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Nenhures

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18
Jun22

A situação presidencial

jpt

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(Fotografia de António Cotrim/Lusa; Festas de Santo António, Lisboa, 2022)

Não será descabido dizer que o registo de acção política de Marcelo Rebelo de Sousa é histriónico. Dele não se pode esperar qualquer trégua, nela intentando uma gravitas que tenha como objectivo densificar a sua intervenção, que valorize seus discursos e silêncios, atitudes e intervenções - e que não é, bem pelo contrário, sinónimo de uma postura hierática. Mas sim de ponderação.

O seu trajecto é, apenas, de um egocentrismo radical, um projecto exclusivamente pessoal de teor populista (patente no afastamento aos partidos, na encenação da "familiaridade" com o "povo"). Nisso mimetiza o registo muito digno do seu pai - um doloroso anacronismo, pois exercido numa época histórica radicalmente diferente e por um político de diferente conteúdo. Não surpreende nisso (escrevi sobre esse evidente mimetismo em Dezembro de 2016, para quem tiver curiosidade). E a isso se associa uma adesão total à superficialidade comunicativa, que provém dos seus tempos de "enfant terrible" na imprensa "de referência" lisboeta. Mas que tomou aspectos radicais na vertigem da exposição televisiva, pela qual pavimentou o seu rumo até Belém - e, de novo para quem tenha curiosidade, recordo um postal meu de Junho de 2008, época em que não imaginava até onde Rebelo de Sousa se alcandoraria. E nesse texto de 2008 dava eu conta da estupefacção da minha filha, então com apenas 6 anos, com a ridícula irrelevância de Rebelo de Sousa!

Agora, nestas festas populares de Lisboa, o Presidente da República possibilitou esta fotografia. Que logo se tornou "viral" (como se dizia antes da Covid-19), levantando inúmeras dúvidas sobre a sua veracidade, tamanho o despropósito patente. Mas a fotografia é real. Estou certo que muitos saudarão o momento, invocando a sua genuinidade, a simpatia ali extrovertida - características essas que são exactamente as opostas à personalidade de Rebelo de Sousa, como confirmarão em surdina todos os que o conhecem... E mais ainda porque a cena da fotografia é até polissémica (nas festas populares, uma senhora grávida do "povo", negra, porventura imigrante ou descendente de imigrantes, tendo o seu próximo rebento ungido pelo beijo presidencial...).

Mas, francamente, isto é demasiado. Passará porque Rebelo de Sousa tem uma "belíssima imprensa". Só isso justificará como passou incólume a ter sido o verdadeiro responsável pelo longuíssimo período em que o país esteve sob governo de gestão, em pleno pós-Covid-19, crise energética, alterações financeiras e eclosão da guerra na Europa. Algo que foi uma verdadeira catástrofe política no seu duplo mandato presidencial. E, mais do que tudo, demonstrativo da tal falta de ponderação política, bem mais grave do que aquela que já demonstra no seu frenesim quotidiano.

Mas a situação presidencial não se avaliará apenas pelo sopesar do efeito dos seus actos e das suas inacções. Pois há atitudes, momentos, breves que sejam, que vão sendo preocupantes. Há três meses houve uma votação na ONU sobre a invasão russa. Moçambique, tal como vários países africanos, absteve-se. Aqui disse ser isso normal, são as opções soberanas de posicionamento bilateral e multilateral - e, ainda para mais, o país estava no processo de candidatura ao Conselho de Segurança da ONU. Ainda assim, foi algo estranho que logo de imediato o nosso PR tivesse visitado aquele país. Mas também é compreensível, pois a diplomacia faz-se muito mais deste gestos do que de tonitruâncias espúrias. Rebelo de Sousa foi a Moçambique para inaugurar um hotel construído por um grupo português (Visabeira), razão talvez insuficiente mas porventura instrumental. Ora o que me sensibilizou nas reportagens foi o discurso que proferiu nessa cerimónia, demorando-se sobre aquele local apropriado para "conversas românticas com passarinhos"... Pareceu-me estranho, mas talvez tivesse sido apenas fruto de cansaço ou um mero improviso algo desconseguido. Dois meses depois foi a Timor, tendo cometido o clamoroso erro político e securitário de anunciar a visita do Primeiro-Ministro à Ucrânia. Mas, ainda mais significante para o seu momento actual, foi a excitadíssima atitude diante de Xanana Gusmão. Seguido de um discurso numa escola local, apelando a gritos e cânticos, um momento até pungente de incomunicação, e de incompreensão do contexto. Agora, em Lisboa, este beijo - quase pastoral -, até patético.

Honestamente, a sensação é que Rebelo de Sousa não está bem. Porventura macerado por efeito de insucessos políticos, ou por outras razões desconhecidas, a sua coreografia está descalibrada. E em assim sendo este tipo de atitudes continuarão, e aumentará o seu descabimento. Começa pois a ser óbvio que urge a intervenção da sua "entourage". Mas qual?, é a pergunta. Que núcleo político, real, está em torno do Presidente da República Portuguesa? Que o possa ajudar neste momento que começa a parecer crítico.

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