D'além-Tejo chegam-me ecos do frenesim comercial acontecido ontem, a tão propagandeada sexta-feira de saldos, uma recente iniciativa a que a rotina lusófona atribui um inescrutável nome em língua estrangeira. Constato que os consumidores acorreram em massa às hipotéticas pechinchas, um saudável sintoma de que a crise já lá vai indo, porventura potenciado pelo verdadeiro placebo que foi a entusiasmante vitória da equipa de todos nós, acontecida na véspera. Mas o fenómeno decerto que implicou o reverso da medalha, a redução da atenção à rica oferta televisiva do dia: o anfitrião Catar enfrentando os poderosos "leões" do Senegal, campeões de África; os étnicos galeses face aos martirizados iranianos do rabugento Prof. Queiroz; os sempre-malvados paísesbaixenses contra os cardeais equatorianos; e, finalmente, o tão póscolonial Inglaterra-EUA.
Mas quero crer que esta redução das audiências ao mundial-22, qual implícito "boicote", não se prendeu apenas com o furor consumista e muito dependerá da crescente consciência cívica, na defesa dos "direitos humanos", principalmente os laborais, tão violentados estes foram na preparação catariana desta competição. Algo que vem grassando na opinião pública, e agora decerto que por influência da recente e enérgica intervenção do ministro da Cultura Adão e Silva, apartando-se veementemente de outros dignitários nacionais que acorrem ao Catar, abrilhantando-se com a selecção, clamando a sua ausência nesse cortejo e reclamando ser o seu lugar no estádio da Luz, algo que o "povo benfiquista" - ainda que feliz com a prestação do seu ídolo João Félix - recebeu com júbilo, ainda que este não seja tão compartilhado pela "nação portista" e pelo "universo Sporting".
Mas esta consciencialização não advém apenas de algum poder político, provém mesmo de uma corrente presente na sociedade civil. Como já o o demonstrara a sageza académica da direcção da faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (presumo que seja esse o verdadeiro nome daquela que leva o "petit nom" algo arrivista de Nova School of Business and Economics [SBE]), ao suspender a instalação de um ecrã gigante para que nela se assistisse aos jogos por razões de oposição política ao regime catariano - ainda que eu presuma que alguns dos jovens alunos, dos não tão jovens funcionários e, quiçá, até mesmo alguns lentes irredentistas, se estejam a acotovelar diante das pequenas televisões disponíveis e, mesmo mais, face aos computadores sintonizados nas emissões piratas. Mas isso, o real, lamentavelmente independe das autoridades académicas...
Dito isto, na minha "neutralidade axiológica", espero que os jogos de hoje encontrem os sofás e as mesas de cafés bem compostas, na cuidadosa observação dos nossos potenciais adversários, trabalho colectivo necessário aos desígnios pátrios. Entretanto, no intervalo do Arábia Saudita-Polónia - após sistematizar as minhas necessárias notas, com particular enfoque nas sempre letais movimentações do ariete Lewandowski - espreitei no telefone a minha conta de Facebook. E nela encontro um breve postal de Filinto Pereira de Melo (que julgo ser um antigo bloguista - mas confesso que tantos anos foram passados desde a era blogal que já não tenho a certeza). No qual o seu autor transpira... clarividência: "Indignados finalmente com o trabalho escravo no Catar, os portugueses decidem boicotar os jogos do Mundial nesta Black Friday e optam por ir às compras na Shein, Zara, Primark e Apple. Top!"...
Sorrio. E nisso lembro-me de uma actuação do tão célebre Ricky Gervais, constantemente replicada nas "redes sociais" - é certo que a Gervais prefiro o velho Don Rickles, versão original deste tão dúbio tom cómico, ele verdadeiramente desbragado. Mas Gervais serve para os tempos actuais. E para esta questão - e até porque é fim-de-semana - aqui deixo (para ser visto durante os intervalos entre os jogos) o filme dessa sua actuação numa dessas galas de premiação cinematográfica, em 2020. Aos que se possam interessar peço que avancem até aos 7 minutos e 10 segundos e acompanhem até aos 8 minutos: é uma boa resposta a estas "tomadas de posição". Está em inglês não legendado. Mas isso não é, decerto, problema para os compatriotas da instituição estatal Nova School of Business and Economics...