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(Pedro Bidarra, Azulejos Pretos, Guerra & Paz, 2020)
Publicado em finais de 2020 este "Azulejos Pretos" parece adequado a este covidoceno, pois a sua acção decorre confinada nuns sanitários - uma latrina com águas correntes, comummente dita sanita ou, em português aburguesado,"retrete" ainda que nada retirada pois metida dentro de casa, tema esse abordado pelo autor com notória pertinência mas alguma incompletude -, à excepção de breves passeios higiénicos à sala feita pista de dança de um longa e sempre-a-mesma festa. A qual vem decorrendo desde a descolonização sita nos Olivais e que ressoa agora num presumível centro da Lisboa algo finória, onde se meneiam aos sons mais ou menos em voga sucessivas gerações de convidados.
Apenas lamento que o livro tenha sido apresentado pelo próprio editor (também) como um "roman à clef " (a descodificar), e ainda dito por crítico como peça de escrita "gonzo", aquela onde autor e protagonista (quantas vezes narrador) se mesclam, coisa não tão rara pelo que talvez desnecessária referência. Pois, entre tantos outros, já Flaubert reclamava ser ele próprio a senhora Bovary, ainda que se diga, história talvez apócrifa mas "bem encontrada", ter ele, nas vascas da sua agonia, resmungado com a ira que lhe restava que a puta ficaria por cá enquanto ele se ia desta para uma pior... Lamento essas pistas de leitura pois temo que, devido a elas, muitos leitores tenham partido do conhecimento que terão do autor - um publicitário lisboeta afamado -, no intuito (se) reconhecerem entre o ror muitissimo mais vasto e espesso de afinal meros "símios" que naquele seu "colóquio" se agitam em poses culturais e vã verve.
As 170 páginas são um carrocel de abúlicos - ainda que alguns camuflados de histriónicos -, um vasto rol de falsos e veros homossexuais, bebés de mamas firmes e outras já avoengas, dealers, padres na moda, obesos, poetas e artistas variados, modelos, até influenciadores e quejandos. Todos visitam o protagonista, aboletado nos sanitários nos quais distribui com prodigalidade doses de cocaína, enquanto monologa consigo mesmo, com acertada e acerada verrina, sobre o triste estado das artes, letras e gentes circundantes. Poder-se-ia dizer que parte a loiça toda. Ou, talvez melhor, parte os azulejos todos. Não que se projecte o protagonista num qualquer pedestal de "crítico", intelectual ou coisa que o valha. Pois segue amarfanhado pela "decadência biográfica", angustiado na sua "tonsura santantoninha", consciente até que desliza para a "cara de parvo", pequenas degenerescências que são até suaves avatares da sua condição de "ferreiro deformado e manco", um pobre Hefesto de trazer por casa, tudo nisso prenunciando um final que só será oxímoro a quem acompanhou o livro como se ensaio moral fosse.
Os tais sanitários - de loiça, soalho e paredes negros - são-nos apresentados como uma nave espacial, a possível, que o protagonista elaborou para defender os restos da civilização, os "valores da urbanidade" através do exercício da "complexa mecânica da equidistância", tarefa que persegue com evidente frenesim, na sua constante disponibilidade para ofertar as por todos desejadas doses de cocaína, num fazer o bem sem olhar a quem, assim um exercício cristão e também civilizador. Mas (sacra) equidistância essa, como o comprovará o infausto final, que é impossibilitada pela fateixa nasal a que está obrigado, e que o consigna ao pântano nada oceânico deste todo vácuo, de poses e anseios.
Ou seja, não há saída. Nem possibilidades.
Azulejos Negros é um belo livro. Que todos estes símios deveriam ler.