20
Out24
A situação em Moçambique
jpt
Quando em 1994 cheguei em Moçambique os efeitos da guerra civil ainda eram muito visíveis, não só as destruições físicas (a estas ruínas de armamento pesado fotografei-as nas cercanias de Inhaminga, em 1999) como, e acima de tudo, uma tétrica, avassaladora pobreza rural. Marcou-me, para sempre...
Há meses conheci o namorado da minha filha, um jovem antropólogo inglês. Muito boa onda, é óbvio ser ele bem formado, ponderado (e bonito, ao que me disseram). Com uma curiosidade que nos é típica perguntou-me, sorridente durante o aperitivo ao almoço, naquele segundo ou terceiro dia de convívio, o que mais me impressionara nas duas décadas de Moçambique: arrastei um "âhhh". Depois disse-lhe, no meu broken english: "o que mais me impressionou? A morte, a dor, as doenças destratadas. A dor.". O mais-novo não esperaria, muito menos ali e assim, um resposta tão pouco exótica, arqueou as sobrancelhas, e até recuou a cabeça, e assim deixei-me abrir, pacificador, outra via num "também te posso falar das danças, das escarificações, até das praias...". "Não, não", respondeu, "eu percebo". "That's my man!", pensei (também em sossego paternal).
Trago estas memórias para me situar. Com essa minha experiência a última coisa que desejo para aquela minha "Não-Pátria Amada" é a eclosão de violência. Mas é essa experiência que me aparta de posicionamentos vindos da anacrónica topologia ideológica, seja algum revanchismo colono anti-Frelimo (agora muito minguado em Portugal, pois já escasseiam os "velhos colonos"), seja a paupérrima dicotomia "esquerda" (com a Frelimo) / "direita" (com a Renamo). Pois nada disso tem real sentido. Tal como não tem a também pobre dicotomia "ética", que tudo quer explicar ao vituperar a "corrupção" salvaguardando os aventados como "honestos".
Após trinta anos de eleições multipartidárias no país o sistema eleitoral não tem credibilidade. Como é tradição os países vizinhos apoiam explicitamente o regime instituído (há pouco foi notório o envolvimento pró-Frelimo de Ramaphosa). E os organismos internacionais continuam a sufragar o que vem acontecendo: agora a Commonwealth aprestou-se a considerar correctos os procedimentos. Mesmo depois da gigantesca fraude eleitoral do ano passado a CPLP enviou 21 (!!!!) observadores - num país daquele tamanho e com tantos problemas eleitorais enviar apenas 21 observadores é um absurdo. Entre os quais parlamentares de vários países - eu tenho experiência de observador eleitoral e um dos axiomas dessas missões é que os parlamentares estrangeiros, sempre ali a curto prazo, nunca observam, só passeiam. Servem para legitimar o acontecido.
Tudo isto, suportado pelo controlo das forças militares e paramilitares - entre os quais os propalados "esquadrões da morte", que vão actuando cirurgica mas continuadamente - serve para a reprodução do poder. O qual é despudorado.
Convirá que os meus patrícios (e outros) percebam até onde chega este despudor institucional: depois de na quarta-feira a polícia de Nampula ter aberto fogo com munição real sobre a comitiva do candidato Mondlane, anteontem foram assassinados em Maputo dois relevantes membros dessa candidatura presidencial. Um dos quais responsável pelo processo jurídico de impugnação dos resultados eleitorais (os quais são falsificados pelo aparelho estatal, sempre!). Ontem a Polícia (PRM) emitiu um comunicado deixando quase explícito que os assassinatos se deveram a questões .... passionais, coisa de zangas conjugais.
Como é que os parceiros podem aceitar este Estado como interlocutor? E como podemos nós aceitar a interlocução com os seus locutores, seus defensores explícitos ou implícitos? - e também por isso a minha irritação com o(s) escritor(es) em digressão por Portugal que, efectivamente, o defendem. (Já agora, veja-se a digna, corajosa e analítica posição tomada por Paulina Chiziane, para exemplo contrário).
O Paulo Dentinho lembrou que já em 1999 houvera desmandos eleitorais. E que ele fora ameaçado por não ter seguido o discurso oficial - foi-o, repetidamente. Uma das vezes estava sentado a meu lado e foi ameaçado de morte. No ano seguinte mais de 100 pessoas, presas por se manifestarem contra o governo, morreram asfixiadas numa cela em Montepuez - zona onde eu trabalhara durante meses, tive uma gigantesca comoção. Em Maputo decorria o congresso da Internacional Socialista, então liderada por António Guterres. Nada disseram esses socialistas! (Imagine-se se isso tivesse acontecido num país europeu!!!!).
Mas nessa época - e contra mim falo, mea maxima culpa - reconheciam-se verdadeiras virtudes desenvolvimentistas ao poder FRELIMO e em particular ao seu presidente, o grande estadista Chissano (do qual continuo admirador). Com todos os problemas, com todas as contradições, com todos os desmandos - não se constrói "do zero", desde o radical subdesenvolvimento, uma "economia de mercado", uma "sociedade capitalista", apenas com franciscanos -, o poder de Maputo tinha dimensões patrióticas, desenvolvimentistas. Não era apenas isso, mas tinha-as. Era um "mal menor" e permitia a esperança.
Mas durante este quarto de século o partido Frelimo, o Estado, o partido-Estado degeneraram, radicalmente. São outra "coisa". Tal como degenerou o grande partido oposicionista, Renamo. Hoje também desprovido de virtudes programáticas. Nada há a esperar destes partidos.
Convirá sumariar: Mondlane, que decerto terá limitações e defeitos - não há homens providenciais, tal como não há partidos/movimentos salvíficos -, apelou há dias para a constituição de um governo de "unidade nacional", cooptando assim sob si elementos de vários quadrantes partidários e não só. Apelou também a uma resistência pacífica e ordeira face à evidente falsificação eleitoral. E sofre estas ameaças físicas terríveis. Ele precisa (também) de apoio externo, político, emotivo. E, claro, se um dia chegar ao poder passará a ser - como todos os políticos em democracia o devem ser - criticável...
Aos meus patrícios (e não só...) que têm um ideário de "esquerda" (e não só...), e que são menos atreitos a críticas ao Frelimo, sempre suspeitas de serem "manobras" da "direita", do "neoliberalismo" "ocidental", deixo três exemplos entre as inúmeras mensagens que recebi desde anteontem:
- uma amiga, "samorista", enviou-me a ligação para a transmissão directa no FB da homenagem que Mondlane estava a fazer aos assassinados, no local do crime. Liguei. E os presentes estavam a cantar "O Povo Unido Jamais Será Vencido". Comovi-me, regressado aos meus tempos de meninice, quando a canção grassava em Portugal...
- enviam-me um texto de autor que desconheço (Hélder Tsambe), apelando à resistência pacífica contra a manipulação eleitoral. E invocando Karl Marx para sedimentar as críticas ao actual poder moçambicano;
- um outro texto, do próprio Elvino Dias, agora assassinado, critica o poder actual. Invocando a revolução cubana, e explicitamente Fidel Castro, que considera seu político de eleição.
Não quero com estes exemplos reduzir a heterogeneidade ideológica e social da oposição ao estado do Estado moçambicano, a um movimento revolucionário marxista. Não o é! Mas estes exemplos servem para demonstrar aos distraídos de fora que não há qualquer razão ideológica, para além da tal distracção, para não repudiar o poder antidesenvolvimentista e criminoso. Do Frelimo.
No fundo, trata-se apenas de exigirmos ao nosso aliado Moçambique a verdadeira instalação do valor "Uma pessoa, um voto". Com todos os defeitos que a democracia tem. O pior dos regimes, como é consabido, à excepção de todos os outros.