Eça no panteão?
(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)
Eça de Queirós é a referência na prosa portuguesa. Isto nem é eco de proclamações da elite literária ou da literata. É o sentimento da população, por difuso que seja, por gente que o lê e relê apaixonadamente ou apenas o sofreu no final do ensino secundário. E, também, por aqueles tantos que a esse final não acederam, e que nunca o terão lido. E por mais respeitáveis e apaixonáveis que sejam outras figuras - passadas ou presentes - das letras portuguesas, consoante os gostos e a formação de cada um (os ícones Camões e Pessoa, que serão menos lidos do que amados, Camilo para os irredutíveis, o Nobel ideológico Saramago e o não-Nobel menos ideológico Lobo Antunes, para os mais "presentistas", Rodrigues dos Santos, para os mais populares, Fernão Mendes Pinto para um qualquer antropólogo que sonhe recriar-se como arisco, ou um pequeno punhado de outros). Ou seja, "Eça" encima o Panteão Nacional. Essa entidade metafísica, criação perene e algo estanque ainda que porosa, crida e querida pelos cidadãos crentes. Nem deveria haver mais discussão sobre o assunto.
Outra coisa é este processo político de transportar "Eça" para o panteão nacional, edifício sito no centro da capital, ao qual acorrem turistas nacionais e internacionais - principalmente para prestarem homenagem aos féretros da Diva Amália Rodrigues e do Rei Eusébio da Silva Ferreira, sendo que há algumas décadas me constou ainda haver movimentações das ditas "viúvas de Sidónio", mas isso não posso afiançar. A instituição (museológica, se se quiser) "panteão nacional" é interessante em si mesma - nunca li algo sobre a sua génese, apenas a presumo refracção de similar projecto brotado após a Revolução Francesa, uma deriva da laicidade republicana nacionalista, até deísta, querendo elevar a o ideário dos "cidadãos". E talvez por esses fundamentos terá sido esse nosso "panteão" terreno exponenciado desde a I República. É por isso interessante em si mesmo, deverá ser preservado - e nisso animado - como peça em si mesmo, demonstração de uma mundividência nacionalista tipica de uma (longa) era.
Mas continuar a enviar para lá ossadas (ou símbolos) de cidadãos "que da lei da morte se libertaram"? Não sendo grave é uma desnecessidade. Até apoucando o espaço. De facto, aquilo já é um "bric-a-brac" de vultos, escolhidos por critérios não só de época (contextuais) mas até nisso muito discutíveis. Por exemplo, porquê o ilustre Teófilo Braga mas não o ilustre Leite de Vasconcelos? Ou, sendo ainda mais comparativo, em termos de escolhas no tempo longo, porquê o geniquento Sidónio Pais, verdadeiro antecessor da "Nova Ordem" internacional, e não o geniquento Joaquim Agostinho, verdadeiro ícone do "a salto" que vigorou no século XX português?
Ou seja, em última análise, para quê levar as ossadas de Eça de Queiroz para aquele (já) verdadeiro "albergue espanhol" de restos mortais e placas evocatórias? É uma paupérrima homenagem. E tão desnecessária - até porque, de facto, Eça, ainda que muito menos antissistema ou revolucionário do que tantos o pintam, se fartou de apoucar políticos e politiqueiros, esses que se acotovelam tanto no "panteão", os já defuntos, como nas homenagens que lá se vão fazendo, os próximos defuntos. Enfim, cerimonial pechisbeque que esta fotografia do fotógrafo e meu amigo Miguel Valle de Figueiredo muito melhor explica do que tudo aquilo que eu possa perorar.
Mas há uma última nota: Eça de Queiroz morreu há 123 anos. As instituições democráticas decidiram homenageá-lo desta pobre forma. E o processo está parado devido à oposição de alguns dos seus trinetos, que terão as suas respeitáveis razões. Mas ocorre-me isto, apesar de não ser eu um estatista. Que direitos particulares, peculiares, especiais, sobre o legado simbólicos de alguém, têm os seus longínquos descendentes 123 anos após a sua morte? Seja para apoiarem ou desapoiarem uma acção?