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Nenhures

Nenhures

15
Fev25

Uma morte, lá no Porto

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Bertrand.pt - Golpe de Estádio

Corrupção, espancamento de jornalistas, tráfico, falsificação de apostas desportivas, um sem fim de crimes e ignomínia. Quase tudo disso escrito há pelo menos 30 anos. Mas ainda assim consagrado por tantos, desde esse comentador televisivo que os portuenses elegeram para seu autarca, até ao proto-delfim de Guterres que a escória PS nos quis impingir. Até mesmo, imagine-se, pelo general Eanes (e nós que tanto esforço fizemos para esquecer o comendador Gomes...).
 
O idoso morreu. Findou o padecimento. Mas enoja este coiro de elogios ao escroque. Sinal do país que somos.

15
Fev25

Vance em Munique

jpt

greene.jpg

Atrasei-me a cozinhar o almoço (o esparregado, verídico claro, e com malagueta, requebro da minha lavra, estava bom) e por isso manducando vi na tv em directo o discurso do vice-presidente americano Vance em Munique numa (parecia que não) conferência sobre segurança.
 
Fiquei estupefacto, tanto que o pitéu que preparara (não almoçava sozinho) não me escorria. Lembrei-me durante aquela estuporada arenga do "O Americano Tranquilo" de Greene, como tantas vezes me ocorre - já o escrevi em blog várias vezes, é o livro da minha vida, li-o pela primeira vez na adolescência, nessa mesma o reli e mais três vezes ao longo da vida. E logo nessa juventude, da primeira vez, me deparei com aquilo de Fowler, o protagonista, não ser apenas o meu alter ego. Mas sim de o perceber o meu ego, uma condenação a uma relativa mas brutal infelicidade e a uma essencial impotência. Ainda assim não bebi ao almoço. Claro que quem nunca leu o livro não perceberá a minha alusão...
 
Vance elaborou, estupidamente, sobre as rezas e a (sua) moral. Chegado ao fim do dia beberiquei. É dia dos namorados e, como tal, tive um jantar romântico. Em "bromance", como agora se diz. O que um tipo como Vance aceitará, homens como deve "de ser" que se gostam e comem juntos, falam da vida que escorre (finda até, já...) e de mulheres (escasseiam, claro, que a gente fenece e desperdiçámos as mais valiosas). E de outras coisas, também.
 
Regresso a casa, não a desoras. E antes de ir ao Filmin, ver um qualquer clássico, passo pelo FB. E vejo uns coirões a louvar o discurso do Vance. "Labregos", escrevi-os há dias em postal de blog. Como é possível louvar uma coisa daquelas? A Carolina - minha filha, jovem que hoje soube que seguirá para belíssimo lugar e posto -, a Teolinda - minha irmã, não tão jovem que sempre está em belíssimo lugar e posto -, proíbem-me de usar o léxico abrangente português. Mas em assim sendo como posso eu (greeniano Fowler) dizer estes imbecis?
 
São uns morcões! Alguns são mesmo uns doutores morcões! E - que não restem dúvidas - é evidente que falo (também) de si, seu caralho!

09
Fev25

Os comentadores e Moçambique (2)

jpt

vmxx.jpg

Location of Xai Xai -  Capital of Gaza Province

Aos meus compatriotas que se interessam por Moçambique: o mapa indica onde é Xai-Xai, capital da província de Gaza - desde a independência o mais extremado reduto eleitoral do Frelimo. Que eu saiba Xai-Xai não é uma das duas cidades referidas pelo comentador televisivo (remunerado?) "senhor embaixador" Martins da Cruz como as únicas tendo "problemas" políticos. Nem será alvo dos aventados interesses económicos do comentador televisivo (remunerado?) "doutor" Miguel Relvas. Nem objecto de análise detalhada do comentador televisivo (decerto que remunerado) administrador "Paulo" Portas. Ainda assim Xai-Xai existe... E vários amigos acabam de me enviar ligações para a transmissão em directo (via FB) da visita que Mondlane - o "populista" "imprevisível" para o "Público", o mero "bolsonarista" para os acomodados cleptófilos - está a fazer à cidade. Um incrível, gigantesco, banho de multidão!
 
Será um facto politicamente impressionante? Talvez. Esperemos pelos telejornais e painéis deste fim-de-semana... pois neles o "senhor embaixador" Martins da Cruz, o "doutor" Relvas ou o (administrador) "Paulo" Portas nos virão esclarecer. Remunerados? Quiçá... E até mesmo que algum "jornal de referência" possa atentar nisto.
 
E até poderá ser que alguns dos nossos actuais ministros "abram a pestana". Trata-se de insistir, apesar da pouca esperança a ter com esta gente.

07
Fev25

Os comentadores televisivos e Moçambique

jpt

Chibuto_District_map.svg.png

Aos meus compatriotas que se interessam por Moçambique: o mapa indica onde é Chibuto, na província de Gaza - desde a independência o mais extremado reduto eleitoral do Frelimo. Que eu saiba Chibuto não é uma das duas cidades referidas pelo comentador televisivo (remunerado?) "senhor embaixador" Martins da Cruz como as únicas tendo "problemas" políticos. Nem será alvo dos aventados interesses económicos do comentador televisivo (remunerado?) "doutor" Miguel Relvas. Nem objecto de análise detalhada do comentador televisivo (decerto que remunerado) administrador "Paulo" Portas. Ainda assim Chibuto existe... E vários amigos acabam de me enviar ligações para a transmissão em directo (via FB) da visita que Mondlane está a fazer à pequena cidade. Um incrível banho de multidão!
 
Será um facto politicamente impressionante? Talvez. Esperemos pelos telejornais... pois neles o "senhor embaixador" Martins da Cruz, o "doutor" Relvas ou o (administrador) "Paulo" Portas nos virão esclarecer. Remunerados? Quiçá...

06
Fev25

Não CHEGA já?

jpt

chegga.jpg

Não se governa com moralismos, mas sim com pertinência decisória. Na política os discursos moralistas são sempre escalfetas para acalentar tendências ditatoriais - fascistas, comunistas -, colhendo acéfalos apoios naquilo "assim é que é!" (ou seja, "assim é que deve-ser!"). De resto, em todos os partidos, movimentos, ideologias e crenças há gentes muito diferentes, cada um de nós com suas "públicas virtudes, vícios privados", nisso mais ou menos avessos aos "valores" e "princípios" propagandeados pelas forças políticas a que aderimos.  Há nestas contradições uma diferença fundamental - quando uma organização política que se suporta em retórica moralista se contradiz institucionalmente (como agora na mariolice do BE com os seus empregados) é um fenómeno diferente de que quando membros individuais de uma força política têm actos avessos à retórica dos grupos que integram.

Ainda assim este caso do deputado Pardal Ribeiro do CHEGA - deputado municipal mas também integrante da candidatura à Assembleia da República - é politicamente avassalador. Nada tenho contra a prostituição. Desde que o prostituído seja dotado de total livre-arbítrio - e nisso incluo que não o faça constrangido por míseras condições de vida e falta de expectativas. Quanto à clientela, enfim... julgo uma tristeza, entre a desgraça pessoal e a extrema falta de tino haverá uma infinitude de motivos para levar alguém a pagar para ter sexo. Mas não é no caso pessoal que me centro - apesar do meu (malvado, confesso-o) sorriso, pois ver um ex-presidente da Associação Nacional de Toureiros nestes patéticos maus lençóis recorda-me o que sempre achei da estética da "Festa Brava", pois aqueles ademanes, roupas justas e berloques parecem-me, desde a juventude, uma coisa muito ... a la Rocky Horror Show, para não dizer outra coisa.

Mas ainda assim é impossível não convocar como o CHEGA cresceu, no vozear de falsidades, de exageros, de verdadeiros maldades dizendo malvados todos os outros, invectivando-os, invectivando-nos, como ladrões, corruptos, criminosos, imorais, até doentes. Ou, pelo menos, como acéfalos complacentes. E por isso Ventura e sua trupe tanto gritam contra ciganos, defensores da homossexualidade, muçulmanos, imigrantes, etc. E contra todos aqueles que tenham tendências ou ideias diversas dos que "os de Ventura" têm. Expulsar uns, prender outros, castrar aqueloutros, clamam.

E se esses discursos não são "aquilo que é preciso dizer", como tantos se deixam encantar, ainda menos o são quando quem os grita é esta tropa fandanga. Agora demonstrada à evidência por um mariola que rouba malas e vende os seus conteúdos por via postal através do parlamento, outro que sai a fazer felações a um miúdo de 15 anos em troca de 20 euros! O CHEGA, Ventura, Mithá Ribeiro e quejandos, são isto. Um bando de energúmenos que bolçam javardices e falsidades. E que  convocam para junto de si tudo o que venha à rede, queira "aparecer", "trepar"... Aquilo não é um partido, é um escarrador. 

A ver se os compatriotas - zangados, por razões que serão legítimas - entendem isso. E "castram" estas venturices.

04
Fev25

O ideário de Musk

jpt

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Quando Musk levantou o braço na festa da investidura de Trump, resmunguei que aquilo era mesmo um eco nazi. Muitos disseram que não (que seria apenas uma excitação, talvez fruto de um tal de "autismo" de que padece). Até um director de jornal veio opinar nesse sentido. Pois, a mim, com diferente biografia das desses cosmopolitas, pareceu-me que esse cinquentão emigrante africânder regurgitou ali - talvez inconscientemente - a influência do ideário do velho Terre'Blanche, esse símbolo de alguma África do Sul afrikaans, viçoso na juventude do agora multibilionário...
 
Hoje, e a propósito das investidas de Trump e Musk contra a governação da África do Sul (sobre a qual também haverá muito a dizer, mas isso é outro assunto), apanho este recente artigo do "Guardian". Para quem quiser ver os elos d'Elon Musk ao nazi-fascismo boer bastará ler o bom artigo...
 
(E, já agora, se alguém tiver os contactos, envie, sff, a ligação do artigo às redacções dos nossos ilustrados jornais).

03
Fev25

Cena nada bíblica na Zambézia

jpt

Judith_Beheading_Holofernes-Caravaggio_(c.1598-9).

Caravaggio pintou assim a bíblica decapitação de Holofernes, um fundamentalista religioso (diríamo-lo assim, hoje), um brutal iconoclasta ou idólatra, consoante os pontos de tomada de vista.
 
Após um belo fim-de-semana - que aqui narrei com detalhe -, leio a habitual enxurrada de mensagens vindas de Moçambique. Entre as quais continuo a receber filmes da recente visita do novo Presidente Chapo à Zambézia. São denotativas. Pois o partido Frelimo, para além do seu próprio aparelho, sempre usou o administração pública para mobilizar a população no acolhimento às autoridades nacionais - feriados, convocatórias aos funcionários, distribuição de benesses (roupa, comida...). Ainda assim agora - e na recepção a um novo presidente!!! - ninguém aparece. As imagens são explícitas: planos fechados, centrados em Chapo e em pequeníssimos grupos folclóricos arregimentados, grupos de militantes que não ultrapassam a dúzia de membros. É absolutamente inédito. E, simultaneamente, continuam a circular vários filmes com os monstruosos banhos de multidão que Mondlane obteve na digressão da semana passada. Tudo isto cria a sensação de uma irrealidade, quase como se peça dramatúrgica debruçada sobre uma medieval dissolução do poder, obrigatoriamente terminada em tragédia.
 
Mas não há qualquer irrealidade. Há uma real aproximação ao abismo. Isso é não só ilustrado como também gritado por uma série de filmes que recebo, mostrando detalhadamente um episódio deste último sábado. Em Morrumbala (capital distrital na Zambézia que Chapo visitou), em plena vila, a população decapitou um polícia ou miliciano, dito como autor de vários assassinatos políticos. O corpo jaz no meio da rua, a cabeça foi levado para um entroncamento central para que todos vejam. Consta que a polícia debandou.
 
As imagens mostram uma violência extrema. "Bíblica", se se quiser invocar o Antigo Testamento. Mas "contemporânea" se se quiser olhar para o mundo circundante. E será importante que estes novos políticos, que tanto parecem rezar, percebam que as rezas em excesso e a razão em falta tem sempre o mesmo resultado.

02
Fev25

De Setúbal à Graça

jpt

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Foi um sábado cheio. Dado o gentil convite que a Lígia Águas me fizera fui à biblioteca municipal de Setúbal "apresentar" o meu "Torna-Viagem". Para isso fui acompanhado por umas dúzias de amigos, os quais destemidamente cruzaram o Tejo. Começámos por visitar a bela exposição do Miguel Navas na Casa de Cultura. Depois enchemos uma ala no Adega do Zé, para um cultural almoço.
 

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Saciados os convivas avançou-se até à sessão - enchendo a sala, e nessa reencontrando amigas que não via há trinta anos, assim emocionando-me -, na qual a Patricia Portela fez o favor de me louvar e algo provocar. Eu defendi-me como pude, tentando em atrapalhada verve reclamar o que Nerval um dia disse (ainda que depois tenha escrito coisas bem diferentes): "Como são felizes, os ingleses, por poderem escrever e ler capítulos de observação desprovidos de qualquer mistura da invenção romanesca!".
 
Depois seguiu-se uma inusitada venda de livros, um verdadeiro frenesim comercial. Pois alguns amigos haviam-me ordenado "se vais apresentar o livro tens de levar exemplares...". Assim fiz, encomendando alguns e transportando-os para o efeito. Após isso houve fragmentação da mole, alguns avançaram aos seus destinos, outros derivaram para jantarada na capital do choco. Eu e alguns outros refugiámo-nos num simpático pequeno largo entre a Luísa Todi e a Bocage, bebeu-se algo acompanhado de tremoços. Nesse entretanto um dos convivas, sorridente, disse-me "fizeste bem em pontapear a exposição sobre o colonialismo, estão a remendar aquilo" (irados resmungos que eu fiz há alguns meses) - decerto que os erros factuais, que da anacrónica sanha nunca se expurgarão. Ri-me com isso...
 
Regressei à capital, indo a jantar de sexagésimo aniversário de amiga, ocorrido no para mim desconhecido "A'Paranza", aos Anjos, um simpático restaurante mas... italiano. Era um universo mais "académico", face ao qual me recolhi, restringindo-me a fugaz investida contra a referida "anacrónica sanha decolonial", tendo obtido a rendição total sobre o assunto. Em dia festivo para mim (e não só) logo abdiquei do "sem quartel" oratório, sempre exigível nessa matéria, e retirei-me junto ao pequeno bar onde me dediquei a ensinar aos - simpaticíssimos - italianos da casa os diferentes conteúdos semânticos dos termos "saideira" e "abaladiça". Mais tarde fui recompensado com grapa(s)... Quando os comensais terminaram o longo repasto (vi passar inúmeras iguarias ... italianas) acompanhei uma amiga - que já vinha da passeata sadina - até sua casa, à Graça (um cavalheiro nunca deixa uma senhora sozinha calcorreando as noites dos bairros populares).
  
Cumprida a nobre função, ajoujado pela mochila com os remanescentes exemplares do "Torna-Viagem", esses que não havia conseguido impingir, lá pelas 2 da manhã, constatei que não tomara o pequeno-almoço e que talvez fosse conveniente acomodar-me antes de dormir. Entrei numa tasca nos baixios daquele bairro. Comi uma "sande" de presunto (apesar da tensão alta que me importuna o destino), bebericando uma imperial e olhando o grupo de felizes universitários que ali se divertiam com placidez (e com um punhado de amigas lindíssimas, não apenas jovens), nisso despertando-se-me a nostalgia, pois mesa tão similar a tantas que vivi há décadas.
 

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De súbito apareceu o Zé Maria, amigo moçambicano agora músico residente no Secret Garden LX, não poderia haver melhor conclusão para um dia de "Torna-Viagem"... Aliás, poderia, bastaria para tal que não estivessem ele e seus amigos, bem chateados - pois a eles recusava o velhote tasqueiro servir as apetitosas sandes de presunto, as quais entretanto aviava aos meus patrícios... Pois é, é que "ele" há destas coisas, a gente-nós, "brrrancos", é que nem notamos.
 
Enfim, em suma, hoje acordado fiquei a olhar para o punhado de livros que me sobraram, "raisparta, que vou fazer disto?"... Mas não seja por isso, foi mesmo um belo sábado. Obrigado aos amigos excursionistas...
 
(Para quem se possa interessar: o meu "Torna-Viagem" só se encontra no portal da plataforma editorial Bookmundo, através desta ligação: https://publishpt.bookmundo.com/books/366121 )

01
Fev25

A Cultura Portuguesa

jpt

Lawrence.jpg

Fruto do surto de imigrantes e da desestruturação do serviços estatais de controlo fronteiriço - os anos de governação de Costa foram de pungente incompetência, e não só nesta matéria - mas também eco dessa problemática na Europa, grassa por cá uma atrapalhada discussão sobre a imigração. Os repugnantes fascistas alardeam, sem pudor e assertivos, a sua boçalidade. Os esquerdalhos bolçam, convictos, alimentando-os. Ali ao "Bloco Central" o secretário-geral do PS inflectiu agora um pouco o seu discurso, no rumo do bom senso, o que chocou muitos dos seus cúmplices. Mas logo os do PSD, em vez de acolherem essa via acusam-no de "eleitoralismo", mostrando-se epígonos da infecunda tralha que fez do PSD o PSD, restringidos não aos respectivos umbigos mas sim aos seus imundos prepúcios. É o estertor do regime, prisioneiro de gente capim.
 
Santos terá dito que aos imigrantes cumpre adaptarem-se à "cultura portuguesa". Logo à "esquerda" se insurgiram. Por exemplo, a socratista Ana Catarina Mendes - que foi deputada por Setúbal (pobre concelho), ministra e agora vai como eurodeputada - terá posto a mão na anca e dito que não sabia o que isso era. Uma jovem autarca bloquista, Escaja, foi a um desses programas ao laréu clamar que "a cultura portuguesa é uma merda". É notório que a nenhuma destes - e de vários outros - socratistas ou esquerdistas passa pela cabeça a simplérrima distinção entre "adaptar" e "adoptar". E isto nem lhes é demagogia, são mesmo apenas esta miséria! E entretanto, presumo que lá para outras bandas, os mithás ribeiros deste rincão preparem romarias à espada de Afonso Henriques, entoando "São Jorge", para comprovarem a existência da tal "cultura" daquela que dizem "Nação", para sublinharem o seu imbecil apreço pelo Estado Novo. Sem rebuço, estamos entregues aos bípedes...
 
O que é estranho é que há não muito tempo no país esse assunto era muito abordado. Eduardo Lourenço disse qualquer coisa como "temos um excesso de identidade" (escrevo de cor, não consultando livros), e ele próprio - no seu elíptico ensaísmo - discorreu sobre isso, a equação cultura/identidade, Alfredo Margarido deu curta mas decisiva canelada nas asneiras do senso comum, João Leal mostrou-nos os rumos intelectuais dos seus construtores, Carlos Leone também, as pessoas entusiasmaram-se e compraram milhares (e louvaram) de exemplares do vácuo "Portugal, o medo de existir" de José Gil, alguns sociólogos e antropólogos escreveram sobre as mundividências rurais e suas transições para o urbano. Talvez XXI não tenha trazido muito de novo sobre isso, não sei, não é o meu ofício nem meu interesse crucial, não leio nem procuro mais sobre o assunto.
 
Mas quando o espaço público se enche de atoardas sobre uma putativamente inexistente "cultura nacional" muito lamento a inexistência de "intelectuais públicos" antropólogos - se não falam agora falarão quando? - que apartem os sentidos de "cultura", e ensinem (é o termo) a operacionalizá-los e, mais do que tudo, a entender o que é uma fluidez estruturante. Até porque nos arriscamos não só ao predomínio desta incúria intelectual como ao alardear da superficialidade convencida - há algum tempo caí do sofá quando vi o ar erudito de Paulo Portas a recomendar na tv o "O Crisântemo e a Espada" (1946) de Ruth Benedict, como se fosse a porta para entender o Japão actual, a sua "cultura nacional", uma coisa pungente independentemente da magnitude da autora, mulher do seu tempo, intelectual do seu tempo, livro do seu tempo... Pois não há mesmo antropólogos "intelectuais públicos" portugueses - o único que o poderia ser, dotado da densidade e gravitas para isso, legitimamente isentou-se do rumo, calcorreia a sua via. Estamos assim, e repito-me, entregues aos bípedes...
 
É fim do mês, estico os restos do rancho. Almocei massa com atum, este refogado com malaguetas. Ao tabuleiro, diante da televisão. Liguei para o Filmin, recomendável canal-cinemateca e de barata subscrição. Comecei o Lawrence da Arábia, que não vejo há mais de uma década. "Só o começo", prometi-me, no afã de regressar às minhas gratuitas inutilidades. Mas o filme é grandioso, e maravilhosa a subtil explicitude de O'Toole, fui-me deixando ficar, (re)descobrindo tudo aquilo, encantado. Dei comigo a dizer-me "que pobres, coitados, são os admiradores do Tarantino"...
 
E depois, um bom bocado depois, exultei. Parei e tirei esta fotografia, pois ali está a súmula de tudo isto. O'Toole e Omar Sharif atravessam uma terrível rota do deserto, um dos soldados de Sharif caiu do camelo durante a noite, o seu chefe recusa-se a recuar para o salvar, no fatalismo do que aquele era seu destino ("estava escrito"). O'Toole (Lawrence) insurge-se, vai sozinho salvar o "naufragado". Quando regressa, após inclemente travessia, Sharif, aliviado, passa-lhe o seu (precioso) cantil. E Lawrence (O'Toole) - essa peculiar figura do Império, do "Ocidente", retratado num filme típico mas passível de múltiplas leituras - responde-lhe "Nada está escrito", clamando, ainda ali trôpego, o primado da indeterminação, essa construção histórica e conflitual de uma civilização específica. Cultura.
 
E se eu tivesse a dimensão de um "intelectual público" faria deste fotograma a demonstração da mediocridade destes ignorantes demagogos. Mas sei que não o sou, sigo sapateiro sem rabecão. Por isso, acabrunhado, apago a televisão. Saio e vou beber uma cerveja com uma belíssima amiga, minha "mana". Depois tartamudeio comezinho com vizinhos. E sigo para tasquinhar um bom queijo com outra bela amiga. E com eles, mas muito mais com elas, afasto a tristeza de viver neste país de... bípedes. E de com estes, apesar deles, partilhar a "cultura portuguesa".
 
*****
 
AdendaQuando lamento a mudez da antropologia (disciplina onde abundam esganiçados "activistas" e um ou outro degenerado socratista) tenho razão. Vejo agora de manhã que o historiador Rui Ramos disse ontem no Observador o necessário (estou grato a quem me ofereceu o acesso ao artigo) - "ai, o Rui Ramos é de direita", guincharão em falsete vários daqueles a quem o Estado, pouco mas certo, paga para ensinar as novas gerações de intelectuais!... Ramos, que é um intelectual público, nisso criticável e legível, deixou o artigo aqui
 
Como é importante e o texto não é de acesso livre roubo extracto, longo: "Pedro Nuno Santos a reconhecer que a política de portas escancaradas à imigração do governo de António Costa estava errada. (...) Para os últimos abencerragens de uma esquerda woke que ontem se julgava o futuro e hoje descobre que é o passado, tudo isto é uma rendição à “extrema-direita”. Se é rendição, temos de reconhecer que os partidos de governo dos regimes ocidentais não cederam sem luta. Durante anos, fizeram da imigração descontrolada um tabu. Mencioná-la já era “racismo”. No fim, nenhuma censura bastou para calar sociedades desequilibradas pelo afluxo súbito, caótico e ilegal de milhões de estrangeiros.
 
As sociedades ocidentais foram sujeitas à mais extraordinária de todas as experiências. As necessidades de mão-de-obra barata são reais. Mas tentou-se satisfazê-las abolindo as fronteiras. Nações antigas viram-se sob a ameaça de serem reduzidas a uma espécie de aeroportos internacionais, por onde as pessoas passassem sem nada mais terem em comum do que o acatamento de certas regras. Mas o fundamento das democracias liberais ou do Estado social não é simplesmente a obediência à lei, mas a comunhão de valores a que chamamos “nação”. As nações não são dados naturais: são o resultado da história, de séculos de conflito e compromisso. Na sua origem, não está qualquer homogeneidade, mas uma pluralidade que, sem desaparecer, chegou a um sentimento de solidariedade e destino comum que faz pessoas muito diferentes identificarem-se entre si. É a nação que explica que possamos ser diversos sem cairmos sempre em guerras civis. É um património que subjaz a quase tudo o que é precioso no Ocidente: a liberdade, a igualdade, a coesão social, o pluralismo. É a isso que chamamos “segurança”, que não é apenas a contenção da criminalidade, mas o sentimento de estarmos em casa.
 
Nada disto tem a ver com a cor da pele, dos olhos ou dos cabelos ou com origens geográficas, nem com todas as religiões ou ideologias. É uma questão de valores comuns. O problema das migrações descontroladas não é só a chegada de pessoas que não partilham tais valores, mas a proposta woke, que pareceu dominar os regimes ocidentais, de que não deveríamos pedir nem esperar adesão ou sequer respeito por esses valores. Foi o projecto woke, inspirado pelo ódio da extrema-esquerda ao Ocidente, que acima de tudo criou insegurança. O resto são tremendas dificuldades logísticas, que agravaram a falta de habitação e o colapso dos serviços públicos. O caos migratório não é compatível com qualquer integração. Através da imigração nestas condições, aquilo que a oligarquia fez foi reconstituir a massa de trabalhadores pobres e pouco qualificados (...)".

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Bloguista

Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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