22
Out24
As ofertas
jpt
Como é viver velho, só (e pobre)?, é o que (não) me perguntam os amigos... E sacio-lhes a curiosidade, explicitando o processo nesta "vinheta etnográfica" (expressão ademane, querida aos antropólogos mais académicos).
Viver assim é seguir amparado pela solidariedade benfazeja da "comunidade", esta sempre harmoniosa. E venho sendo cumulado com oferendas, mimosos actos a quererem desalquebrar-me, aliviando-me o calvário até à Mitra. Tantas são elas que cada vez mais venho ouvindo repetidos resmungos de circunvizinhos, queixas de "o Zezé está a sempre a receber prendas, a mim ninguém me dá nada...", coisa da inveja dos abonados, esses gente sempre ávida.
Nunca me nego a aceitar, e faço-o com júbilo, pois tendo lido o velho Marcel Mauss sei da obrigação moral em entrar no constante ciclo de dádivas e contra-dádivas (oferecer/receber/tornar a dar/ doar aos deuses). E assim não só acolho como sempre retribuo as ofertas recebidas. Em verve.
Hoje é dia desses, como o comprova a mesa do meu matabicho. Um delicioso feijão com óleo de palma - trazido por casal amigo, "o próximo será com feijão manteiga, como deve ser", anunciou a sua bela obreira, dotada de ascendentes saberes e sabores angolanos. Com travo suficiente para desnecessitar do recém-chegado achar de manga, sempre glorioso, transportado de Inhambane por querida (e também bela) amiga, e que veio à mesa estrear-se. Repasto acompanhado pelos livros recebidos ontem, o recente "Nas Terras do Lago Niassa", a excelente (e bem escrita, caramba) tese do camarada Elisio Jossias. E os 4 velhos volumes de Georges Dumézil, o primeiro da trilogia "Mythe et Épopée" que não tinha - "mãe, não precisas de comprar os livros, eu fotocopio-os" disse-lhe eu na Bucholz, com os outros dois tomos (então caríssimos) na mão, e a minha mãe a responder-me com aquele seu ar determinado quando o queria ter "os livros compram-se"... E o "Idées Romaines", o célebre "L'Idéologie Tripartie des Indo-Européens", e o de bolso (PUF) "Les Dieux des Indo-Europeens".
E se estou algo comovido com o tão consistente livro do meu mais-novo, estou mesmo deliciado com estas prendas das amigas antropólogas (às antropólogas não as posso dizer "belas" senão acusam-me de "gender issues"). Quem lerá hoje Dumézil? Mas na minha era de estudante universitário foi o que mais me agradou - a par de Leach, claro, mas com este tinha também um apreço másculo, nada "póscolonial", pela sua coragem física e atrevimento intelectual.
Dumézil foi-me outra coisa - e se na época não conhecia as críticas "ideológicas" que lhe foram feitas agora estou-me borrifando nelas. Pois era-me encantador, inebriante: "Zé Flávio", disse-me depois, algo atrapalhada, a professora, que então me leccionava duas disciplinas, "importas-te de que te baixe um valor na nota desta e te suba na outra?". "Claro, é-me indiferente" - nessa época eu julgava que ser blasé era boa coisa - "mas porquê?". "É que não gosto de dar 20s", confessou a jovem... O que sempre sorrio nessa memória.
Enfim, com tudo isto, o matabicho do velhote foi soberbo. E porque estando só me posso atrever a estes desvios, comiscando o feijão com óleo de palma, debruado com o achar de manga, folheando os velhos Dumézil, decidi pecar e fui bebericar um tinto. Brindando à saúde dos ofertadores. E aos antepassados, divinos ou não, que nos protegeram. E protegem.