Catar 1 - o Cenoura
Morto o Steve Jobs, filantropo o Bill Gates, sempre desconhecidos os conglomerados de tipos do petróleo e afins, e ainda mais os das armas, quase esquecido o decano Murdoch, para tycoon conspirativo ficámos apenas com o Musk e o Zuckerberg, e nisso, resmungos e "indignações" à parte até vamos bem, porque estes até são algo "pop", "cool" ou qualquer coisa assim, e a gente frequenta-lhes os estaminés... Nisso vamos esquecendo que a tentacular FIFA é bem mais do que a Marvel, Netflix ou outras, nisto da indústria do entretenimento mundial. Pois não tem concorrência, é mesmo, literalmente, a dona da bola global. Ou seja, para tycoon corporativo está aí, para lavar e durar. E influenciar.
Há uma década a dita FIFA vendeu o mundial aos árabes do Catar - estes muito interessados nas coisas do futebol não só para fazerem rodar o dinheiro que lhes jorra debaixo dos pés mas, acima de tudo, para dele se servirem como garante internacional que o vizinho império saudita não lhes roube a preciosa bola de óleo. Em última análise cá em casa todos gostamos disso, ufanos que vamos com os jogadores e dirigentes portugueses no Paris catari - que muito preferimos ao mero boeur -, e também agradecidos com os Sarabia e Draxler que os simpáticos xeiques mandam emprestados para nos animar as hostes, e ainda mais agora que vêm comprar o clube da preferência de Sua Excelência o Presidente da República ("eles violam os direitos humanos mas vamos esquecer isso, vamo-nos concentrar no Sporting de Braga", dirá daqui a um mês o mais alto magistrado da Nação).
Enfim, dizia eu, há uma década esta FIFA vendeu o Mundial-22 ao Catar. O suíço Blatter, o antigo dono da bola, vem agora - com o seu sempiterno trejeito de mariola simpático - dizer que a culpa é do Platini (o para sempre camarada de Marc Batta). Aliás, vai avançando que terá sido mesmo mais coisa do Eliseu, onde Sarkozy presidente empurrou o assunto - parece que tudo tem a ver com vender aviões militares, os novos caças franceses agora que os campeões Mirage penduram as chuteiras, coisa para a qual os simpáticos clientes cataris pediram uma "atençãozinha", um tal de "mundial". Fico mais descansado - já aqui escrevi da minha profunda admiração pela aviação militar francesa.
A gente da bola resmungou naquela época, achando um disparate, um local despropositado e aventando a (óbvia) tramóia. Mas, e para quem não saiba, não só o dinheiro reina como na FIFA não se contestam as hierarquias, que logo o apito torce o rabo... E assim, se na altura os "agentes desportivos" murmuraram e até gesticularam isso foi-se desvanecendo. Ficaram, ao longo dos anos, os relatos e relatórios dos de fora da bola, ong's em particular, mero pessoal sem bilhete para o estádio, anunciando ao mundo o que se ia passando no Catar - um "dumping" social, se se quiser ser suave nos termos. Mas agora - imagine-se, já com as equipas em estágio e o esférico pronto a rolar no relvado dos estádios climatizados - há quem sublinhe o protesto diante do escandaloso despautério.
Face a isto reagem os sempre palavrosos cornos mansos, nos seus falsetes de eunuco, clamando a hipocrisia dos vis desmancha-prazeres, dizendo-os hipócritas por só nesta hora tardia assomarem. Alguns destes são daquelas claques sempre avessas a qualquer contestação - a não ser que seja sobre qualquer campeonato que lhes interesse, o da defesa da aparição de Fátima (que afinal é só "visão", disse há pouco tempo a federação da coisa), da posição de missionário, da castidade do infante D. Henrique, do direito deveras divino dos legítimos descendentes de El-Rei D. Miguel ou outra coisa semelhante. Mas a maioria dos incomodados é da moldura humana do futebol, gente que passou a última década a discutir a "verdade desportiva", o advento do VAR, o estabelecimento do VAR, as particularidades do VAR. E, depois, as linhas do VAR... São até mais estes que clamam a hipocrisia de, com a festa à porta, se contestar as tropelias cataris..., desde os tratos de polé aos desgraçados que lá foram construir pirâmides aos regulares financiamentos a gente tão pouco simpática e nada "desportiva", mais dada a explosões que não as dos golos. A estes, se lhes fosse possível presumir alguma racionalidade, daria vontade de perguntar sobre quando se deverá contestar este Mundial? Agora, na sua abertura, na sua realização? Ou a posteriori, lá para 2030, quando outros países, talvez mais simpáticos, organizarem outro festival da bola?
Mas a maior desfaçatez ainda é a do herdeiro do velho Blatter, o italiano Gianni Infantino. Diante desta vaga de críticas clama o seu Je Suis Charlie (oops...). Pois lembra, dorido, que como é cenoura foi discriminado em criança, lá na terrível Suíça onde cresceu - e clama-o de forma tão pungente que até o imagino qual albino em alguma África. E que como tal, conhecendo perfeitamente a dor e a angústia da perseguição, se sente "catari, árabe, africano, gay, deficiente" e mais que venha. E ainda avança, o presidente da FIFA tornado arauto deste "wokismo" tão em voga no esquerdalhismo internacional (e nacional): contestar a violenta sobreexploração dos migrantes pelo capital ditatorial árabe é uma hipocrisia europeia, dado o tanto que nós, europeus, fizemos de mal nos últimos 3000 (três mil!) anos a todos os outros, os d'além-Urais, transatlânticos e trans-mediterrânicos, entenda-se. Um verdadeiro historiador, pois bem sabemos o que no antanho já a ONG Homero reportava, o ror de malevolências prenhes de "colonialidade" feitas aos "racializados" - pobre Príamo, pobre Polifemo, etc.
Em suma, somos maus, desde sempre. E este mundial, depreende-se, será uma pequena purga, quiçá uma indulgência, para tanta maldade histórica que cometemos, no fundo o pérfido fruto desta nossa "natureza" como explicava o suicidário escorpião, de facto, assumamo-lo definitivamente, o verdadeiro totem da afinal tão feiosa Europa.
Sacaninha do cenoura, que grande lata a do atrevido! Bem que merece um calduço, no intervalo das aulas...