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Nenhures

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30
Set22

A propósito da condenação de Seixas da Costa

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Seixas da Costa, à esquerda, e seu advogado no início do julgamento no Tribunal do Bolhão a 11 de março, fotografia de Artur Machado / Global Imagens

O antigo diplomata - e também bloguista - Francisco Seixas da Costa foi agora condenado por "difamação agravada" ao treinador de futebol Sérgio Conceição. É um tema interessante, que me toca bem de perto, o que me leva a este postal.  Em primeiro lugar, friso que nenhuma simpatia tenho pelo agora condenado: uma das minhas grandes amigas, hoje em dia já embaixadora, trabalhou sob a sua direcção e tece-lhe os maiores encómios, pessoais e profissionais. Mas não esqueço que ele foi um enérgico activista do socratismo, o que considero ser uma nódoa indelével na pessoa pública. Quanto ao queixoso, e por mais que me irritem os seus modos e, talvez acima de tudo, os seus sucessos, a minha costela futebolística impede-me de esquecer a enorme alegria que um dia ele me proporcionou, algo pelo qual ainda lhe estou reconhecido. Mas o que me convoca a atenção não é o que penso (ou sinto) sobre os intervenientes. É sobre o fundo da questão, e também sobre os trechos de retórica jurídica que os jornais ecoam. E pelo que me aviva a experiência própria.

Pelo que leio Seixas da Costa foi condenado por no Twitter ter chamado "javardo" a Conceição. Alguns pontos iniciais isso me levanta. Leio agora que o tribunal considera negativo que o tenha feito "não (...) durante um jogo no estádio; escreveu-a por trás de um computador, quando tinha tempo para refle[c]tir". Isto é uma extraordinária demonstração da superficialidade do pensamento dos juristas envolvidos (espero que isto não seja passível da instauração de um processo), pois significa que consideram menos gravoso o insulto público - em estádio - quantas vezes em interacção pessoal directa, e ainda mais vezes potencialmente indutor de comportamentos colectivos agressivos, verbais e até físicos, do que uma mera interjeição proferida na efectivamente vácua "nuvem" internética, desprovida de qualquer dimensão potencialmente causal. E sobre a efectiva inadmissibilidade das agressões verbais nos estádios de futebol botei eu neste meu postal "Viva o treinador adjunto de Sérgio Conceição": defendendo veementemente o treinador portista e sua equipa técnica e invectivando os "javardos" adeptos do meu Sporting. No qual disse, explicitamente, "não é legítimo (legal) ir a um local de trabalho insultar os trabalhadores. Como um campo de futebol." Parece que para os juristas do tribunal do Bolhão será...

Um segundo ponto sobre a retórica e o ponderar que foi exarado. O jornal cita "É diferente dizer que é grosseiro ou que é javardo. Podia ter dito tudo o que disse sem ter usado a expressão em causa. Aqui mostra-se a linha que não se deve ultrapassar.". Ora isto é inaceitável. Por mais que isto possa parecer adequado ao senso comum, o culto de um "bom gosto", de uma "boa educação", não é ao Estado - e ao seu sistema jurídico - que compete estipular as "fronteiras" da semântica adequada - e até um feroz estatista como o socialista Seixas da Costa concordará com isto.

Ou seja, nós podemos e até devemos ser sancionados se caluniarmos alguém, se errada ou malevolamente atribuirmos atitudes ou intenções a outrem. Mas estas reclamações jurídicas relativas a injúrias ou aquela nebulosa "difamação" são meras sobrevivências de outros tempos. Pois a proclamada "honra" (esse velho e reaccionário valor nobiliárquico) que a justiça afirma defender com estas condenações, não se coloca acima da fundamental liberdade de expressão, por formato mais deselegante que esta possa assumir - até porque, mas não só por isso, por vezes os termos mais "pesados", um léxico mais plebeu (lá está, a âncora sociológica das punições jurídicas) representam exactamente aquilo que sentimos ou pensamos. E por isso mesmo os acusados de "difamação" ou de "injúrias" que têm recursos económicos e paciência recorrem das sentenças que os vetustos tribunais portugueses exaram, vão de estrado em estrado endógeno e, depois, até Haia. E ganham. Claro que após anos a fio e, repito, de pesados encargos económicos e morais.

Esta notícia tocou-me pessoalmente pois há algum tempo fui alvo de um processo similar instaurado por um correligionário de Seixas da Costa. Ao tomar conhecimento do processo fiquei estupefacto. A minha advogada disse-me ali ter encontrado apenas "liberdade de expressão" mas logo me avisou ser evidente que eu iria ser acusado e condenado. E que poderia recorrer, processo que levaria anos em curso. Aconselhando-me a aceitar a culpabilidade. Assim, desprovido de recursos económicos para sustentar assistência jurídica e - confesso a custo - de coragem moral para enfrentar anos de embate jurídico, ainda por cima face a um dos próceres do regime socialista, anuí (lembro que com ridículas lágrimas de raiva nos olhos) a uma suspensão do processo, em troca de um pagamento, que foi ponderado em 200 euros a doar a uma instituição à escolha do tribunal.

A causa dessa punção que sofri foi este meu postal. Aceito, um texto algo desabrido, com termos ríspidos desnecessários - até porque significaram que "dei o flanco". Mas também por outra razão, pessoal - há alguns anos a minha filha, então ainda adolescente, coligou-se com a minha irmã, exigindo-me a depuração lexical no bloguismo, e disse-me com uma total pertinência: "ó pai, um cavalheiro não fala assim!". Haverá melhor argumento censor do que esta filial imagem do seu pai? É certo que há termos que ajudam a resumir o que pensamos, que bem substituem um parágrafo inteiro. E como me dizem palavroso - e ainda agora vizinhos me disseram isso a propósito de um texto sobre o café do bairro - muitas vezes tendo a socorrer-me dessa bengala sulfurosa. Mas convém utilizá-la com parcimónia e, acima de tudo, "cautela e caldos de galinha" enquanto a Justiça portuguesa não se actualizar. Ou seja, continuo a dizer que quem exerce funções governativas com impertinência, quem no parlamento confunde artistas com terroristas assassinos, e quem é solidário até à última instância com o problemático José Sócrates, não é agregável ao topo da hierarquia jurídica nacional. Mas, e repito-me mais uma vez (palavroso, dizem-me), face às concepções vigentes na Justiça nacional há que doirar a pílula verbal, evitar a tal adjectivação ácida.

Finalmente, e em suma, algo concordo com Seixas da Costa (malgré tout): às vezes pedir desculpas é demais. Chapeau...

Bloguista

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