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(Moçambique, esta semana. Desconheço autor e local exacto da fotografia)
Em Moçambique, após 50 anos de poder o partido-Estado - entretanto tornado uma mera tétrica cleptocracia - parece desabar, face à enorme adesão popular aos protestos contra mais uma escandalosa fraude eleitoral, nas presidenciais, regionais e legislativas de Outubro. Correspondendo ao apelo de Venâncio Mondlane - o candidato presidencial declarado "derrotado" - por todo o país se suspendeu o trabalho, uma verdadeira "greve geral", em repúdio pela fraude. Até os funcionários públicos, tradicional suporte do partido governamental, aderem. Desfiles pacíficos - os "tumultos" prenunciados pela intelectualidade cliente do regime - ocorrem em inúmeros locais, sendo reprimidos pela polícia. Ponderamente recuando diante da repressão policial, em Maputo a população protesta batendo tachos e panelas à janela. A polícia dispara gás lacrimogéneo contra as casas onde se batem tachos. (As ligações são pequenos filmes. Mas eximo-me a reproduzir filmes onde se vê a polícia a disparar munições reais sobre a população, mostrando mortos ou feridos).
Desde há dias que as comunicações estão cerceadas pelo Estado. O uso da internet é reduzido, os "dados móveis" inacessíveis. Redes como Whatsapp, Facebook e ex-Twitter estão muito condicionadas. Tudo para obstar a divulgação das acções de protesto, previstas para terem um cume amanhã (7.11) com um desfile em Maputo encabeçado por Venâncio Mondlane - este por enquanto em local incerto, por razões de segurança (dois dos seus colaboradores mais próximos foram já assassinados). Anteontem o governo convocou os embaixadores residentes, pedindo colaboração no que chama "manutenção da ordem". Muitos aventam ser este o passo cénico para a declaração do estado de emergência ou de sítio. Que proíba as manifestações públicas, e permita a continuidade - em regime ainda mais musculado - do actual poder.
A acontecer será uma "fuga para a frente" do actual regime, julgando assim conter o levantamento dos despojados, dos calcados, contra o execrável regime, esta verdadeira "revolução do capim", digo-a assim, evocando a magrebina "revolução de jasmim".
Uma "fuga para a frente" que se sonha escorar nos dizeres de alguns intelectuais e históricos do partido que aventam a "depuração" do Frelimo, a velha ladainha da reemergência "da Frelimo" (boa) sobre "a Frelimo" (má). No fundo, glosando o Lampedusa do "Leopardo", na proposta de que "é preciso que nada mude para que tudo continue na mesma". Mas que mais desejará - e necessitará - da repressão paramilitar e/ou militar, ou até no muito aventado "putsch militar" que reponha a "ordem". O que talvez venha a ser difícil, pois grassam informações sobre demonstrações de solidariedade entre militares no terreno e manifestantes... Mas tudo dependerá dos anseios e capacidades das chefias militares, elas próprias emanadas do poder político.
Há um ano, aquando do abstruso abuso eleitoral nas autárquicas, pareceu-me óbvio que estas eleições seriam similares. E que não haveria relevante atenção internacional sobre isso. Não só devido à usual docilidade face aos desmandos estatais mas também por ser este 2024 um ano de frenesim eleitoral internacional (64 eleições nacionais e ainda para o parlamento europeu), ainda por cima com as presidenciais americanas, sempre monopolizando atenções. Isso, mais os posicionamentos face aos conflitos geoestratégicos actualmente dominantes, reduz a hipótese de reais exigências externas para a imposição de uma ordem democrática.
Diante de tudo isto recordo que Moçambique é o segundo país mais populoso da CPLP, essa organização que sempre é dita como central na política externa portuguesa. Mas a comunicação social portuguesa distrai-se. Não há verdadeira atenção sobre a situação, inexistem destaques ou análises actuais profundas. Em Maputo está uma delegação da RTP-África, sempre "cinzenta", nunca atreita a incomodar os poderes locais, e incapaz de entrar no agendamento dos serviços noticiosos em horário "nobre". Durante poucos dias esteve uma equipa da CMTV, sem obter autorização de trabalho (excentricidade denotativa do momento político do país), tendo acabado por ser proibida de exercer e escoltada até ao avião. As outras estações não enviaram ninguém ("a SIC já nem tem dinheiro para isso", diz-me um jornalista amigo). Os jornais "de referência" - à excepção da "Sábado" - não têm gente no terreno, limitando-se a ecoar os despachos da LUSA. Esta tem um activo correspondente em Maputo, Paulo Julião, que ontem foi baleado (com munição de borracha, felizmente). Este contexto implica um quase silêncio noticioso sobre Moçambique, o reforço da desatenção sobre a repressão.
Trata-se assim de nós-próprios combatermos este relativo silêncio imposto. E de convocarmos os nossos representantes para que não tergiversem diante do estertor do poder autocrático de Maputo. Nem se apiedem da necrose do Frelimo - em nome de velhas e anacrónicas solidariedades partidárias ou de espúrias simpatias.
Se eu fosse cidadão norte-americano votaria na candidatura presidencial do partido democrata.
Dito isto, na terça-feira estava em zapping por causa do Rúben e dei com o Daily Show, apresentado por Jon Stewart. Em tempos, aquando em Moçambique, amiúde via este programa de entretenimento político, com assumido viés democrata. Fiquei agora a ver, na curiosidade de perceber o estado de espírito nas vésperas das eleições naquele país.
O primeiro terço foi de ridicularização do abjecto Trump. O restante foi uma bem conseguida (e decerto ensaiada) entrevista ao governador da Pennsylvania, estado fundamental no peculiar sistema eleitoral americano, e no qual as sondagens anunciam um despique muito renhido. Trata-se do democrata Josh Shapiro, antes anunciado como um dos 3 possíveis candidatos a vice-presidente nessa serôdia candidatura. Discorreu ele sobre a sua obra no Estado que governa, muito louvada pelo apresentador, e sobre como Harris se revê nisso, e sobre os méritos e perspectivas da candidata. E ainda sobre questões internacionais - em particular sobre Israel, num diálogo com Stewart, ambos apresentando-se como judeus críticos da actual situação.
Ou seja, foi uma muito competente sessão de propaganda avessa ao, repito, abjecto Trump.
Fiquei apenas com uma dúvida. A que propósito é que um programa estrangeiro com este conteúdo político, e constante viés partidário, é transmitido no serviço público televisivo nacional (RTP 3)? Isto não será suficiente para demitir a direcção de programação?
Francamente não sei o que será pior. Se a partida do Rúben Amorim (e do Hugo Viana) para Manchester, se o imbecil e "lusófono" AO90.
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