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Nenhures

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20
Jan22

Astérix e o Grifo

jpt

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Nós, os apaixonados de Astérix, somos muito ingratos com Uderzo, pois muito desta paixão nos vem do seu grafismo, e ele era um desenhador excepcional a quem acabamos por pouco louvar exactamente devido aos seus argumentos (cerca de uma dezena de álbuns e uma série de subprodutos). Isto porque Goscinny era um verdadeiro génio, no Astérix e em tantas outras obras. E a sua morte, com apenas 51 anos e o tom trágico de muito se ter devido a incúria médica, foi mesmo uma tragédia literária, deixando-nos verdadeiramente órfãos.

Quanto a esta continuidade, ao Astérix pós-Uderzo, sob texto de Jean-Yves Ferri e desenho de Didier Conrad? Eu torço o nariz a algumas das sequelas vigentes na banda desenhada, de obras que são muito pessoais - o Spirit era (de) Eisner, ainda que a este não esgotasse nem de perto nem de longe, e Corto foi o alter ego do Pratt - e sobre elas se poderá aplicar o célebre dito de "Madame Bovary sou eu" que Flaubert não terá dito nem sequer pensado, mas que fica sempre bem invocar, até porque Hergé isso reclamou do Tintin...

Mas em relação a várias outras séries nem tanto o reclamo. Até porque estas continuidades post-mortem dos respectivos criadores é uma longa tradição da banda desenhada, o que os puristas quase sempre fazem por esquecer. E pelos efeitos benéficos que realmente têm. Pois se a BD europeia muito terá mudado nas últimas décadas - e, logo à partida no que respeita ao público receptor, tornado quarentão e cinquentão -, ela está vibrante e diversificada, sendo economicamente catapultada pelas vendas das sequelas das personagens históricas. Como bem exemplificam as enormes tiragens dos Astérix das últimas décadas, muito superiores às dos magníficos álbuns iniciais, como bem mostra a monstruosa quantia de 5 milhões de exemplares logo publicados deste último "Astérix e o Grifo". Por isso aceito muitas destas sequelas, mais ou menos literais consoante os casos - e se me desagrada o último Corto Maltese, pois graficamente é outra coisa, outro mundo, por gostável que possa ser não é "Corto", ao mesmo tempo também sinto como monumental a entrada de Schuitten no Blake & Mortimore.

E assim esta sequela do Astérix não vai mal. Até porque sucede aos argumentos do Uderzo, penosos, com os quais estes já cinco álbuns sob este duo de autores ficam a ganhar na comparação - julgo que o "Astérix Entre os Pictos" é mesmo um bom livro, tal como o "Transitálica" é mau, perdido numa mera colecção de gags. E o desenho é muito bem conseguido, num fidelíssimo mimetismo ao de Uderzo, algo que nesta série seria obrigatório - ainda que me pareça faltar-lhe um "je ne sais quoi", e neste último livro noto-o até imperceptivelmente, nalgum desajuste das amazonas omnipresentes e até em alguns momentos menos conseguidos (a segunda vinheta da página 37 é desengonçada, coisa inaudita no velho Uderzo), apesar de um ambiente bem conseguido, um "eastern" como os autores afirmam ter sido o seu objectivo.

O argumento será já sabido por todos. Ao saber da sinopse deste "Astérix e o Grifo" logo franzi o cenho, é certo que ao 39º álbum será difícil conseguir alguma originalidade na série mas sempre me irritou a deriva para a utilização de criaturas fantásticas que Uderzo adoptou, que julgo empobrecedora das tramas - e nisso é necessário lembrar que a poção mágica não é um recurso "fantástico", como o "Astérix nos Jogos Olímpicos" bem explicitou. Mas este álbum não tem essa deriva pois o grifo, esse item do bestiário que nos foi recorrentemente apresentado como meio leão e meio águia (o que fará os lisboetas particularmente receptivos ao livro), surge apenas como um fito, um horizonte. De facto a história é a de uma expedição científica (tal e qual as oitocentistas, também apropriadora), nisso constrangida por uma conflitual liderança militar sempre pronta a contrariar as intenções da ciência, ali a cargo do geógrafo romano Terra Incógnita [Terinconus] - que surge com os traços fisionómicos de Michel Houellebecq, numa das habituais piscadelas de olho em que Goscinny era fértil (há outras neste livro), um destaque que poderá ter algum sentido político em França, dado a polémica identitária que a obra de Houellebecq convoca no país. E tudo decorre no imaginário país dos ou, melhor dizendo, das Sármatas, num regresso ao mito das amazonas, esse avatar que a matrilinearidade convoca há milénios e, assim, um apropriado sorriso face ao actual ambiente cultural, onde o mítico matriarcado serve de alimento a alguns nichos políticos radicais embrenhados nas questões ditas de "género". 

Enfim, tudo isto do Astérix é-me um velho e enorme Amor. E neste novo encontro não saí desiludido. A paixão dos bons velhos tempos feneceu, e jamais a reencontrarei em novos encontros. Mas recordei-a com este álbum. E, noto, no final Assurancetourix continuou amordaçado, na aldeia irredutível não há cedências à modernidade, aquela harmonia pastoral mantém-se, sinalizada na platónica recusa da poesia e da (desafinada) inovação musical que ali continua um irredentismo. Ou seja, pelo menos entre eles, entre nós "gauleses", há ordem no mundo.

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