou dos saberes agrários, ou seja lá o que for, isso não é imediatamente apreendido pelo visitante comum como uma malevolência portuguesa.
 
Mais, o cartaz sobre "Saberes Coloniais" começa com uma frase rutilante: "Desde o século XV houve recolha e expropriação de elementos de territórios distantes". E depois avança que só em finais de XVIII é que começa a haver verdadeira produção de saber científico (as tais "viagens filosóficas"). Fui ver o texto. A primeira fase, bombástica, não está lá assim. O chavão denunciador é o do cartaz. Eu posso perguntar-me de que serve, neste âmbito, afirmar as "expropriações" de XV. Mas mais me pergunto a que propósito é que surge no início do cartaz... É apenas (mais) um detalhe de viés.
 
7.4. No catálogo - e isto foi-me lido por uma amiga, e eu esqueci a página (não a marquei pois o livro foi-me emprestado), afirma-se que (cito de cor) os nossos países congéneres antigos colonizadores têm feita a crítica aos seus regimes coloniais (entenda-se, a "desconstrução", no jargão) e que Portugal é uma excepção. Isto é uma especulação falsária. Pois é muito duvidoso afiançar um qualquer défice nosso nessa questão face às sociedades da Bélgica ou da Holanda, para exemplos-mores de países "congéneres". Ou, para forçar a nota, que a sociedade brasileira se assume como país colonial e deixe, definitivamente, de invectivar os portugueses que partiram há dois séculos. Ou que a Espanha, congénere hermana, se tenha expurgado das suas malevolências ultramarinas... Sim, os wokes britânicos abateram uma ou outra estátua, tiraram o Hume do nome de uma praça e quejandas ilusionices. Mas, francamente, é um desplante uma afirmação daquelas.
 

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7.5. Para último exemplo de viés - e tantos outros tão explícitos há. Este está logo à entrada, num dos primeiros painéis, e é bom pois assim ninguém poderá dizer que "foi ao engano". A intenção de induzir uma associação de ideias, uma homologia, é evidente. Em cima está uma estação de viagem científica (eu não uso o termo "exploratória" para evitar a sua ambivalência semântica, que seria logo apropriada por quem leia de modo enviesado), a estação "Luciano Cordeiro" estabelecida por Henrique Dias de Carvalho, provavelmente em finais da década de 1880s ou no início de 1890s. Em baixo está uma gravura, ilustrando o transporte de escravos, agregados por um instrumento que desconheço o nome (golilha?) - "algemados" pelo pescoço.
 
É evidente que se está ali a proclamar a homologia entre as expedições científicas coloniais e o trânsito escravista, apagando duas dimensões: o progressivo abolicionismo internacional e português, e a integração da cientificidade nesse rumo. E afirmar isto não é esquecer a continuidade ilegal (e disfarçada) de tráfico escravista durante o último quartel de XIX e mesmo XX adentro, neste caso em particular para São Tomé e Príncipe.
 
Mas nesta construção painelística, como se com souplesse, está condensado o programa ideológico desta exposição: o regime colonial é a perenidade linear do escravismo, sem tirar nem pôr. E ali consagrado pelo afixar de Silva Porto, o pombeiro oitocentista que cruzou Angola - sem uma palavra sobre o facto de ter sido ele uma enorme excepção.
 
Tudo isto, condensado num mero painel, demonstra, com evidência para quem queira perceber, outro vector estruturante da exposição: a inexistência de uma abordagem às dinâmicas africanas. Sim, surgem os manipanços, as cadeiras de chefe, os "artefactos"... Sim há um ou outro painel aludindo às "resistências". Mas nada mais. Pois em havendo-as se poderia reduzir o impacto do panfleto "denunciatório", pensam - decerto - estes autores.
 
Exemplifico: num dos livros de José Capela (José Soares Martins) li há muitos anos um trecho impressionante. Uma página de diário de um austríaco (?), escrita em 1850. Estava em Quelimane e assistiu à chegada de uma pequena caravana de escravos, agregados deste modo (a tal golilha?). Acontecera que o navio negreiro já havia zarpado. Então os comerciantes abandonaram os escravos à sua sorte, e partiram. Mas não os libertaram, deixaram-nos agregados pelo pescoço. Ninguém os socorreu, e escrevia o estupefacto austríaco que eles cirandavam pela cidadezita, exauridos, esfomeados, sedentos, alguns deles já cadáveres, assim arrastados pelos outros. É uma imagem tétrica, uma ilustração extraordinária, crudelíssima, do que foi a realidade do comércio escravista.
 
Mas mais, na Quelimane de então existiriam - especulo - cinquenta portugueses, talvez alguns mais. Para além de alguns goeses (entenda-se, católicos, com cidadania... no conceito de aquele tempo). Indivíduos decerto que na sua maioria ou mesmo totalidade envolvidos no comércio de escravaturas. Esses portugueses ali residentes eram contemporâneos de Almeida Garrett, de Alexandre Herculano, Camilo já escrevia e estrear-se-ia em livro no ano seguinte. E nenhum foi partir as algemas daqueles desgraçados. Isto é terrível.
 
Acontece também que quem tinha produzido aqueles escravos - os tinha capturado e transportado, pago as portagens do caminho -, e sofrera a desilusão de não os ter vendido, e os deixara naquele estado desgraçado, eram ... africanos. E durante séculos assim foi. E como isso demonstra todo um mundo de dinâmicas africanas que é completamente apagado neste exposição - "artefactos" bonitos à parte.
 
Outro exemplo disso? Lá está Mouzinho grande, quase solitário, prendendo Ngungunyane, glorificado em figura portuguesa de então. Mas nem uma palavra (ou imagem) sobre as teias de alianças (naquele caso de última hora, mas em tantas outros sítios mais trabalhadas) ou de interacções construídas. Ao longo de séculos.
 
8. Nos nossos países "congéneres" (França, por exemplo) há literatura actual que aborda, sem complexos e sem higienizações, estas enormes teias de dinâmicas, africanas, nas suas consociações e oposições com as europeias, asiáticas, americanas. Antes do colonialismo. Durante o colonialismo. Nesse labor se "desconstroem os imaginários". Não com este panfletarismo. Serôdio. Medíocre. Inaceitável no Museu Nacional de Etnologia. No Estado.

24
Nov24

O Affaire Coimbra (5): o processo colocado por Boaventura Sousa Santos

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Ao longo dos anos em blog de vez em quando abordei Boaventura Sousa Santos (em particular no velho ma-schamba). E quando, recentemente, surgiram as denúncias do seu continuado assédio sexual e moral escrevi alguns postais sobre isso - intitulei-os "Affaire Coimbra" (1, 2, 4) mas não os resumirei agora. 
 
Conheci-o em Maputo em 1997. Logo o percebi como um tipo indecente. Também com as mulheres, mas sem poder afirmar ou mesmo imaginar coisas desta gravidade. Mas era-me evidente, então nos meus 30 anos, a cagança fálica do sexagenário diante das mulheres que o seguiam.
 
Lembro-me de ter sido convidado (devido às funções laborais que tinha), um ano depois, para jantar em casa de um casal amigo, por ocasião de uma sua visita. Estavam 4 casais à mesa, junto a ele e à sua (implícita evidência) namorada. E a forma boçal como ele se lhe dirigia. Pouco me interessa como os casais se tratam entre si - quantas vezes isso é refracção, até inconsciente, da sua intimidade sexual - mas aquele autoritarismo era ofensivo para os convivas. "Caramba, à mesa está a minha mulher, que é uma Senhora, e tem de assistir a esta cena?!", pensei. E entre nós, logo no carro de regresso a casa, comentámos a miserável situação.
 
Sousa Santos coordenou um projecto de investigação em Moçambique, para isso congregando o escol nacional das ciências sociais. Ao longo de anos visitou o país, e as histórias da sua irascibilidade eram recorrentes. Eu sofrera-a, com completo despropósito, "ossos do ofício" sossegou-me o embaixador meu chefe, que era um verdadeiro Senhor.
 
O velho coimbrão disparatava com tudo e (quase) todos - talvez não fiasse fino, sempre o pensei, com uma sua colaboradora que me pareceu muito estruturada, rija, tanto que décadas depois veio a ascender a biombo do famigerado Silva Pereira. Mas o resto da corte ida de Coimbra tremia, como capim.
 
O pessoal local também sofria as iras do lente coimbrão. Um dia, tive de chamar à razão um amigo, que estava imensamente indisposto devido a (mais) uma birra boaventuriana: "ouve lá", disse-lhe, "tu não estás a ver bem! Ele lá na terra dele é apenas um professor, a merda de um mero professor. Tu aqui, na tua terra, és um órgão de soberania. Põe-no em sentido! Ou julga ele que veio à "colónia"?". E o meu amigo assim o fez!!!
 
Enfim, as histórias sobre o "Boaventura" são imensas. Muito para além da vacuidade demagógica daquela tralha toda - já o escrevi em tempos: deram-me o calhamaço "Crítica da Razão Indolente", li a introdução. Aquilo é uma patacoada, de ágil retórica mas apenas isso. Escrevi emails a um punhado de colegas em Portugal, num "já leram isto? não há um antropólogo que desmonte isto?", recebendo um timorato "não te metas com o Boaventura" vindo de um sénior da disciplina.
 
A pompa "teórica" e demagogia "libertária" dos "movimentos sociais" não é agora o fundamental. Mas é evidente que essa propaganda de um "messias teórico" de movimentos políticos lhe alimentou a ideia de "império" pessoal. Pois quantas vezes me contaram a história, que talvez seja apócrifa - mas se non è vero, è ben trovato - de ser ele recebido num qualquer encontro no pobre Brasil com "investigadoras" "activistas" em êxtase, cada uma com uma letra na t-shirt, alinhando-se depois para formarem o "Boaventura". Pois o poder é erótico e a revolução libidinosa. E BSS talvez tenha aprendido isso, já quarentão, nas suas visitas solidárias à democrática e revolucionária Albânia do Enver Hoxha.
 
Enfim, tudo isto, o "Boaventura" e o seu séquito de "activistas", seria ridículo se não fosse tétrico. Há agora um punhado de mulheres que fizeram queixa dele, do seu assédio sexual e do seu assédio moral. Serão um pequeno núcleo daqueles que ele martirizou durante anos. E daqueles que ele recompensou, já agora - entenda-se, nenhum de tantos aparecerá a dizer "pois eu ganhei este emprego/trabalho porque lhe fiz isto e aquilo".
 
Às queixas o velho coimbrão resmungou umas inanidades, dizendo-se ofendido. E agora colocou um processo a 4 das queixosas: pois às residentes em Portugal exige-lhes o silêncio e a "desculpabilização", o desdizerem-se. De uma delas, a Sara Araújo, sou amigo, distante. A última vez que a vi foi há já um bom par de anos. E conto como, pois tão denotativa foi a cena... Fui a Coimbra para o seu doutoramento, em cujo júri pontificava BSS. A sessão foi na patética de anacrónica Sala dos Capelos - a qual tanto diz sobre aquela universidade, e concomitantes práticas, de docentes e... de discentes. Depois ela ofereceu um lanche num bar óptimo na cidade que estava em voga (não recordo o nome, que era qualquer coisa industrial). Estávamos ali, em alegre convívio, família, amigos e colegas quando apareceu ele, impante de chapéu. Lembro-me de ter pensado "que pavão, não sabe que numa sala se descobre a cabeça?". Tudo demonstrando a arrogância malcriada e egocêntrica do lente.
 
À Sara Araújo conheci-a para aí há vinte anos, quando jovem investigadora chegou a Maputo, na companhia de uma outra colega e amiga. Logo a percebi imensamente empenhada, inteligente, jovial. Uma miúda giríssima (vá lá, não me acusem de mansplaining...). E completamente embrenhada nas teorias boaventurianas. Sobre as quais se veio a doutorar. Com competência e brilho - o seu "oponente" foi o António Manuel Hespanha, grande intelectual, grande académico e homem decente.
 
Há poucos meses li o seu nome no rol de queixosas. Fiquei estupefacto. "Até com esta menina ele se meteu?" ("menina", sim, eu ainda tenho a imagem dela quando recém-chegada a Maputo). Destratou uma mulher que o reverenciava? Claro que exclamei o óbvio: "filhodamãe".
 
Nesta reportagem com dois episódios do canal Now (sábado 16.11. 22.30 h.) (sábado, 23.11., 22.30 h.), a Sara dá a cara, tal como outras queixosas. Conta o acontecido, o sofrido. Com coragem! "É de Homem!" dizia-se antes. "É de Mulher!!!". O que estas mulheres contam é verdadeiro. O pior nem será, digo eu, o afago mariola. Será mesmo a devastação das expectativas pessoais e profissionais, o amesquinhar do quotidiano, a angústia sobre o futuro. E, até mais, o rombo na personalidade.
 
Boaventura Sousa Santos não é o único, nem de perto nem de longe, a usar posições de poder, económico, estatutário ou intelectual, para cometer assédio sexual ou, talvez ainda mais comum, assédio moral/laboral. Mas será o mais escandaloso, pois isto é completamente ao invés de tudo o que andou a perorar durantes décadas, diante de tanto silêncio e de tamanha anuência encomiástica.
 
E o velho, nos seus 84 anos, não tem ninguém à sua volta - família, fiéis - que lhe diga "Acabou! Vai para casa, deixa de importunar os outros. As outras!". Provavelmente porque está como merece. Só! Espero que o juiz lhe diga isso.
 
(Publicado originalmente em 18.11.2024. Actualizado hoje, para incluir ligação ao segundo episódio da reportagem).

22
Nov24

"Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário", no Museu de Etnologia

jpt

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Visitei ontem, detalhadamente, esta exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário", apresentada no Museu de Etnologia (ao estádio do Restelo). A exposição é constituída por painéis de textos e iconografia, que condensam 30 artigos, cada um de diferente autoria. São apresentados num catálogo, com 342 páginas, vendido a 40 euros. Foi-me emprestado. Entre os seus autores, na maioria historiadores, há muitos que li ao longo de anos, vários conheço pessoalmente, e de alguns sou amigo (pelo menos até lerem este postal...).
 
Deixo já a minha impressão (sabendo que diante dela muitos apenas confirmarão que eu sou um reaccionário do piorio, neocolono até e, pior do que tudo, um verme neoliberal). Como catarse da ira que (ainda) sinto.
 
Os textos invectivam, grosseiramente - de modo básico de tão simplista que é, e sob desonesto viés, tamanho que censório -, a presença e posterior ocupação portuguesa. Num patético discurso anticolonial, que nem anacrónico é pois tão medíocre resta. Ou melhor, rasteja, num lamaçal ideológico "bon chic bon genre". E que evidencia uma estuporada vontade "pedagógica" - distraída do facto de não estarmos já em Paris 1964 ou Lisboa 1974... Constituem 7 "fascículos", partes se se quiser ter boa vontade, com temas repetidos, de estrutura descuidada.
 
Os painéis estão pessimamente impressos - apesar da longa lista de patrocinadores... A disposição é pobre (a exposição quer-se concêntrica mas isso é inicialmente imperceptível, é preciso chegar alguém para nos informar, nem sinalética souberam colocar para obstar à amontoada montagem). Na iconografia associada abundam os erros de legendagem (por exemplo, uma fotografia está presente em três painéis com legendas diferentes, uma outra duas, etc.) - mas isso até é o menos diante dos constantes disparates apostos nos textos. Quase culmina com a transmissão de vídeos musicais do actual afro-pimba, com os habituais traseiros femininos em destaque, uma coisa ridícula.
 
É também acompanhada de um conjunto de artefactos africanos, mobiliário nobiliárquico, alfaias agrícolas e, claro, os lendários "manipanços" - grosso modo desde uma (boa) peça da Reinata, as obrigatórias caraças de mapiko, passando por outras esculturas do Mali (??!!, o que estarão a fazer ali?) até à penúltima da exposição, uma porta Dogon (!!??, o que estará ali a fazer?) . O motivo desta associação escapou-se-me, mas presumo que para além do "ai, é tão gira esta peça, temos de a mostrar!", queiram no seu conjunto mostrar aos visitantes que os "pretinhos", perdão, os "afroascendentes" também tinham agricultura, chefes e, imagine-se, religião. E que, claro, sabiam trabalhar a madeira... E até tinham talento para isso. ("Atenção, também eram capazes de fazer olaria....").
 
Quanto ao livro, como é óbvio não pude ainda ler o calhamaço (342 páginas, repito). Mas no metro corri a ler o artigo de João Pina-Cabral e Joana Pereira Leite sobre o ocaso colonial em Moçambique. Apenas para ver se lá estava o disparate, demagógico de ignorante, espetado no resumo posto no painel respectivo (da autoria deles?). Não está, pelo menos de forma explícita. Mas, de qualquer forma, o que ali está pendurado envergonhará qualquer autor.
 
E estamos nós em 2024. Isto seria desesperante se não fosse ridículo. O ridículo da academia portuguesa.
 
Como qualquer antropólogo português sabe - ainda que nem todos o digam em público, mas todos o dizem em privado - o Museu de Etnologia (ao estádio do Restelo) foi há décadas entregue a uma Comissão Liquidatária, gerida por Joaquim Pais de Brito, a qual cumpriu o seu trabalho com denodo e eficiência. O mausoléu posterior tem sido gerido com a competência adequada.
 
Agora, em más horas, foram as cinzas remexidas. Ao que parece esta tralha estará "patente ao público" durante um ano. Como saberão os meus "amigos-FB" e leitores de blog - pelo menos os que (me) visitam de vez em quando - a minha filha e a minha irmã proíbem-me de usar o calão. Por isso escrevi este texto longo. A substituir o rol de palavrões peludos que fui dizendo ao longo das horas que ali desperdicei.

21
Nov24

Discriminação na RTP

jpt

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Serviço público televisivo? Tem a obrigação ética de respeitar os cidadãos, sem fobias discriminatórias, sem verrina desvalorizando as diferentes "identidades sociais". Mas acabo de assistir ao inverso. Nos seus 66 anos um concidadão morreu no serviço de urgências de um hospital. Na RTP, o preconceituoso, quiçá fóbico, locutor ao nosso compatriota sexagenário desvaloriza como "idoso"... A ira recobre-me.

20
Nov24

Um texto sobre Moçambique que não escrevi

jpt

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No início do bloguismo português, lá pelo 2003/2004, era usual apor-se a cada postal as iniciais do autor, este identificado pelo nome na então célebre "coluna da direita". Assim faziam os meus bloguistas preferidos, o jcd (João Caetano Dias, do "Jaquinzinhos") e o hmfb (Henrique Manuel Bento Fialho). Ou outros então mais célebres, como o jpp (José Pacheco Pereira - que me foi um dos mais importantes professores na universidade, o outro foi o João Leal, que não é de blogs), ou o FJV (Francisco José Viegas), etc.
 
Assim fiz e continuo a fazer, nos blogs identifico-me na informação geral e nos postais aponho jpt. As quais são as iniciais de José Pimentel Teixeira, como assino. Pois nunca gostei do Flávio avoengo com que me acoplaram o nome próprio. E porque o meu apelido patrilinear é compósito - o meu pai era conhecido por Pimentel, pois não foi à tropa, eu fui e logo ali no primeiro dia de Mafra fiquei para sempre "Sô Teixeira".
 
Ou seja, sou José Flávio Taveira Pimentel Teixeira, pois ao registarem-me decidiram amputar-me do nome compósito do meu avô matrilinear (Taveira Pereira). Os meus verdadeiros amigos portugueses chamam-me Zezé. Algumas, poucas, senhoras entretanto afastaram-se, enfastiadas, para Zé. Os meros colegas condenam-me, altaneiros devido aos seus sucessos, ao Flávio. Em Moçambique os amigos tratam-me normalmente por Teixeira, Zé Teixeira ou "mais-velho". Pouquíssimos, mais íntimos, decidiram-se ao "Zé".
 
Às lérias que escrevo assino seguindo o nome do meu pai António e do meu avô Flávio, que os ascendentes não conheci. Sou então José (eu) Pimentel Teixeira (os meus antepassados). Nas ligeirezas que ponho nos blogs aponho a cada publicação as tais iniciais jpt. Algumas delas aqui as transcrevo e ficam como do "José Teixeira", nome algo artificial pois não só apenas aqui [Facebook] o uso como nenhum português é "José", como é consabido.
 
Dito tudo isto, um amigo acaba de me dizer que no frenesim internético moçambicano corre um texto, ao qual me atribuem a autoria. Algo anónimo, pois assinado apenas como J. G. J.
 
Não opino sobre o seu conteúdo. Apenas aviso alguns incautos que aquilo não é meu. As minhas iniciais são as jpt, sempre em minúsculas. E actuo, escrevo, sempre de cara destapada, como comprovo nesta fotografia.

19
Nov24

"Apaga lá um, chefe!", "Apaga lá um aí, chefe!"

jpt

1. Suspendo as minhas regras e partilho imagens violentas.

2. Explico-me sobre Venâncio Mondlane: há uma década fora de Moçambique não acompanhei a sua ascensão política, desconheço-lhe os discursos e ideário. Apenas o vi com detalhe uma vez: Victor Hugo Mendes convidou-me para o seu programa "Tem a Palavra" (RTP-África), para debater os transportes em Maputo onde decorreria uma "greve" (de facto uma paralisação patronal, uma espécie de "lay-off"). Naquela manhã a situação fora já resolvida, por acordo entre governo e associação patronal, eu saudei o facto - e foi evidente que pareci ali uma espécie de porta-voz governamental.... Havia mais três comentadores, em Maputo, Mondlane era um deles. Nada gostei - sublinho, nada -, pareceu-me histriónico e descabido.

3. Explico-me sobre a elevação do clero na política: sou ateu, não anticlerical. Mas radical ("fundamentalista") adepto da laicidade. Traduzo-me para os meus interlocutores moçambicanos: defendo que o presidente português Rebelo de Sousa deveria ter sido imediamente destituído após ter feito uma visita oficial - ou seja, como presidente - na qual beijou o anel do Papa, acto que significa submissão à hierarquia católica. É consabido que Rebelo de Sousa é um "dandy" político, o cume da superficialidade, o que ele faz pouco significado tem. Mas a república não deveria aceitar atrevimentos destes. Assim sendo, não vejo problemas se um cidadão sacerdote se inserir nas instituições políticas subordinando-se ao princípio da laicidade estatal. Mas apenas nesse caso.

4. Explico-me sobre ideologia: o "messianismo" político não usa apenas tópicos religiosos. Os que se declaram ou são declarados "ungidos" por um Destino, os "Salvadores da Pátria", não se restringem aos iluminados por qualquer divindade. Os portugueses sabem-no bem, com a nossa tradição de "sebastianismo" (uma espécie peculiar de messianismo). Os moçambicanos também o têm, construído na I República e potenciado na desgraça de Mbuzini. A consagração de Putin pela igreja ortodoxa russa (coisa que os actuais russófilos moçambicanos e os comunistas portugueses fazem por esquecer) é um exemplo muito actual desse "messianismo". A incorporação em Trump de uma "American Renaissance" pelos sectores cristãos fundamentalistas dos EUA é outra expressão messiânica.

5. Dito isto salto para o assunto. Há dias escrevi contra críticas acintosas a Mia Couto. Pois as críticas devem incidir sobre os argumentos apresentados, não sobre putativos interesses, alegadas malevolências, estatutos sociais ou mesmo qualidades pessoais (houve quem até misturasse contestações políticas a invectivas de cariz literário).

Recebi ontem a entrevista de Mia Couto ao suplemento "Weekend" do "Jornal de Negócios". Parte é dedicada ao seu novo livro "A Cegueira do Rio", que ainda não li. Outra parte é sobre a situação em Moçambique.

Diz ele que "há uma elite muito predadora, desatenta ao outro e ao sofrimento dos outros. Essa raiva contida estava à espera que a tampa saltasse. Há um acumular de tensões que, quando se expressa, fá-lo sempre de maneira explosiva. E se há alguém que a manipula...". E avança "Isto poderia ser resolvido se não existisse a manipulação de alguém que quer tirar proveito em nome próprio e tem uma presssa enorme em chegar ao poder." E aponta a existência "desta tendência de milagreiro, de alguém que aparece sozinho e que quanto menos ligação tiver com o partido, melhor" (e invoca o exemplo de Bolsonaro), referindo-se implicitamente a Mondlane. Sublinho que cito excertos da entrevista mas não trunco o sentido das declarações.

6. Esta análise deixa-me estupefacto. Digo porquê:

a) Seguindo o que já Álvaro Carmo Vaz - ilustre e probo intelectual moçambicano - escrevera ("O Crime do Outro Zédu", de finais de Outubro, que recebi via whatsapp, desconheço se foi publicado), Couto refere a "pressa" de Mondlane em chegar ao poder. Ora este, como Luca Bussotti bem lembrou, teve uma candidatura autárquica em 2013, a qual é provável que tenha sido efectivamente vitoriosa. Voltou a candidatar-se nas autarquias em 2023, e é muito mais do que apenas provável que tenho sido vitorioso. Agora, 11 anos depois da sua primeira candidatura eleitoral, estas eleições têm, pelo menos, uns resultados muito "manhosos". Ele contesta-os. E os intelectuais - que devem ter sensibilidade historiográfica, uma atenção ao passar do tempo - dizem que o homem "tem pressa"? Isto tem cabimento?

b) A afirmação do "unipessoalismo" eleitoral (forma sintética de afirmar o tal "messianismo" e "populismo") de Mondlane, a sua excentricidade aos partidos é também surpreendente. Ele já militou em partidos. Tentou candidatar-se no interior do Renamo e foi afastado - disseram ilegítima a sua tentativa. O Renamo está, é consabido, cooptado pelo Estado, pertence agora - ainda mais desde a morte de Dhlakama - ao "bloco histórico" do poder, o que se comprova na forma plácida como aceitou receber 4 ou 5 municípios após a escandaleira eleitoral de 2023. Então Mondlane tentou criar um partido. Foi-lhe recusada essa hipótese, por razões administrativas. Candidatou-se assim através de uma pequena plataforma, algo fluida e até heterogénea. Neste processo encontra-se um trajecto avesso a partidos? O tal populismo unipessoal? Afirmar isto tem algum cabimento?

c) A contestação política ao poder instalado há cinco décadas é resumida a "raiva", uma fúria até irracional. Esta análise é não só deficitária por defeito de psicologismo como comporta uma visão sociológica do real: as massas actuam "irracionalmente", por derivas psicologistas; as elites actuarão racionalmente, por reflexão. É a velha matriz dos intelectuais orgânicos. E, atenção, do clero politizado. Pois os "intelectuais orgânicos" e os "cleros" sempre se dizem os disseminadores da boa palavra dos... "messias".

d) Mia Couto diz que tudo poderia ser resolvido se não existisse a manipulação de alguém (o opositor ao regime, claro). Aceite-se a formulação de quem tão bem conhece o país. Mas pergunte-se-lhe então "como"? "Como" é que poderia resolvido? No quadro actual do regime? Com a tal "elite muito predadora" que ele refere? Que não tem outra oposição política organizada, para além dos conflitos internos do partido do poder, de interesses interesseiros feitos? Seria interessante saber esse "como"!

e) etc.

7. Também ontem vi este filme. E face a estas análises e outras posições similares ocorreu-me isto. E também por isso coloquei agora os pontos anteriores, uma "introdução" ao meu desabafo:

"Apaga lá um, chefe!", "Apaga lá um aí, chefe!" grita-se, incentiva-se... Homens uniformizados e à civil, disparam sobre a população... (E - aparentemente - até se filmam a si mesmos, no desplante da vanglória).

Será de lembrar uma coisa a algumas pessoas mais antigas. Por mais que não gostem do "messianismo" do "evangelista" conviria perceberem que esta acção militar não é contra matsangaíssas mobilizados pelo "tabaqueiro Smith", coordenados pelo apartheid, comandados por "mercenários ocidentais", ou machababos armados por uma qualquer "Total francesa" ou "americana", remunerados por empresas "neoliberais".

Pois estes disparos procuram atingir mera população, gente quando muito armada de tachos e panelas, e algumas pedras que nem pedregulhos são. E do seu desespero diante da contínua cupidez malevolente dos mandantes.

Convirá que esses intelectuais percebam isto, vejam isto. Falem disto, se decidirem falar. O direito ao silêncio é irredutível. Mas os que querem falar e a isto são cegos, se abstraem isto da sua reflexão, então condenam-se ao mutismo significante. Ao opróbrio da irrelevância.

Serão apenas os catedráticos da complacência.

17
Nov24

Os lagartos do Ídasse

jpt

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Uma querida amiga enviou-me uma mensagem dizendo-me qualquer coisa como "tomas as dores de Moçambique como se seja o teu país, e também acho que o seja...". Respondi-lhe que está errada. Gosto do país e espero-lhe o menor mal que seja possível (desejar o "melhor" é uma utopia, e esta é sempre "a mãe de todas as..." desgraças). Mas não é o meu país, nem nunca o senti assim. Fui durante quase 20 anos, como um dia tão bem me (nos) explicou o então ministro José Mateus Katupha, metaforicamente um "cunhado" - ou seja, alguém que foi viver para a terra dos "donos". E gostou.
 
Explico-me, a ela e não só. Durante a década dos meus quarentas este regime moçambicano enquistou. Mas a política que me preocupava - até porque blogava - era a portuguesa. Pois sou um patriota (esse termo que os esquerdistas abominam...). Recordo uma alvorada em que olhei para o espelho e me insurgi num "vou chegar aos 50s e estes gajos ainda estarão no poder!", aquele execrável PS. O me que enojava nem era Sócrates - mariolas daqueles existem em todos os regimes, partidos, ideologias. Era a abjecta cumplicidade, conivência ou complacência desta "lisboa", e de vários que eu conhecera, um ou outro até amigo. E o que me preocupava era - como se veio a comprovar - o antidesenvolvimentismo que toda aquela camarilha clientelar promovia.
 
Sobre Moçambique? Trabalhava e convivia. Com gente empenhada, de densas biografias e de argúcia analítica, universitários na maioria, mas não só, um gabarito colectivo que imenso me faz falta neste remanso dos Olivais. Claro que nisso se discutia o país, seus rumos de desenvolvimento. Mas eu nem fazia proselitismo (nunca o fiz nem farei) nem opinava em público. Vim a escrever no "Canal de Moçambique" - um jornal de "oposição". Fi-lo porque um dia o amigo Fernando Veloso me convidou. "Pagas-me?", provoquei-o. "Claro, quanto queres?", respondeu. "490 meticais por uma página semanal", o equivalente um maço de Rothmans diário! Ele riu-se e acordámos. E durante anos nunca escrevi sobre política local.
 
De quando em vez um ou outro "estrutura" que eu conhecia abordava-me, amigavelmente, dizendo que me lia e que eu ia bem. O sentido era óbvio, um "assim não fazes mal". Por vezes diziam-me "não percebo bem o que escreves...", e eu ria-me, pois era exactamente o que eu sentia ao (tentar) ler os textos de jornal do António Cabrita ou do Luís Carlos Patraquim - ambos muito mais cultos e complexos do que eu, e que me deixavam (e ainda deixam) tantas vezes meio atarantado. Ou o que me disse ontem uma amiga vizinha, chegada de férias: "estou a meio do teu Torna-Viagem"... "tens umas histórias óptimas", sorriu, "mas escreves um bocado rebuscado... é o teu estilo, a tua mania"...
 
Não escrevia sobre política local porque aquela que me preenchia era a portuguesa. Mas também porque sabia que qualquer crítica que colocasse seria sempre por alguns entendida como a de um "xicolono", assim contraproducente. E também porque quem não gostasse de qualquer opinião minha a faria respingar sobre a minha mulher e sobre o seu enquadramento laboral. O que seria uma injustiça extrema, até porque ela já tinha de me aturar no dia-a-dia, e esse seu calvário já era demasiado.
 
Em blog apenas uma vez opinei. Poucos dias antes de partir escrevi no ma-schamba (que então era bastante lido) um "em Moçambique sou chissanista". O que me valeu alguns resmungos de amigos, frelimistas, oposicionistas ou estrangeiros. E continuo a sê-lo (quem quiser perceber porquê terá de me pagar, será suficiente uma xima e uma cacana no "Roda Viva").
 
Uso este meu longo auto-enquadramento para responder à minha amiga. Eu sou daqui. E estou aqui. Mas tenho uma visão sobre Moçambique. Poucas semanas depois de lá chegar, em 1994, a aldeia comunal onde vivia, cerca de Montepuez, foi avisada que o ministro da Agricultura iria visitar a empresa agrícola que ali funcionava. Numa manhã aproximou-se a comitiva, meia dúzia de carros. Eu estava no mercado e num ápice todos fugiram. Com excepção de meia dúzia de anciãos, já algo trôpegos, ali sentados a vender o tabaco cultivado, os quais eu ladeei. E por mais "rebuscado" que tente ser não conseguirei descrever o terror generalizado e a angústia, hirta e digna, daqueles mais-velhos já incapazes de se escapulirem.
 
Naquela época escasseava a literatura analítica sobre o país. Certo que Geffray já tinha publicado (e tão atacado fora) mas o derrame crítico foi subsequente, lá para já XXI, primeiro estrangeiro e só depois nacional. Mas para mim aquele momento foi elucidativo: em plena paz estabelecida, a "população" (como se dizia), o "povo", tinha terror do poder.
 
30 anos depois o poder estatal é muito pior! O regime enquistou, repito. O povo - que nem sempre tem razão mas onde radica a soberania (a qual nunca se subordina a reclamadas legitimidades históricas...) - protesta em contínuo. A (minha) simpatia com os protestos é evidente. Intelectual, ideológica até. Ética.
 
Mas isso não implica gostar do conteúdo de algumas críticas. Vejo um filme com um líder oposicionista em comício recorrer a argumentos regionalistas ("tribalistas", dizia-se) - "a senhora que aprenda a nadar para atravessar o rio", gritava Manuel Araújo para gáudio da população, invectivando uma dirigente oriunda do sul do país!. Leio escritos de teor racista, acendendo indignações contra "minorias" étnicas - "nasceste aqui por acaso", escreveu Araújo sobre um "branco". E é temível o potencial indutor destas derivas, mesmo que sejam apenas escorregadelas retóricas ocorridas no calor da polémica.
 
Pois uma coisa, necessária, é exigir justiça sobre mandantes e executantes de crimes - acabo de ver uma reportagem da Al Jazeera com um jovem manifestante assassinado por estar a bater tachos e panela. Outra coisa, catastrófica, é acoitar revanchismos colectivos ou lutas "étnicas". Ou derivas a la Idi Amin, pugnando por exclusões populacionais. Justiça é uma virtude. Delimitar "inimigos internos", bodes expiatórios, é um crime. E se é esse o caminho dos líderes da oposição o país não irá para melhor...
 
As redes sociais e as telefónicas fervilham com os acontecimentos de Moçambique. Nesse feixe constam agora um texto e uma entrevista de Mia Couto, o mais conhecido escritor moçambicano. Não gostei dos seus conteúdos. E muita gente também não. De imediato brotaram textos críticos, o que é normal, em particular num momento destes. Mas alguns dos argumentos brandidos são acintosos.
 
Diante dessa verrina, até pérfida, lembro uma situação com o Mia Couto. Carlos Cardoso tinha sido assassinado, causando uma imensa comoção no país - os mais antigos lembrar-se-ão disso. Mas também um pânico em Maputo - no dia do seu funeral três moçambicanos pediram-me para se acolherem em minha casa, decerto que por pensarem que isso lhes daria uma espécie de "asilo político". E um foi efectivamente para lá sossegar.
 
Junto ao féretro acotovelávamo-nos centenas de pessoas. Murmurando o mandante do crime. O Mia Couto foi falar. Eu ladeava algumas das suas pessoas mais próximas, que o escutaram angustiados com os riscos em que estava a incorrer. "Quer ele ser o próximo?", disse-me entredentes um seu muito querido. Quando terminou, desceu até junto de nós e eu disse-lhe, comovido, "Mia tens de ter cuidado! "Eles" também abatem escritores...". "Queres que me cale?", ripostou.
 
Ele acabara de dizer isto, em Novembro de 2000:
 
"(...) O sentimento que nos fica é o de estarmos a ser cercados pela selvajaria, pela ausência de escrúpulos dos que enriquecem à custa de tudo e de todos. Dos que acumulam fortunas à custa da droga, do roubo, do branqueamento do dinheiro e do tráfico de armas. E o fazem, tantas vezes, sob o olhar passivo de quem devia garantir a ordem e punir a barbárie. (...) queremos uma nação de paz, em que vale a pena ser-se justo e honesto? Porque se queremos essa outra nação, então alguma coisa vai ter que mudar. E mudar radicalmente.
 
A questão é que já muitos de nós perderam a crença nessa mudança. Compete-nos vencer esse esmorecimento. Porque é isso que pretendem (...) os que estão matando a nossa pátria. Que abandonemos a crença, que abracemos o desalento e aceitemos, com conformismo, a ordem do crime organizado. (...)
 
Esta morte põe à prova os governantes deste país. São eles que devem responder com actos, investigando não apenas este como outros crimes que foram deixados impunes (...) E já não bastam palavras, declarações de sentimento. Esperam-se actos." (O texto completo está em "Pensatempos", Ndjira, 2005, pp. 99-100).
 
Enfim, neste Novembro de 2024, quando é aparente o estertor de um regime, quando as "massas" protestam em uníssono, é relativamente fácil - mesmo que se em Moçambique ainda seja algo arriscado "tomar partido" - escrever críticas acaloradas, e até acintosas, a um apenas indivíduo, porque dele se discorda.
 
Mais difícil, muito mais difícil, foi naquele Novembro de 2000, falar (quase) sozinho daquele modo. Respeite-se isso! Pelo menos isso!
 
E isto digo eu, que não sou compatriota dele, nem amigo (tenho uma relação cordial, mas sem qualquer intimidade), nem "fan" da sua literatura (sou leitor, o que é diferente). Nem concordo com o viés com que ele está a analisar o seu país. O seu país, repito.
 
Enfim, que os lagartos do Ídasse protejam Moçambique.

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Bloguista

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