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Nenhures

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Há já mais de duas décadas, o fascista e racista (e até negacionista do Holocausto) Jean-Marie Le Pen clamava que não se revia numa selecção francesa então campeã do mundo de futebol, devido à abundante presença de jogadores de origem "ultramarina" - da África, sobre e subsaariana... "Africanos", não franceses, entenda-se.
 
O argumento foi absorvido pela "esquerda" americanófila, fiel à ideologia "comunitarista", essa do "identitarismo" por lá dito "Woke". E nesse eixo raci(ali)sta há alguns anos tornou-se "viral" (como se dizia antes do Covid-19) o vitupério do comediante sul-africano Trevor Noah - encarregue do Daily Show, espectáculo televisivo de militância do Partido Democrata americano -, também ele afirmando a primazia da excentricidade dos jogadores franceses de ascendência estrangeira que em 2018 se haviam sagrado campeões mundiais. Então contestado pela embaixada francesa em Washington, Noah viria a fazer um retórico ligeiro passo atrás quanto aos jogadores, mas embrulhando-o numa veemente crítica ao modelo social laico francês e elogio ao molde racialista americano (baseado no secularismo), seguindo exactamente as pisadas do miserável discurso do então presidente Obama após o atentado à Charlie Hebdo. As suas audiências, internas e estrangeiras, rejubilaram com essa sarcática negação da efectiva nacionalidade francesa dos praticantes de ascendência ultramarina (nem a Noah nem a Le Pen chocavam os Djorkaeffs ou Griezmanns, esses que de ascendências euroasiáticas).
 
E é interessante ver como agora em África, neste actual cume do entretenimento global que é o Mundial de futebol, se vai interpretando a equipa francesa. Principalmente hoje, quando ela se apresta a culminar a revalidação do título. Pois está amplamente disseminada esta visão raci(ali)sta: jogadores "negros"? São "africanos". Selecção com jogadores "negros"? Selecção "africana".
 
Enfim, o velho Le Pen (e decerto que também a sua filha, congénere e até conviva do nosso prof. Ventura) deve rir-se ao ver que se tornou global - e até com ajuda yankee -, num verdadeiro álbum "Le Pen en Afrique".

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Eu blogo há 19 anos (já nem mania é, será mesmo defeito). Em 2004 deixei este postal "Viva Figo" a propósito da campanha contra os "velhos e acabados" jogadores da selecção durante o Europeu feito em Portugal. Será excêntrico partilhar um texto tão antigo mas a semelhança com o que se passou agora é patente - na altura era Figo o grande alvo (ainda veio a fazer o extraordinário mundial de 2006). Também ele era acusado de ser "rico" e "mercenário" ("pesetero"), "imoral" (infiel aos clubes), auto-centrado... e velho.
 
Tal como agora os impropérios vinham das catacumbas digitais onde vegetam os opinadores anónimos, de clubismo ferino e vida desesperada. E também, mas com argumentos mais palavrosos, dos praticantes do sociologês moralistóide - no fundo apenas uma deriva do esquerdalhismo blasé, tão típico da pequena "lisboa".
 
Mas para além da semelhança do então acontecido com o que decorreu agora com o CR7 (até quase incrível, a mostrar o imobilismo cultural em que vamos), lembro este breve texto porque ele me serviu para perceber algo do meu país. Na época eu vivia há há bastantes anos em Moçambique, quase só blogava sobre aquele país e, de facto, já desconhecia o nosso ambiente nacional (acima de tudo lisboeta). A ele fui "regressando" via blogs, na verdadeira febre blogal que aconteceu desde 2003: os novos nomes opinadores que apareciam, tensões que eu desconhecia, ideias que iam brotando (era o início do BE, frenético na "rede", e a incubadora da IL, entre tantas outras coisas), novos escritores que esgaravatavam, velhas retóricas que resistiam (ainda não se usava "resiliência"), etc. - há poucos anos saiu um livro sobre a "blogosfera portuguesa", fraco mas com alguns dados... E nessa febre as pessoas liam muito os blogs (o meu ma-schamba chegou a ter médias diárias de 1200/1300 visitantes e era um blog pouco conhecido), e os autores interagiam imenso.
 
Ora blogava eu há escassos meses - e mais sobre as andanças em Moçambique, repito - e certo dia vejo que um tipo do BE, jornalista do DN (e que uma década depois, quando regressei a Portugal, evoluira para "investigador" do prestigiado ICS) me afixara como um dos 10 bloguistas de direita, emparalhendo-me a blogs "neonazis" e "neofascistas", assim mesmo titulados... Fiquei estupefacto, irado e, confesso, incomodado, até imaginando alguém a telefonar para onde eu leccionava: "então, vocês têm aí um professor tuga que é nazi?" - entretanto o energúmeno apareceu a justificar-se e ficou muito ofendido quando eu lhe explicitei a minha total crença na comercialização dos favores sexuais da sua mãe...
 
Passados poucos meses escrevi este breve "Viva Figo!", irritado com os disparates futeboleiros que ia lendo. E apareceu um outro tipo, este do PS - sempre publicando loas aos dirigentes do seu partido, publicitando os seus (dele) pergaminhos de oposição ao "Estado Novo", e as suas dadivosas acções na instalação da "democracia", veemente militância digital que viria a prosseguir, integrando também aqueles blogs colectivos de propaganda do PS de Sócrates. Ora acontece que o sacaninha não gostava do Figo... E como tal escreveu, publicamente claro, que eu deveria ser despedido, que devido a este texto não tinha competências intelectuais e morais para leccionar. Paradigma da democracia PS, facção ex-MES (naquele caso).
 
Estendi-me em memórias. Mas para deixar isto aos que têm paciência para ler: não é só a mundividência raivosa (a "cultura") que se mantém, avessa ao sucesso de alguns. É este ambiente, o então proto-"cancel", que já existia e que através destes pequenos episódios fui apreendendo, o qual agora apenas adquiriu nome "americano",, típico de uma aparente "esquerda". Que vigora em muito mais sítios, e mais importantes, do que nos blogs.
 
Enfim, deixo o texto (de 2004) - tem um palavrão no fim mas vem incluído numa frase popular que cito. Pois
 

******

VIVA FIGO

Irritou-se Luís Figo com as críticas que a ele e a outros dos "mais velhos" são feitas. [artigo abaixo transcrito]

Não gosto da forma, mas concordo em absoluto com o que disse. Nem discuto se deve ou não ser titular (Deve!!!!). Mas irrita-me, enoja-me, essa gente cuja forma de amar os seus ídolos é esgravatar-lhe os pés gritando ser barro o que boa e sofrida carne é.

Mole mesquinha, frustrada. Onanista de alma. Que tanto gozam o sucesso dos seus como se comprazem no seu falhanço, este o bálsamo para a inveja que logo têm de qualquer vizinho que suba um bocadinho para lá da taberna do bairro.

Figo foi há anos para Barcelona. Juntou ao grande talento um grande trabalho. Alma ou raça, chamam a isso. Por lá assumiram o profissional como um deles, reconhecendo-o. Quando ele que era o melhor quis ser pago como os melhores negaram-se. Porque tinham determinado que "ele era um deles". Cumprindo o contrato foi embora, para onde pagam ao profissional como a um dos melhores, que o é. Mercenário, "pesetero" chamaram-lhe os antigos patrões.

Ele explicou, é um português, o seu clube é o Sporting, foi apenas profissional (como sempre o foi, e bem), chamar-lhe ali "traidor" é um contra-senso. Não só porque o futebol é negócio. Mas porque ele não traiu ninguém. Mudou de patrão. A fidelidade que lhe exigiam só em Lisboa o poderiam ter pedido. E ainda assim...

Qual a reacção do tuga de merda? Engrandece-se com estas declarações, num "assim sim"? Não, resmunga-lhe o êxito que ele próprio não tem na vida, a Mariazinha a infernizar-lhe a vida em casa, ou o Sr. Santos lá no emprego. Assume-se ele próprio catalão, chama-lhe pesetero, chama-lhe traidor. Porque todo o Figo lhe dá a alegria do triunfo de um dos seus e a tristeza, horrível, do espelho da sua mediocridade.

E agora dizem-no "prima-dona", "acabado". Mas não se lembram da estrela, milionária, carregada de triunfos, a rojar-se no chão lá na anarquia da Coreia, lesionado a correr atrás da bola como mais ninguém? O que mais queria ganhar, ele que tão mais tinha ganho do que todos os outros. "Prima-dona"?

Resmungam-lhe os patrícios a inveja que sempre tiveram a todos os campeões. Nem à Rosa Mota perdoavam, despejando diante do marido-treinador. A salvo dessa má-língua apenas o gigante Agostinho. Ainda que se rissem da bicicleta no portão da maison. Mas perdoavam porque ele nunca mais acabava, quarentão sem fraquejar, e depois morreu. E porque tão simples, tão simples, que o julgavam ainda como no princípio, ainda o simplório de brejenjas.

Que isto todos os que sobem acima do seu lugar têm defeito, a cada um como cada qual, tugazinho conservador, tugazinha invejoso, tugazinho "tudo como Deus manda", a ordem natural das coisas.

Viva Figo!!!

E espero, e exijo, que dentro de alguns anos, quando ele quiser, já mais velho, mais lento, mais cansado e magoado de todas as porradas, regresse ao Sporting para terminar a carreira. E que todos nem discutem, libertem logo o nº 7. Para ele. Porque o futebol é ele.

E que eu esteja lá com a Carolina. E com mais alguém se brotar. Para lhes mostrar que há gente. De talento e trabalho. Livre, por isso.

E nesses dias, lá na bola, lhe(s) ensinar o que há de mais precioso: o que desde que se vá em pé "Que se Foda a Taça!!"

Viva Figo!!

***

Portugal joga amanhã contra a Espanha. Luís Figo pede mais respeito pelos "históricos", "Público", 19 Junho 2004 

Luís Figo pediu hoje respeito pelos jogadores mais antigos da selecção portuguesa, na véspera do jogo decisivo contra a Espanha, que Portugal precisa de vencer para chegar aos quartos-de-final do Euro 2004. "Não tenho razão de queixa de ninguém, pois cada um pode opinar sobre o que bem entender, mas não admito que pessoas de outras actividades não tenham respeito para comigo, pois eu também não opino sobre agricultura, pescas ou cinema", afirmou o jogador do Real Madrid. "Tento estar um pouco à margem, mas às vezes certas coisas fartam um pouco. Somos ser humanos e queremos algum respeito, eu e vários companheiros que estão há mais tempo na selecção", explicou Figo.

O médio português não estranhou as provocações que vieram de Espanha: "Não me surpreende que isto aconteça, pois é normal em jogos importantes, que podem decidir-se em pequenos pormenores. Estão a tentar desestabilizar e desconcentrar. Há coisas vindas de Espanha e outras de Portugal que tentam criar conflitos entre nós, só temos é de ser fortes", enfatizou o número sete da selecção, que conta 106 internacionalizações "AA". Do primeiro para o segundo jogo Scolari procedeu a quatro alterações no onze e Figo ficou como único sobrevivente da "geração de ouro" do futebol português, que conquistou dois títulos mundiais de juniores em 1989 e 1991. "Em termos tácticos e técnicos não entro, pois não vou comentar as opções do treinador. Estou aqui para jogar e mais nada do que isso", disse. 

Quanto à entrada de Deco para o lugar de Rui Costa, Figo considerou que o médio do FC Porto "é sempre uma mais-valia para qualquer equipa, como são todos os elementos que não puderam actuar frente à Rússia." Já quanto as palavras de Scolari, que utilizou termos como "guerra" e jogo de "vida ou morte" para qualificar o encontro de amanhã frente à Espanha, Figo afirmou que se lhes está a tentar dar a conotação errada: "É apenas uma forma de expressar o grande significado do jogo, nada mais do que isso". A finalizar, Luís Figo sossegou os jornalistas espanhóis quanto à arbitragem de Anders Frisk diz: "Não têm de recear nada, pois nós não temos tanta força como pensam. Em termos gerais somos sempre prejudicados."

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(Postal no meu mural de Facebook)

1. O plano para ontem era assistir ao Portugal-Marrocos e ao França-Inglaterra. Logo adveio o infausto destino luso - algo imerecido, insisto, pois a equipa "das quinas" criou um punhado de hipóteses de golo ultrapassando o autocarro de Rabat, jogando muitíssimo melhor do que a vice-campeã mundial Croácia, a celebrada Bélgica e a mui convencida Espanha o haviam feito diante daquele antipático e infértil catenaccio berbere.

Acontecido o desastre pátrio foi patente o acabrunhamento da nossa pequena comunidade, sanguinolento neste vosso "amigo-FB" letrado e patente nos restantes presentes. Após o (longo) estupor inicial decidi ultrapassar a minha abissal vertigem suicidária através de trechos de uma bôla de carne (de Lamego) acompanhados de um tinto de Setúbal apresentado em vasilhame de cartão a 3 euros o litro, de marca esquecível e de sabor bem bebível. Fui nisso ombreado por uma das ali teleespectadoras, gentil o suficiente para aturar as algo engrandecidas memórias de vida aventurosa que fui então desfiando, nisso tentando esquecer o vazio existencial desde agora feito definitivo - o meu artificial "daqui a 4 anos há mais Mundial!" fora acolhido com evidente fastio, algo que li como uma ali generalizada descrença de que eu ainda por cá ande nessa época.

Nisso começou o conflito (de séculos) França-Inglaterra, o qual por todos foi ignorado, sem qualquer azedume pois apenas um desinteresse fruto do torpor desesperançado. "The Show Must Go On", pensámos - em réstias do recente apoio aos pupilos do cidadão Kane -, e refugiou-se o contingente num restaurante da planície vizinha, que tem os defeitos de parecer "Lisboa", em cardápio, confecção e ambiência "classe média" local. Lânguido, rebaixei-me a um hamburguer (com lâmina de queijo industrial) num pão - ao qual ali dão o patusco nome de caco, correspondente ao estado em que me sentia - acompanhado de mais um par de copos de vinho da região. E nesse longo entretanto, horas decorridas, fui ignorando a miríade de mensagens recebidas, algumas iradas (com o engenheiro Santos e avulsos jogadores), outras mesmo humorísticas. Para além das condolências recebidas de amigos moçambicanos, nas quais viria a detectar algum ligeiro e risonho sarcasmo, malévolo.

2. A alvorada de hoje recebeu-me nebulosa e chuvosa. Estou de viagem, cumpre-me percorrer cerca de 20 kms até à serra defronte ao mar, para almoço em casa amiga. Mas o pior já passou, percebo que encontrei em mim mesmo forças para enfrentar os anos vindouros mesmo sem a taça almejada no bojo. Será, é certo, uma vida triste. Mas é o fado, como antevi ontem.

3. Que retirei desta última experiência havida? Isto, o filho do jogador croata a percorrer o campo para saudar/animar o seu ídolo Neymar, este choroso após a derrota eliminadora. Em radical contraposição com o acontecido no mesmo dia, os energúmenos jogadores argentinos (encabeçados pelo benfiquista - tinha de ser - Otamendi) gozando os também devastados eliminados holandeses. E o ídolo Messi, insultando o derrotado adversário que esperava para o cumprimentar... Ocorre-me aquela piada que me contam há pouco: "o melhor negócio possível é comprar um argentino pelo preço que vale e vendê-lo pelo preço que ele julga valer!". Não, não é apenas a voluptuosa Miss que me faz torcer, com a diminuta energia que me restou, pela Croácia.

4. É geral - vê-se nos "memes", percebo-o no que leio entre os meus amigos austrais - a saudação aos bons "africanos" marroquinos, representantes dos "vencidos", de África, do "Mundo Árabe", reconquistadores do Al-Gharb, o pérfido "ocidente". Para além do meu incómodo com estas politiquices da bola, mas porque elas "fazem parte", respondo em dois fascículos: 1) "Poitiers" (ou "Tours") - sim, eu sei que a batalha é muito mitificada, e terá sido menos relevante militarmente do que diz a lenda, mas é um bom símbolo; 2) para os mais políticos pan-africanistas, com pitada de revanchismo até nisto da bola (e para os "decoloniais" que se comoveram com a bandeira palestiana nas mãos de um jogador marroquino após uma vitória), deixo apenas, e nisso com uma implícita citação do agora celebrizado José Milhazes, "Saara Ocidental". Ou seja, deixem-se de tretas...

5. Tenho as minhas ligações de FB apinhadas de postais de portugueses (e de partilhas de postais de jogadores internacionais) louvando o ídolo e grande campeão Cristiano Ronaldo. Ou seja, não exageremos, há muito ressabiamento por cá, entre doutores comentadores, jornalistas, painelistas e anónimos vis. Mas, de facto, nós-plebe adoramos o CR7!

Vou então ao almoço. Com uma garrafa de tinto de Palmela debaixo do braço.

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Muito se fala na imprensa e nas redes sociais sobre o final da participação portuguesa no Mundial-22 - até porque o seleccionador nacional Santos prometera o título. Pouco tenho a dizer, apenas lamento que Rui Patrício não tenha jogado - constato que não vejo isso referido, mas isso não me coarcta o gemido.

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[(Magnífico) Cartoon de Gargalo]

Tão falado tem sido o caso, verdadeiro drama nacional, que nem é necessário resumir os episódios que o vêm alimentando: é chegado o ocaso de Ronaldo, fenece irremediavelmente o maior atleta português, o mais célebre desportista mundial? Ou, de maneira mais chã e imediata, deve ele ser ainda titular nesta campanha do mundial de futebol? E, ainda mais, é ele ainda credor de algum apreço dos patrícios?

Grassa o azedume avesso ao CR7. O qual não nasceu agora - convém lembrar que ainda em 2013, já ia o homem basto titulado e na ombreira dos 30 anos, ainda era recebido por adeptos portugueses com provocações elogiando Messi. E quem ao longo aos tempos tenha lido jornais digitais bem terá visto constantes coros de invectivas patrícias contra ele (tal como contra Mourinho, um fenómeno similar). Saudando insucessos, anunciando-lhe a degenerescência, a queda iminente, apupando-lhe feitio pessoal e a família, jurando-lhe malfeitorias sexuais ou aventando práticas consideradas "desviantes". Muito disso terá tido uma origem linear, o clubismo: formado no Sporting ele foi mal-amado e, depois  - principalmente após um grandioso hat-trick na Suécia -, apenas pouco-amado por adeptos benfiquistas, monoteístas fanáticos sempre ciosos de garantirem o lugar supremo no panteão do King Eusébio, um pouco à imagem dos velhos (e já quase todos falecidos) sportinguistas irredentistas no clamor de que Peyroteo marcava mais golos do que Eusébio... Só que estes não tinham redes sociais nem jornais digitais para verter o fel.

Mas há uma outra razão, muito mais estrutural - cultural, se se quiser - para este azedume para com Cristiano Ronaldo, o qual agora irrompe de modo desbragado. É a sua personalidade, apupada como "egocêntrica". Nisso sendo considerada como desrespeitadora dos seus colegas de equipa e, por extensão, de todos nós, pois constitutivos da "equipa de todos nós", a sacralizada selecção nacional.  E tantos reclamam face à inexistência de "humildade" no atleta.

Isto é interessante, pois qualquer "campeão" tem de ser egocêntrico. Só se é campeão, mestre e sábio numa actividade, através de uma dedicação afectiva e intelectual extrema: o "nerd" da informática, o "grande-mestre" de xadrez, o enorme maestro clássico, o prolífico romancista, o pintor abrasivo, etc., são indivíduos que podem ser mais ou menos simpáticos mas são aquilo a que chamamos "aéreos", "distraídos", vão "na sua"... Seguem ensimesmados - o que não sinónimo de enclausurados -, egocentrados. Por maioria de razão segue isso num atleta de alta (altíssima) competição, não só uma vida dedicada a uma disciplina férrea como a uma rotina total. E em que o egocentramento não é apenas uma predisposição para o devaneio imaginativo (do excelso programador informático ou do poeta esconso) mas muito mais o desvelo pelo próprio corpo - nisso assim um Ego hipercorporizado, em que uma leve cárie, o simples quisto, o comichoso calo são prementes questões sobre si-mesmo e não ligeiros incómodos dos quais tantas vezes nós, vulgo, nos abstraímos imersos nos nossos afazeres e mundanidades, dadivosos até.

Ou seja, a "humildade" do (grande) atleta (e do grande artista, do grande criador) é para consigo mesmo, existe na fidelidade às rotinas que o potenciam e possibilitam, e a sua altivez é a descrença na necessidade dessa auto-disciplina. E o "egocentrismo" é a sua condição, sine qua non, de existência - essa existência que nós tanto ansiamos, louvamos e até cantamos, berramos e abraçamos nos momentos de gáudio.

Vejo agora constantes queixas sobre a tal arrogância desmedida do CR7, sempre comparada com a humildade (generosa) dos campeões anteriores, nossos ídolos. Mas isso é tudo falso, pois os anteriores grandes campeões tiveram processos similares, principalmente os surgidos no sempre difícil ocaso das carreiras: Luís Figo, também ele um dia eleito Melhor Futebolista do Mundo, também ele já super-estrela neste mundo globalizado, em pleno estádio português durante a orgia nacionalista do Euro-2004 zangou-se por ser substituído e fugiu para os balneários ("foi rezar à Virgem Maria", veio depois dizer o sabido Scolari, pondo àgua na fervura naquele ambiente...); Futre (eleito apenas o 2º melhor do Mundo) fez birras clamorosas no Atlético de Madrid; o agora falecido bi-bota, Fernando Gomes, protestava durante o Euro-84 estar a viver "o pior momento da carreira" por não ser titular e depois veio a entrar em conflito com o seu tão querido clube devido a ser considerado algo vetusto; António Oliveira (um génio do futebol) e Rui Jordão (outro) nem se falavam na mesma equipa, tamanho o choque de egos, para sofrimento dos sportinguistas. O Enorme Carlos Lopes, ainda que tendo sido uma criatura de Mário Moniz Pereira, teve com este profundos desaguisados após a vitória olímpica. Joaquim Agostinho, tão simbólico do povo, era uma personagem irada, e ficou célebre a birra que fez durante o Tour de France, parando durante uma etapa (dez minutos ou mais) deixando o pelotão ir embora, apenas porque não lhe deram uma Coca-Cola (o falecido Carlos Miranda contava essa e tantas outras histórias em magníficas crónicas no "A Bola"). Etc.

Enfim, os grandes campeões não podem ser "humildes" (no sentido vulgar do termo). Podem ser dadivosos, até filantropos (CR7 é-o), mas têm de ser egocentrados, extremamente ciosos de si mesmos e nisso absolutamente convictos. "Férreos" "como o aço"! E a todos custa envelhecer, pois acham que ainda têm dentro de si algo que os outros não vêem - como não viram ao longo de todos os seus trajectos. Caso contrário não são grandes campeões, serão atletas talentosos, até bem sucedidos. Mas não extra-ordinários (assim mesmo, com hífen, para sublinhar que não são pessoas normais).

Qual a razão de a tantos custar a aceitar estas características dos seus campeões - mesmo que tanto fruam dos seus sucessos, em particular os no "desporto-rei", actual paixão nacional? Porque esta gente, estes atletas, quase sempre "vem de baixo". Ou, alguns, agora, da "classe média remediada". E ascendem ao topo, o das disponibilidades económicas e ao topo das propriedades simbólicas (a visibilidade é a moeda desta vertente). Transcendem as "ordens" pré-estabelecidas, as da velha sociedade tradicional. Fazem-no com estrondo. E nisso descuram demonstrar o "respeitinho", aquele que "é muito bonito", face ao "que deve de ser", nesse entretanto retorcendo o chapéu entre mãos, servis diante do destino que os fez subir. Enquanto nós outros para aqui andamos, raisparta, nesta merda de vida...

Enfim, deve Cristiano Ronaldo jogar hoje? É evidente que a decisão compete ao seleccionador Fernando Santos. Sobre cujo trabalho já aqui opinei, sabiamente.

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