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Há tempos citei uma das crónicas de Londres, em que Eça de Queirós se mostrava clarividente a respeito da guerra entre Rússia e Turquia (1877-8). Vários outros trechos se poderão retirar dessas crónicas para sedimentar esse olhar pertinente sobre aquela actualidade, tanto sobre a referida guerra - que o autor termina por sumarizar como a definitiva expulsão dos muçulmanos da Europa, encetada um milénio antes na Reconquista ibérica -, como sobre outros assuntos: desenvolvimentos tecnológicos, alguma reabilitação da sua querida França após a guerra franco-prussiana, a situação italiana e o papado, etc. Eça era um homem do seu tempo - como todos o são. Nunca foi um visionário, terá sido um jovem contestatário e depois veio sendo um desiludido, mesmo sarcástico, dissecador.
O que me é aqui interessante foram as reacções de alguns comentadores - em blog e no facebook - àquele meu postal sobre Eça e a Rússia. Logo surgiram os defensores da actual política imperialista russa - essa amálgama de monárquicos ultramontanos ("miguelistas", por assim dizer); fascistas; "frentistas" de extracção comunista - a apontarem Eça de Queirós não só a sua desatenção pelo mundo de então como a sua mediocridade intelectual. É o habitual vitupério anacrónico a la carte... O qual está imenso na moda, como bem mostra este afã na "reescrita da História" que preenche a "nova" esquerda identitarista.
Enfim, foram esses dislates dos adeptos putinófilos que me apelaram a este postal, motivo para regressar ao delicioso "Álbum de Glórias", uma preciosa colecção de perfis da Lisboa de finais de XIX, com desenhos de Rafael Bordalo Pinheiro e textos de vários autores, especialmente de Guilherme Azevedo (João Rialto) e de Ramalho Ortigão (João Ribaixo). E assim aqui deixo o que sobre Eça - afinal tão medíocre, a crermos nos putinófilos de hoje - desenhou Bordalo Pinheiro e escreveu Guilherme Azevedo, seus contemporâneos:
"Quando ele, há alguns anos, soltou os primeiros vagidos nos folhetins da Gazeta de Portugal, houve antigos escritores cheios de introspecção que morreram de ataques apoplécticos! Eça de Queirós era um inspirado estranho que vinha, no concerto ameno da literatura familiar, tocar uma nota desusada e quase incompreensível para muitos espíritos educados no amor e melancolia.
Ele acabara de percorrer a Terra Santa, sentara-se a cismar no Jardim das Oliveiras, e desse jardim não trouxera simplesmente a crença que constitui o fundo único de tantas declarações românticas; do Jardim das Oliveiras arrancara uma pernada com que principiou a desancar a antiga retórica do país, destronando os velhos tropos e lançando os fundamentos daquele estilo fotográfico que é o seu grande poder e uma das suas grandes glórias.
No Oriente não viajara só. A memória de Chateaubriand acompanhara-o, e Leconte de Lisle e Charles Baudelaire, que eram então triunfadores, fizeram com ele o percurso da Terra Santa. Desta camaradagem estranha resultou a original feição que Eça de Queirós imprimiu nas figuras bíblicas tão nossas conhecidas e que então, pela primeira vez, se apresentavam diante de nós falando uma linguagem meio apocalíptica e meia humana, que estava muito longe de ser a linguagem oficial do velho cristianismo clássico.
O destino fez dele em seguida administrador do concelho de Leiria. Assim como o Jordão lhe revelara a Antiguidade, o Lis revelara-lhe a realidade. O místico sublime morrera: principiava o autor do Crime do Padre Amaro (...). O vidente transformou-se num anatomista. Dentro da sociedade portuguesa existiam coisas de que alguns já teriam suspeitado mas que ninguém ainda trouxera claramente à superfície." (...)
E agora, século e meio, no afã de defenderem o indefensável, assomam os remanescentes desses patéticos românticos, hiper-reaccionários, no saudosismo da pretérita "Nação" que imaginam ter existido e/ou da épica "Revolução" pela qual anseiam, sebásticos, e brandem a "linguagem oficial" de hoje, esta do vil anacronismo punitivo. Eça ainda os incomoda. Que melhor elogio se pode dar a um legado literário e intelectual?
Madredeus - Haja O Que Houver
(Texto para o meu mural de facebook)
Repito-me, esta é a minha canção portuguesa. Sei que há quem desgoste - um querido amigo (esmurrou-me na festa dos meus 10 anos!, a tanto isto vai, tanto nos liga...), músico e produtor, dizia-me há dias que um grande autor português, para sempre embrenhado num até demencial cantoautorismo, há anos vociferava que os Madredeus eram "o Mateus Rosé da música". Belíssima invectiva, se calhar verdadeira. Mas que seja vivida deste modo: se assim é, que saborosa vinhaça! E insisto nisto da tão minha crença, até política, ainda que talvez não de outros - mesmo que agora lendo da reedição dos textos cruciais do MEC, daqueles "dos tempos" -, de ter sido o Ayres, discreto ele, o tipo fundamental da minha geração.
Escrevo este postal numa magnífica noite de Verão, após um jantar - bebericado - sob as árvores deste Algures com maravilhosos amigos, daqueles que escoram. Outros destes têm vindo a morrer, alguns seguem atrapalhados (abraço, camarada[s]), pois a nossa hora vem chegando, e resta-me a imensa amargura disso. E assim um homem, ainda para mais neste celibato pérpetuo que nada esconde, percebe que segue já com os pés para o forno.
Vem-me tudo isto à pele, às teclas - e se calhar em registo exagerado -, ao ler um texto, um tipo acerado e clarividente a dissecar - mesmo até ao osso - um já velho romance, sobrevalorizado, sobre a "descolonização", o "Retorno" de Dulce Cardoso. Um livro em registo algo "pitoresco", como pensei ao lê-lo há pouco tempo, en passant, sem qualquer canga biográfica - não sou "retornado", pouco conheço de Angola, pouco aquilo tudo me diz, e disse, de facto nada mais do que um argumento para um filme. Mas o cabrãozinho, assente no seu bem esgalhado texto, a este propósito decide alçar-se a uma qualquer peanha, e nisso pontapear a tralha dos seus 79 (eu um deles) "amigos-FB", que vitupera por falarem de "sentimentos e de experiências", nisso desprovidos de "pensamento próprio" - um universo que lhe serve de amostra para desmerecer o rincão, a Pátria Desamada.
Acontece que eu, um dos 79s, tenho um "pensamento próprio". Que não é "original", coisa dos da champions league. Mas é o meu, com tudo o que se limitado, trôpego, tem. O qual vai sob a tenaz do que a Senhora minha mãe me anunciou, ainda eu adolescente seguia: "o mais difícil da vida é aceitarmos a nossa mediocridade". Chame-se-lhe "mediania", se em dia de boa disposição. O que em nada me obriga ao silêncio, nem (me) estrafega o perorar. É condição, apenas isso. E não é um amigo do rebotalho socratista - como o é este atrevido - que me vem desvalorizar, condenar ao silêncio, ou mesmo avaliar...
Dito isto, assim neste meu mau humor ainda que no melhor dos meus ambientes: se me der o treco nos próximos tempos, inopinado? Façam tocar este "Haja o que houver" antes do forno, sinal de que este eu, apesar de tudo, tinha algum amor que queria dar, coisa dos "sentimentos e histórias vividas". Mas, para não ficarem com imperfeita memória minha, delicodoce até, se encontrarem o (julgo que) antropólogo Carlos Sousa Almeida digam-lhe: o Zé Teixeira foi-se! Mas antes disso mandou-o para o caralho. E também disse umas coisas sobre a sua mãe, mas não vale a pena lembrá-las.
Enquanto foi cônsul em Newcastle, Eça de Queirós escreveu estas "Crónicas de Londres" em 1877/8, 15 textos publicados no jornal A Actualidade, os quais vieram a ser coligidos em livro apenas aquando do centenário do seu nascimento (Editorial Aviz, 1944). E ainda bem que o foram. Não tanto pela sua ironia, cáustica até roçar o sarcasmo, e nisso eivada de moralismo, sobre as características da sociedade inglesa, as quais, como lhe foi muito comum, tomava como tiques. Mas muito mais pela forma como dali ecoava o mundo - e nisso muito a França de Mac-Mahon, e de Hugo, ainda que esta não seja aqui sombra tutelar -, assim informando o rincão, nisso deixando um olhar que aparece hoje imensamente contemporâneo. Nas reflexões sobre a influência da imprensa, a real e a então imaginada, mas também no entusiasmo pelas inovações tecnológicas que tanto a transformavam, sem com isso deixar de cutucar os desmandos informativos a que ia assistindo.
Nestes textos há uma enorme actualidade que sobreviveu na verve de então, agora ainda mais patente pela atenção analítica - ora em tons sarcásticos ora militantes - à guerra russo-turca que decorria, essa sequela da guerra da Crimeia de vinte anos antes, mais uma etapa dos anseios moscovitas de aceder ao Mediterrâneo. Embrenhado no debate britânico de então, entre os radicais pacifistas e os paladinos da intervenção em prol da Turquia, Eça deixou páginas esplêndidas. Entre elas escolho estes dois trechos- tão contemporâneos que de difícil digestão para muitos literatos de ardor russófilo, esses que por cá ainda abundam:
- 10 de Janeiro de 1878
"Onde estão os tempos saudosos em que cada telegrama nos trazia uma vitória turca? Onde estão êsses dias em que os correspondentes nos pintavam as cargas irresistíveis da infantaria otomana atroando os céus com o grito de Allah! Allah! e apavorizando divisões russas?
Onde estão os vitoriosos e os ghazis? Onde estão as lágrimas do Imperador da Rússia choradas nas noites de derrota? Onde estão as tardes alegres em que um coração liberal se regozijava, pensando que o Czar e o seu Govêrno autoritário, despótico, teocrático, semi-bárbaro, humilhado pelas derrotas na Bulgária, seria na Rússia feito em pedaços por uma revolução niilista? Ai, tudo nos passou! Hoje o que se nos diz, cada dia, é que mais uma fortaleza turca foi tomada, mais um regimento aprisionado, mais um passe dos Balcãs atravessado, mais uma enxadada cavada na sepultura da Turquia. O Czar não só não é destronado, mas é recebido em Sampetersburgo com um fanatismo tão alucinado, que pessoas deixam-se atropelar para se poderem prostrar, beijando-lhe as botas, tocar com a ponta dos dedos na sua espada santa! E são os ministros do Sultão, que dizem ao novo Parlamento em Constantinopla: Estamos perdidos, rendamo-nos!
É doloroso ver que esta guerra injusta tem como resultado fortificar, enfatuar, perpetuar um govêrno inimigo de tôda a liberdade, defensor de todo o despotismo, cuja justiça se chama Sibéria, cuja administração se chama Polónia, que tempera a liberdade dos jornais pelo assassinato dos jornalistas, que liberta os servos para melhor poder explorar pelos impostos, que condena um romancista ou um poeta a prisão perpétua, se o seu poema ou a sua novela desagradam à polícia, que expulsa todo o estrangeiro suspeito de liberalismo como se enxota um cão, que tem como sistema de govêrno a delação e a espionagem, que chicoteia as mulheres cujos maridos não convêm, que exila os maridos cujas mulheres convêm, e que civiliza as raças de civilização inferior - destruindo-as.
Eu não tenho certamente nenhuma simpatia pelo Sultão: uma tão rica porção de território europeu, como a Turquia, nas mãos de uma raça preguiçosa e asiàticamente passiva, é certamente uma perda para a civilização, é uma esterilização de fôrça produtiva; mas se o golpe ao Urso Branco, ao campeão da tirania, pudesse vir da Turquia - hurrah! pela Turquia! hurrah! pelo chino ou pelo mongol! hurrah! por qualquer povo negro ou nu, que pudesse libertar a Rússia, a Europa, a liberdade e o pensamento desta tenebrosa entidade, o Govêrno do Czar! (...) (183-185)
- 26 de Janeiro de 1878
"Um dos meus grandes ódios políticos é a Rússia; não o povo russo, que tem qualidades magníficas, mas o Govêrno russo, que não só exerce o despotismo em sua casa, mas que o defende, o auxilia e o promove nas casas alheias. (...) o grande paladino do absolutismo na Europa; em tôda a parte em que um movimento de liberdade se manifestava, ele corria a ajudar a sufocá-lo; todo o trono despótico e tirânico que uma revolução abalava, tinha-o ao seu lado como defensor oficial do despotismo.
O actual Czar (...) tem apoiado com a sua influência, com os seus conselhos, com o seu dinheiro, tôdas as tentativas mais ou menos aventureiras que se têem feito contra o livre espírito da época: foi êle que mais embaraçou e contrariou o movimento liberal de 68 em Espanha; foi ele que deu o mais alto aplauso ao Ministério Broglie, de ominosa memória; foi dêle que D. Carlos, na sua criminosa guerra civil, recebeu as palavras mais animadoras; o seu desejo seria colocar o Conde de Chambord em França, D. Miguel em Portugal, restabelecer os Bourbons em Nápoles e restituir os ducados de Itália aos príncipes fanáticos e tiranetes. Isto, reunido à maneira como a Rússia é governada, tornam-no pouco simpático a todo o espírito liberal." (...) (201-202)
(Patrícia Portela, Dias Úteis, Caminho, 2017)
Patrícia Portela tem uma ficção peculiar, que alguns críticos dizem inclassificável ou experimental. Para a leitura isso é uma facilidade. Pois quando o autor segue algo canónico, com tramas (quase) lineares e tom homogéneo, convoca a que se aceitem as suas intenções, mesmo que se lhe encontre outros sentidos aos textos. Mas se assim não é, então escancara as páginas para que sejam interpretadas, e até classificadas, à vontade dos fregueses, nós leitores. É bem o caso deste "Dias Úteis", uma aparente colectânea de contos, em 111 páginas ligadas pelo ritmo das jornadas de uma semana, mais intróito e epitáfio, tudo com a aparência de transpirar uma dieta metafórica. A mim pareceu-me algo diferente, um texto de Teologia Moral encadernado como romance. E reli-o agora, pois pareceu-me adequado para acalentar este Verão Segundo do Covidoceno.
No início afirma a universal subordinação humana a um Demiurgo - com ironia nomeado "Jogo"-, entidade ordenadora com desígnios insondáveis, encapotados por uma multiplicidade de leis e mandamentos de conjugação inexacta. Dele são os homens meros títeres, sempre vitimados pelas suas inesperadas acções moralmente abissais, as quais são apresentadas sob uma imagética telúrica, um "alçapão" móvel, verdadeira actualização do Hades clássico e do Inferno cristão. A trama decorre nessa espécie de vida, assim incompleta pois incompreensível e, como tal, desprovida de previsão racional.
A protagonista é Alice Winston Smith, presumível bastarda de uma indita ligação de Carroll e Orwell, à qual é diagnosticada uma doença de alteridade (ou seja, de identidade). Essa Smith, num dos seus avatares - num dos aparentes "contos" -, narra ter cumprido uma Odisseia, cruzando a actual Hélade Global em ritmo bem mais célere do que a homérica. O factor motriz dessa frenética epopeia fora um acelerado ciclo de dádivas e contra-dádivas - como logo o compreende qualquer leitor de Marcel Mauss.
Ora é esta a questão teológica central ao romance. Pois em nenhum momento esta Smith suspendeu o seu afã andarilho para cumprir o fundamental desse ciclo - factor para o qual nos avisou o mestre francês, ainda que muitos o tivessem incompreendido: o ofertar à(s) divindade(s). Ou seja, ela abstém-se de cultuar, segue egoísta na soberba de se restringir ao eterno ciclo de obrigações humanas, esse dar-receber-tornar a dar entre homens. Assim apenas se submete de modo automático - e portanto não agradecido, o que é o mais relevante - à aparente inconstância divina.
Será castigada por esse seu défice dadivoso: "Perco tudo o que me faltava (...) Desmembro-me como se fosse feita de papel" (p. 68) -, pois aprisionada pelo desamor e pela morte alheia. Mas mais do que a mera infelicidade neste "vale de lágrimas", a grande punição divina é a sua condenação ao imobilismo, até atávico. Isso explana-se no epitáfio clamando o vazio utópico, a impossibilidade do movimento, restringindo a acção humana a uma mimetização do existente sob a ditadura cronológica, do tempo que passa. Vazio esse ilustrado nesse episódio final, o do pintor de longa maturação que desenha o real, desprovido de qualquer capacidade deste constitutiva ("performativa", diriam os que se imaginam emanados do amplexo Ivy League/Russell Group).
Esta condenação ao imobilismo devida à postura increia de Smith é explanada em vários episódios. De facto, a referida Odisseia é-lhe apenas um anseio onírico. E tudo já "antes" (num "conto" colocado em páginas anteriores) fora explicado: planeara ela ir à Escócia cultuar os seus ancestrais, na companhia do seu amor (Ivo). Mas este abandonou-a pouco antes da viagem, num óbvio efeito do "alçapão" do tal "Jogo" - usando a terminologia do livro. Ora face a esta evidente provação de origem divina, Smith não teve suficiente vontade (fé, claro!) para sozinha cumprir essa necessidade moral, o culto dos ancestrais. E troca essa obrigatoriedade pela ambição de um placebo, inútil, o de conhecer a China - outras vestes da tal Odisseia -, mas que não cumprirá, terminando por se restringir a alugar vídeos de kung-fu, pois aprisionada a si mesma, inane, imóvel.
Todo esse individualismo egoísta da descrença é assim descrito (e por isso o convoco nesta Era Covidocena):
"Pois é, isto de ir à China tem muito que se lhe diga, e eu até só queria ir de férias, (...) é mesmo fundamental não escolher uma época errada para ir à China, um pessoa pode constipar-se, ou pior, apanhar uma pneumonia atípica, ou uma bronquite, e para além de tudo isto, todos me dizem que a melhor altura para ir à China é o outono, mas nessa altura eu não posso mesmo tirar férias, tenho sempre imenso trabalho, (...) para além disso ainda li numa revista especializada em viagens alternativas que é preciso ter atenção às pragas de insectos, que são muito frequentes na China, e é por essas e por outras que é conveniente tomar umas vacinas quatro a seis semanas antes da viagem, pelo menos a vacina contra a raiva e seguir a profilaxia contra a malária, que é mais importante mas também a que dá mais dores de cabeça, vómitos, diarreia, e se eu começo a tomar todas estas medicações um mês e meio antes e depois não consigo ir trabalhar vai ser um problema (...) e se me ponho a levar todas as outras vacinas que me faltam para ter tudo em dia e para estar prevenida como gosto sempre de estar em todas as ocasiões, ainda tenho de levar a vacina contra a cólera, a difteria, o tétano, a hepatite A, B, a japonesa, e ainda precaver-me contra a encefalite, a poliomelite, a gripe atípica,a gripe das aves, que já não está muito na moda, já não se fala muito dessa gripe mas foi lá que tudo começou, e nunca se deve acreditar só nos media, e ainda contra a rubéola que nunca tive, contra a meningite que já tem uma vacina, contra a febre-amarela e contra a febre aftosa, ninguém liga nenhuma a esta última, mas também é muito importante, e segundo os meus cálculos vou perder uma semana de trabalho só em folgas para conseguir lidar com tanta injecção, primeiro porque nunca se consegue marcar todas as consultas necessárias no mesmo sítio, cada uma é num laboratório de um hospital diferente da cidade, depois porque nunca se consegue marcar todas para o mesmo dia ou se até conseguimos marcar duas ou três no mesmo dia são sempre a horas diferentes, cada médico tem o seu calendário, e o pior de tudo é que tenho medo de agulhas, para além de ter uma tendência para fazer alergia a todo o tipo de medicamentos que tomo, seja por via oral ou cutânea, e é por isso que conto sempre com um ou dois dias para descansar e para ir à farmácia comprar os antibióticos que me prescrevem a seguir a qualquer consulta médica, ah, e por falar em farmácias, também não me posso esquecer de levar algo contra o herpes labial. E se isto fosse tudo, eu até acho que ainda ia à China este ano mas ainda há a questão do visto (...)" (59-61)
Enfim, é por tudo isto que encontro o livro como uma convocatória ao culto. Pois se a este formos renitentes Deus (ou qualquer outro nome que lhe dermos) condena-nos ao imobilismo, frustrante e infeliz.
(Alguns dirão que "contei a história", desfazendo a curiosidade de outros leitores. Mas num livro destes não me parece isso, pois é mesmo um objecto que cada um poderá apreender à sua maneira, dele se apropriar como lhe aprouver)
[Nota: Este postal integra uma série sobre os meus livros do covid].
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