Coitado do Álvaro de Campos
Fui ver o "Não Sou Nada- The Nothingness Club", o filme do Edgar Pêra sobre Fernando Pessoa. Como nele a confraria heteronímica canta, em verdadeira desgarrada, "Coitado do Álvaro de Campos! / (Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações! / Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia! / Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos / ...)", fui reler este "Álvaro de Campos, Vida e Obras do Engenheiro", uma construção da pessoana Teresa Rita Lopes (Estampa, 2ª edição, 1992).
Se regressar aos livros é (quase) sempre interessante ainda mais o é na poesia, tão notórias são as diferenças no que neles nos apelam em cada leitura - noto-o aqui, neste muito lido livro, no emaranhado de notas, sublinhados e dobras que o livro tem. Alguns ainda vigoram na minha atenção, a outros troco-os. Pois este é Álvaro de Campos é dos meus preferidos, sempre gostei do tipo que grita "Só quero a liberdade! ... deixem-me sair para ir ter comigo"....
De repente num dos poemas lembrei-me de muito do espírito desta época. E é até um pouco do "contra mim falo". Mas um tipo a ler Pessoa tem que ser um bocado paradoxal...
"SEM IMPACIÊNCIA, / Sem curiosidade, / Sem atenção, / Vejo o crochet que com ambas as mãos combinadas / Fazes.
Vejo-o do alto de um monte inexistente, / Malha após malha formando pano
Qual é a razão que te dá entretenimento / Às mãos e à alma essa coisa rala / Por onde se pode meter um fósforo apagado? / Mas também / Qual é a razão que assiste a eu te criticar?
Nenhuma / Eu também tenho um crochet. / Data desde quando comecei a pensar... / Malhas sobre malhas formando um todo sem todo... / Um pano que não sei se é para um vestido ou p'ra nada... / Uma alma que não sei se é p'ra sentir ou viver... / Olho-te com tanta atenção / Que já nem dou por ti... / Crochet, almas, filosofia... / Todas as religiões do mundo.../ Tudo quanto nos entretem ao serão de sermos.../ Dois marfins, uma volta, o silêncio..."
Enfim, se tiverdes interesse ide ver o Não Sou Nada – The Nothingness Club, do Edgar Pêra. Justifica-se.