Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Nenhures

Nenhures

31
Jan23

O Benfica e a Ucrânia

jpt

Bandeira ucraniana acenada em meio à destruição provocada pela guerra

Acaba agora o Janeiro - incrível como isto voa... E se assim acaba o Janeiro seguir-se-á, dirão que teria dito o Senhor de La Palice, o Fevereiro. Por isso há hoje dois marcos: para quem se interessa pelo assunto encerra hoje o mercado de transferências futebolísticas; e neste próximo mês cumprir-se-á um ano da guerra russo-ucraniana (sim, como disse acima, o tempo voa...). Por isso volto atrás, a esse início de 22 e à que Moscovo julgou uma "guerra relâmpago", na crença putinista da adesão ucraniana aos libertadores russos - "contra o poder nazi e drogado" - e da emergência do silêncio fariseu europeu e da atrapalhação bidenesca, esta antes demonstrada em torno de Cabul.
 
Lembro esse início por cá, os russos saudados, implícita e explicitamente, pelos do "compromisso histórico", aquele entre os comunistas brejnevistas (os do "simpático" António Filipe, que se desdobrou em dislates russófilos) e dos enverhoxistas, maoístas, trotskistas, polpotistas e quejandos, em tempos agregados sob os velhos Louçã/Rosas/Fazenda e agora ditos "sociais-democratas" sob as "meninas" do Rosas. Todos esses neste putinismo agregados aos fascistas, ditos "soberanistas", esses do tipo Tanger, o dirigente do CHEGA em tempos tão peculiar nosso cônsul em Goa - "once a fascist always a fascist" poder-se-ia clamar se não tivéssemos dado o nome de um hitleriano ao aeroporto da capital...
 
 

 

20
Jan23

Benfica

jpt

6ad1b62c04b8c3e766371d2c37138728.jpg

A gente amadurece e percebe aquilo da real polítik... Sim, apesar de tudo é necessário comprar combustíveis aos russos de Putin. Por enquanto, tentando mudar as fontes - nisso enfrentando o mais possível a economia da Rússia de Putin, agressora imperialista.

Mas isso é algo incontornável. Agora um clube português andar agora a transaccionar licenças desportivas ("vender jogadores" na linguagem boçal corrente) com clubes de Moscovo? É uma vergonha, um ultraje! Como aceitam os associados e adeptos benfiquistas tamanho desplante? Que gente é esta gente, nossa vizinha? Desprovida de um mínimo de valores. Lede os meus lábios: trai-do-ra.

10
Ago22

A liberdade dos músicos

jpt

dina.jpg

Um dos males de envelhecer é a tralha poeirenta que se acumula no fedorento sótão a que chamamos memória. E é essa o grande motor daquela falta de paciência, a qual é, de facto, desprezo. Refiro isto a propósito da querela que por aqui vai, a reacção dos comunistas e seus "companheiros de estrada" (os "tímidos MDP/CDE"'s) às críticas feitas aos músicos que vão à festa do "Avante".
 
Por um lado bolçam asco por José Milhazes - replicam em 2022 a atitude para com todos os que abandonaram o comunismo, em particular se o tendo conhecido. De facto, desde o Chico da CUF e Cândida Ventura até Milhazes os dislates desta gente são iguais, sempre dizendo-os "vendidos". Dantes à Voz da América, à CIA, agora a outra entidade qualquer (Bilderberg, por exemplo, como clama o meu ex-co-bloguista jpn em postal que me conduz a este). Ou seja, para todos estes (comunistas e "amigos"), o facto de que um comunista tenha tido experiência de uma sociedade desse tipo e se torne adversário activo desse ideário só é explicável como traição mercenária. Se é um pensamento abjecto entre os comunistas ainda mais repugnante o é quando entre os tais "tímidos" "companheiros de estrada".
 
Por outro lado, há esta hipocrisia de clamarem serem as críticas aos músicos que insistem em associar-se àquele partido uma inaceitável forma persecutória, intimidatória, um verdadeiro ataque à democracia. Pois, diz este velho que tem memória, e nisso desprezando estes aldrabões, adeptos de ditaduras, eu lembro-me de como estes rijos comunistas e seus "tímidos" "amigos" vituperavam, achincalhavam, criticavam os músicos Paulo de Carvalho e Dina, por terem composto os hinos do PSD e do CDS.
 
Não se esqueceram disso, estão apenas numa estratégia típica, a da "amnésia organizada". E no seu afã de defenderem regimes horríveis não têm um pingo de vergonha. E, pior, saracoteiam-se como se fossem virtuosos.

08
Ago22

A Rússia

jpt

Pnin (1).jpg

Quase todo o hoje está previsto na literatura. Vladimir Nabokov, publicou Pnin em 1957 (edição portuguesa da Teorema, tradução de Telma Costa). Nesse universo de russos exilados (refugiados, dir-se-ia hoje) nos EUA,, fugidos aos bolcheviques 35 anos antes, deixou um vislumbre do que viemos a conhecer: "Só outro russo podia compreender a mistura reaccionária e sovietófila que apresentavam os pseudo-coloridos Komarov, para quem uma Rússia ideal consistiria em Exército Vermelho, um monarca ungido, herdades colectivas, antroposofia, Igreja Russa e Barragens Hidro-Eléctricas".

 

07
Ago22

A Festa do Avante

jpt

avante.jpg

Há dias José Milhazes criticou os artistas que irão actuar na Festa do Avante, nisso compactuando com o efectivo apoio que o PCP tem dado à invasão russa da Ucrânia. À esquerda -. e na extrema-direita, dado o actual "compromisso histórico" entre as sensibilidades ditatoriais - logo o criticaram, e mais surgiram os hipócritas clamando que se trata de um acontecimento cultural, como se que apolítico, abjecção mistificando as críticas como se fossem "um discurso de ódio", capitaneada pelo sempre tão elogiado António Filipe.

Nisso recordo as minhas sensações sobre os artistas (músicos e não só) que ao longo dos anos participaram na Festa do Avante. E replico o que sobre eles botei num postal de Agosto de 2015

O último festival de Verão a que fui foi a Festa de Avante, ali pelos meados dos 1980s, pouco após os meus exactos 20 anos. Fora lá desde o início, em 1976, pois o camarada Pimentel - apesar das suas suspeitas quando ao desvio de direita "eurocomunista" de Berlinguer, tal como o de Carrillo e, também, também ..., de Marchais -, acompanhara-me na FIL diante dos Area, os daquela hendrixiana "Internacional", e, no ano seguinte, deixara-me assistir a Eugenio Finardi, aí já ombreando com os míticos Fairport Convenction.

Naqueles tempos a Festa do Avante conjugava gerações, e nos anos seguintes a gente, já livre da tutela paternal, aterrava ali a beber durante três dias (e a fumar que se fartava, vá lá, que também era verdade), a "camaradar" entre nós e com os mais velhos dali, os camaradas mesmo, aqueles voluntários dos pavilhões regionais a rirem-se dos nossos efusivos "camarada" e nisso a serem camaradas, no servirem/ajudarem às cervejas e nos comes, estes mesmo para nos manterem em pé, e mesmo assim nós por vezes a desconseguirmos, que as noites seguiam já longas...

Nisso nós, e naqueles tempos tão diversos dos de agora, víamos pavilhões do mundo inteiro (o comunista, claro, ali propagandeado com tantas maravilhas) e do resto do país, nestes com os petiscos locais, jogava-se xadrez com os macro-grandes mestres soviéticos e ouviam-se inúmeros músicos de todos os lados, desde os desconhecidos, e alguns que músicos!!!, e os Dexys Midnight Runners (que concertão), aquele Chico Buarque (no apogeu!!, ainda que trémulo por questões lá dele, biográficas), o Manu Dibango (Manu Dibango em Lisboa naquele tempo? tão raro que me obrigou a voltar àquela Festa), o rock celta então em voga, proto-etnomusic essa que veio a ser dita world, o Ivan Lins provavelmente no melhor concerto da sua carreira (com a belíssima mulher de então, uma loura Lucinha a alumiar Lisboa), Jorge Pardo, o fantástico "corno" de Paco de Lucia, num pavilhão menor numa actuação inesquecível da qual nada recordo, Makeba sem eu saber quem era Makeba, o gigante Luis Gonzaga diante de uma audiência que não o sabia ouvir, Charlie Haden a enfrentar um público estupefacto e também Max Roach, e tantos outros, ali todos os anos polvilhados pelo discurso quase final do camarada secretário-geral, o grande Cunhal.

Foi mesmo isso, este, que me acabou ali. Pois, já cruzados os 20 anos, deu-me a azia, enorme, cansado de constatar que nenhum Sérgio Godinho, Carlos do Carmo ou Vitorino, sempre enfatuados - e ainda hoje assim seguem - com o slogan da liberdade na boca, como se dela fossem legitimados porta-vozes, dedicava alguma canção, pequena que fosse, àquele Sakharov então sob custódia, e das duras, que ninguém dos grupos de música popular ou mesmo do rock português havia lido Soljenítsin e ali o invocava, de que nem os Rão Kyao ou Telectu se lembravam do Solidariedade ou da Carta 77, que nenhum daqueles cantautores flausinos se lembrava da Albânia, de Angola, da Roménia quando cantarolavam em nome dos perseguidos na América Latina - então devastada por militares fascistas. E que o Ary dos Santos, poeta histriónico gritador de poemas diante de milhares, nunca lembrava os homossexuais perseguidos (e de que maneira) nos países que eles tanto promoviam.

Um dia - sei lá quando, mas já depois dos The Clash no Dramático de Cascais -, esperava por um qualquer grande nome, desses do concerto de encerramento após o comício do camarada Secretário-Geral, Cunhal ele mesmo, aquela apoteose ("cultural" dirão os de agora) final. E antes da arenga, tal como em todos os anos, lá se levantou a multidão a cantar o hino (sim, o bacoco "às armas") de punho direito erguido. E eu caí num "que faço eu aqui?!", qual Rimbaud entre os selvagens, ali na Ajuda, e concluí - repito, nos meus vinte anos, no início dos 1980s, bem antes da queda do Muro quando alguns descobriram que afinal..., décadas antes da internet, quando outros descobriram que afinal... - "nunca mais cá venho!" (sim, regressei, a ver o Manu Dibango, uma suspensão episódica dos princípios).

Pois aqueles gajos, mesmo aquela turba simpática, o povo d'aquém e além-Tejo, eram, e mesmo sem o saberem, pobre gente alienada (como dissera o tal Marx), e nisso o inimigo. Vil. Segui para outros concertos, paragens, convívios. Pois a "cultura" - e os arautos da "liberdade" - não moravam ali.

31
Jul22

Eça e a Rússia (2)

jpt

Eça_de_Queiroz_(Álbum_das_Glórias,_n.º_9,_Julh

Há tempos citei uma das crónicas de Londres, em que Eça de Queirós se mostrava clarividente a respeito da guerra entre Rússia e Turquia (1877-8). Vários outros trechos se poderão retirar dessas crónicas para sedimentar esse olhar pertinente sobre aquela actualidade,  tanto sobre a referida guerra - que o autor termina por sumarizar como a definitiva expulsão dos muçulmanos da Europa, encetada um milénio antes na Reconquista ibérica -, como sobre outros assuntos: desenvolvimentos tecnológicos, alguma reabilitação da sua querida França após a guerra franco-prussiana, a situação italiana e o papado, etc. Eça era um homem do seu tempo - como todos o são. Nunca foi um visionário, terá sido um jovem contestatário e depois veio sendo um desiludido, mesmo sarcástico, dissecador. 

O que me é aqui interessante foram as reacções de alguns comentadores - em blog e no facebook - àquele meu postal sobre Eça e a Rússia. Logo surgiram os defensores da actual política imperialista russa - essa amálgama de monárquicos ultramontanos ("miguelistas", por assim dizer); fascistas; "frentistas" de extracção comunista - a apontarem Eça de Queirós não só a sua desatenção pelo mundo de então como a sua mediocridade intelectual. É o habitual vitupério anacrónico a la carte... O qual está imenso na moda, como bem mostra este afã na "reescrita da História" que preenche a "nova" esquerda identitarista.

Enfim, foram esses dislates dos adeptos putinófilos que me apelaram a este postal, motivo para regressar ao delicioso "Álbum de Glórias", uma preciosa colecção de perfis da Lisboa de finais de XIX, com desenhos de Rafael Bordalo Pinheiro e textos de vários autores, especialmente de Guilherme Azevedo (João Rialto) e de Ramalho Ortigão (João Ribaixo). E assim aqui deixo o que sobre Eça - afinal tão medíocre, a crermos nos putinófilos de hoje - desenhou Bordalo Pinheiro e escreveu Guilherme Azevedo, seus contemporâneos:

"Quando ele, há alguns anos, soltou os primeiros vagidos nos folhetins da Gazeta de Portugal, houve antigos escritores cheios de introspecção que morreram de ataques apoplécticos! Eça de Queirós era um inspirado estranho que vinha, no concerto ameno da literatura familiar, tocar uma nota desusada e quase incompreensível para muitos espíritos educados no amor e melancolia.

Ele acabara de percorrer a Terra Santa, sentara-se a cismar no Jardim das Oliveiras, e desse jardim não trouxera simplesmente a crença que constitui o fundo único de tantas declarações românticas; do Jardim das Oliveiras arrancara uma pernada com que principiou a desancar a antiga retórica do país, destronando os velhos tropos e lançando os fundamentos daquele estilo fotográfico que é o seu grande poder e uma das suas grandes glórias.

No Oriente não viajara só. A memória de Chateaubriand acompanhara-o, e Leconte de Lisle e Charles Baudelaire, que eram então triunfadores, fizeram com ele o percurso da Terra Santa. Desta camaradagem estranha resultou a original feição que Eça de Queirós imprimiu nas figuras bíblicas tão nossas conhecidas e que então, pela primeira vez, se apresentavam diante de nós falando uma linguagem meio apocalíptica e meia humana, que estava muito longe de ser a linguagem oficial do velho cristianismo clássico. 

O destino fez dele em seguida administrador do concelho de Leiria. Assim como o Jordão lhe revelara a Antiguidade, o Lis revelara-lhe a realidade. O místico sublime morrera: principiava o autor do Crime do Padre Amaro (...). O vidente transformou-se num anatomista. Dentro da sociedade portuguesa existiam coisas de que alguns já teriam suspeitado mas que ninguém ainda trouxera claramente à superfície." (...)

E agora, século e meio, no afã de defenderem o indefensável, assomam os remanescentes desses patéticos românticos, hiper-reaccionários, no saudosismo da pretérita "Nação" que imaginam ter existido e/ou da épica "Revolução" pela qual anseiam, sebásticos, e brandem a "linguagem oficial" de hoje, esta do vil anacronismo punitivo. Eça ainda os incomoda. Que melhor elogio se pode dar a um legado literário e intelectual?

 

29
Jul22

Annie Leibovitz

jpt

bo.jpg

Quando a célebre - e engajada nas "causas" actuais - Annie Leibovitz fotografava Obama, e sua família, para a Vanity Fair (e para retratos oficiais) a "esquerda" europeia, encantada com a tez daquele bom aluno da escola de pregadores, não protestava. Nem com a fotógrafa, nem com o estilo, nem com o tipo de revista.
 
Não há dúvida, mais vale ser irlandês do que ucraniano...

13
Jul22

O Regresso das Ditaduras?

jpt

regresso.jpg

No Delito de Opinião o Pedro Correia questiona-se sobre os que indiferenciam democracias de ditaduras. Tal não se deve a um mau juízo ou a desconhecimento pois, por fluida que por vezes seja a distinção num ou outro caso real, essa indiferenciação é uma posição de princípio por parte daqueles que são adversários da democracia, os crentes das virtudes das ditaduras, e por estas ansiosos. Aquilo que por vezes pode acontecer é ficarem os amigos da democracia algo confundidos, desprovidos de argumentação diante da propaganda alheia e seus veementes ecos nos adeptos da autocracia. Isto porque os contextos ditatoriais não só têm conteúdos diferentes como estes se têm vindo a alterar. 

Nem que seja por isso, para aclarar algumas ideias que são mais pressentidas do que sistematizadas (falo por mim mas creio que não vou só nisso), é interessante ler este pequeno livro, "O Regresso das Ditaduras?" de António Costa Pinto, uma edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos, daquela tão simpática colecção pois segue ao custo de 3,15 euros por volume e se vende em pleno Pingo Doce - isto para além da(s) Feira(s) do Livro(s) se aproximar(em).

O livro já é uma breve (e acessível) súmula da literatura sobre o assunto, pelo que seria descabido fazer eu aqui uma súmula da súmula, mas ainda assim deixo como lamiré algumas ideias que lá colhi. O autor - que há quarenta anos foi meu professor de História Contemporânea e que julgo depois ter enveredado pelo rumo da ciência política - lembra que tem vindo a aumentar o número de Estados sob regimes ditatoriais, num refluxo da "terceira vaga de democratizações" cerca do fim do milénio. E constata que não só têm uma grande variedade institucional como se afirmou um modelo dominante, pois se [tra]"vestem como democracias" , surgindo como "regimes híbridos", "autoritarismos competitivos" - têm eleições multipartidárias e não têm censura rígida mas controlam a informação e manipulam os resultados eleitorais (p. 8). E encontra-lhes traços comuns: uma forte (e crescente) personalização do poder; uma vincada des-ideologização, comparativamente às ditaduras passadas (com particular contraposição face às comunistas e fascistas de XX) - ainda que convocando um nacionalismo e apelando à "ordem e progresso" como função dos regimes; a tal mimetização da parafernália institucional (parlamentos, eleições, "livre" imprensa, etc.) das democracias; uma menor repressão política face às do passado, de cariz mais cirúrgico e preventivo; uma censura de informação menos directiva, num "pluralismo limitado"; uma generalizada integração nos mecanismos de mercado como fundamento da ordem política (pp. 85-88). Mais ainda, recorda que estas ditaduras se vão estabelecendo muito mais pela erosão dos mecanismos democráticos do que por rupturas revolucionárias. Isto explica Costa Pinto em cerca de 80 páginas, num formato de livro de bolso. Justifica-se ler.

Deixo apenas uma adenda: o livro foi publicado em 2021. O seu autor é relativamente conhecido - não só como renomado académico mas também porque presença habitual na televisão. A edição é popular - barata, da Fundação ligada à marca Pingo Doce, de uma colecção que já faz parte do horizonte do público leitor. Ou seja, não é normal que livros destes sejam totalmente ignorados. Ora Costa Pinto recorre a vários exemplos de regimes autocráticos, pretéritos e actuais. Destes últimos na Europa fala da Bielorússia, da Turquia e da Hungria. Mas também recorre, e com insistência, à Rússia de Putin como exemplo da ditadura. Ora, é verdadeiramente surpreendente que um argumento destes num livro destinado ao grande público, de um autor conhecido, tenha passado incólume ao crivo crítico dos nossos generais Branco, Costa e Cunha, do activo ex-deputado António Filipe e do intelectual José Goulão, para não falar de outros do mesmo ramalhete. Distraídos estavam diante desta manobra, insidiosa, da propaganda capitalista...

04
Jul22

Eça e a Rússia

jpt

eça.jpg

Enquanto foi cônsul em Newcastle, Eça de Queirós escreveu estas "Crónicas de Londres" em 1877/8, 15 textos publicados no jornal A Actualidade, os quais vieram a ser coligidos em livro apenas aquando do centenário do seu nascimento (Editorial Aviz, 1944). E ainda bem que o foram. Não tanto pela sua ironia, cáustica até roçar o sarcasmo, e nisso eivada de moralismo, sobre as características da sociedade inglesa, as quais, como lhe foi muito comum, tomava como tiques. Mas muito mais pela forma como dali ecoava o mundo - e nisso muito a França de Mac-Mahon, e de Hugo, ainda que esta não seja aqui sombra tutelar -, assim informando o rincão, nisso deixando um olhar que aparece hoje imensamente contemporâneo. Nas reflexões sobre a influência da imprensa, a real e a então imaginada, mas também no entusiasmo pelas inovações tecnológicas que tanto a transformavam, sem com isso deixar de cutucar os desmandos informativos a que ia assistindo.

Nestes textos há uma enorme actualidade que sobreviveu na verve de então, agora ainda mais patente pela atenção analítica - ora em tons sarcásticos ora militantes - à guerra russo-turca que decorria, essa sequela da guerra da Crimeia de vinte anos antes, mais uma etapa dos anseios moscovitas de aceder ao Mediterrâneo. Embrenhado no debate britânico de então, entre os radicais pacifistas e os paladinos da intervenção em prol da Turquia, Eça deixou páginas esplêndidas. Entre elas escolho estes dois trechos- tão contemporâneos que de difícil digestão para muitos literatos de ardor russófilo, esses que por cá ainda abundam:

- 10 de Janeiro de 1878

"Onde estão os tempos saudosos em que cada telegrama nos trazia uma vitória turca? Onde estão êsses dias em que os correspondentes nos pintavam as cargas irresistíveis da infantaria otomana atroando os céus com o grito de Allah! Allah! e apavorizando divisões russas?

Onde estão os vitoriosos e os ghazis? Onde estão as lágrimas do Imperador da Rússia choradas nas noites de derrota? Onde estão as tardes alegres em que um coração liberal se regozijava, pensando que o Czar e o seu Govêrno autoritário, despótico, teocrático, semi-bárbaro, humilhado pelas derrotas na Bulgária, seria na Rússia feito em pedaços por uma revolução niilista? Ai, tudo nos passou! Hoje o que se nos diz, cada dia, é que mais uma fortaleza turca foi tomada, mais um regimento aprisionado, mais um passe dos Balcãs atravessado, mais uma enxadada cavada na sepultura da Turquia. O Czar não só não é destronado, mas é recebido em Sampetersburgo com um fanatismo tão alucinado, que pessoas deixam-se atropelar para se poderem prostrar, beijando-lhe as botas, tocar com a ponta dos dedos na sua espada santa! E são os ministros do Sultão, que dizem ao novo Parlamento em Constantinopla: Estamos perdidos, rendamo-nos!

É doloroso ver que esta guerra injusta tem como resultado fortificar, enfatuar, perpetuar um govêrno inimigo de tôda a liberdade, defensor de todo o despotismo, cuja justiça se chama Sibéria, cuja administração se chama Polónia, que tempera a liberdade dos jornais pelo assassinato dos jornalistas, que liberta os servos para melhor poder explorar pelos impostos, que condena um romancista ou um poeta a prisão perpétua, se o seu poema ou a sua novela desagradam à polícia, que expulsa todo o estrangeiro suspeito de liberalismo como se enxota um cão, que tem como sistema de govêrno a delação e a espionagem, que chicoteia as mulheres cujos maridos não convêm, que exila os maridos cujas mulheres convêm, e que civiliza as raças de civilização inferior - destruindo-as.

Eu não tenho certamente nenhuma simpatia pelo Sultão: uma tão rica porção de território europeu, como a Turquia, nas mãos de uma raça preguiçosa e asiàticamente passiva, é certamente uma perda para a civilização, é uma esterilização de fôrça produtiva; mas se o golpe ao Urso Branco, ao campeão da tirania, pudesse vir da Turquia - hurrah! pela Turquia! hurrah! pelo chino ou pelo mongol! hurrah! por qualquer povo negro ou nu, que pudesse libertar a Rússia, a Europa, a liberdade e o pensamento desta tenebrosa entidade, o Govêrno do Czar! (...) (183-185)

- 26 de Janeiro de 1878

"Um dos meus grandes ódios políticos é a Rússia; não o povo russo, que tem qualidades magníficas, mas o Govêrno russo, que não só exerce o despotismo em sua casa, mas que o defende, o auxilia e o promove nas casas alheias. (...) o grande paladino do absolutismo na Europa; em tôda a parte em que um movimento de liberdade se manifestava, ele corria a ajudar a sufocá-lo; todo o trono despótico e tirânico que uma revolução abalava, tinha-o ao seu lado como defensor oficial do despotismo. 

O actual Czar (...) tem apoiado com a sua influência, com os seus conselhos, com o seu dinheiro, tôdas as tentativas mais ou menos aventureiras que se têem feito contra o livre espírito da época: foi êle que mais embaraçou e contrariou o movimento liberal de 68 em Espanha; foi ele que deu o mais alto aplauso ao Ministério Broglie, de ominosa memória; foi dêle que D. Carlos, na sua criminosa guerra civil, recebeu as palavras mais animadoras; o seu desejo seria colocar o Conde de Chambord em França, D. Miguel em Portugal, restabelecer os Bourbons em Nápoles e restituir os ducados de Itália aos príncipes fanáticos e tiranetes. Isto, reunido à maneira como a Rússia é governada, tornam-no pouco simpático a todo o espírito liberal." (...) (201-202)

16
Jun22

A má fé comunista

jpt

safe_image.jpg

(Canal da Assembleia da República, Sessão de 15 de Junho de 2022)

Em 9 de Maio, dia da Europa, deixei aqui um postal sobre a extrema confluência relativamente à guerra ucraniana - na efectiva defesa da "Razão russa" - entre a "direita profunda" (dos fascistas aos soberanistas anti-europeístas) e a "esquerda comunista" (do PCP ao actual aglomerado dos velhos grupelhos). E ilustrei essa realidade recomendando uma colecção de proclamações russófilas do comentador televisivo General Cunha, explicitando ter ele então saudado "a libertação de Mariupol".
 
Esse era apenas mais um dos episódios (alguns dos quais aqui fui ecoando) do seguidismo ao discurso russo. O qual progressivamente se tornou apenas avulso entre o espectro BE, no qual se foi recuando no apoio à propaganda do Kremlin - desde a inicial defesa ao "espaço vital" da Rússia pela deputada Mortágua até à imediata proclamação da "encenação" de Bucha por um autarca lisboeta, foi sendo notória a progressiva atrapalhação daquela intelectualidade pequeno-burguesa e eurodependente. Mas seguidismo esse que, ao invés, se vem tornando cada vez mais crispado no PCP - o patético humor do ex-vice-presidente da Assembleia António Filipe, as posições oficiais do partido, a atrapalhação do seu líder, os inúmeros dislates de académicos comunistas nas redes sociais e na imprensa, são disso exemplos. Bem como a sanha dos meros militantes e simpatizantes contra os refugiados ucranianos.
 
Enfim, nesse 9 de Maio e a propósito desse meu postal, uma querida amiga - veterana simpatizante do PCP -deixou no meu mural de FB uma crítica viperina, acusando-me de "má fé". Por ter vindo de quem vinha o pontapé magoou-me. Ou melhor, irritou-me. Porque é mesmo factual o apoio (explícito e implícito) dos comunistas (no sentido plural do termo) portugueses ao imperialismo nacionalista (e de retórica teocrática) da plutocracia russa. Não há qualquer "má fé" nessa constatação. Como não tive "má fé" ao partilhar aqui os imediatos abaixo-assinados que congregaram as comunidades profissionais de antropólogos e de arquitectos/urbanistas russos contra a guerra. Ou ao partilhar o texto de um vasto e diferenciado conjunto intercontinental de intelectuais (entre os quais comunistas) crítico da invasão russa. Como não tive "má fé" ao ler as ameaças russas de intervenção militar a meia dúzia de países europeus, e agora a proposta de reversão da independência a (pelo menos) quatro países. Ou a propaganda da guerra nuclear na televisão estatal russa, com simulação em horário nobre da destruição das cidades europeias. Ou mesmo a proclamação televisiva de um fascista "Viva la muerte!", agora em russo, por uma publicista renomada do regime. E também não tenho "má fé" quando constato o silêncio total dos locutores desse nosso espectro comunista sobre essas aleivosias. Perigosíssimas aleivosias.
 
Enfim, para que não haja quaisquer dúvidas sobre esse seguidismo do PCP em relação ao discurso do poder russo, essa tal ditatorial plutocracia imperialista, veja-se este filme da sessão da Assembleia da República de ontem. Avance-se até aos 43 minutos, exactos: o deputado João Dias clama "Nunca estaremos ao lado de regimes nazi-fascistas", a isso reduzindo o regime ucraniano - decerto que no peculiar sentido da exigência da "complexidade" avessa ao "pensamento único" que alguns intelectuais comunistas vêm reclamando. Justiça seja feita ao deputado Dias, não aludiu à acusação de "drogados" que Putin proferiu sobre o poder ucraniano. Deve ser essa a única autonomia intelectual vigente na liderança comunista. A única "boa fé" que lhes resta. E aos seus apoiantes...
 
Uma adenda sobre "boa fé": se em vez de se avançar até aos 43 minutos deste filme alguém tenha curiosidade em esmiuçar o sentido de "boa fé" vá até aos... 42 minutos. Pois nesse minuto anterior o deputado Dias critica o partido a que se dirige devido ao estado muito problemático a que chegou o nosso SNS. Pode ser que os crentes na "boa fé" (e quem me vem imputar do inverso) se lembrem que nos últimos 27 anos o PS esteve no poder 21. Que o PSD/CDS estiveram 6, 4 dos quais espartilhados por um programa de recuperação económica. E que nos últimos 6 anos o PCP apoiou o governo PS, do qual constava a actual ministra da Saúde. Mas para Dias a responsabilidade do estado do SNS (os "constrangimentos", como dizem os jornalistas avençados pelo Partido Socialista) é da "direita".
 
Esses dois minutos de Dias no parlamento são esclarecedores do que é a "boa fé" comunista: esconder a realidade nacional. E seguir, quais rafeiros sarnentos, os ditâmes do capitalismo russo.
 
Não haja dúvida, face a este lixo e aos seus defensores eu tenho mesmo "má fé"! Ou, melhor, nenhuma "fé".

Bloguista

Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Contador

Em destaque no SAPO Blogs
pub