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Dez20
José Rodrigues dos Santos e a "solução final"
jpt
(excerto da entrevista à RTP3 de José Rodrigues dos Santos, publicitando o seu livro O Mágico de Auschwitz)
Não que eu sacralize/absolutize o Shoah. Horrores feitos pelos maoísmo chinês e cambodjano (nunca vituperados pelos nossos actuais sociais-democratas, já agora) ou pelos ruandeses (fruto - como dizem os nossos interseccionais "não vindos do marxismo" - dos brancos alemães e belgas, que por lá passaram décadas antes mas que eram, como já disse, "brancos" e ainda por cima "ocidentais", e por isso culpados do que o futuro traz) tiveram intensidades e perversões similares. Mas estes ditos do locutor José Rodrigues dos Santos mostram duas coisas: que o homem ou é parvo ou se faz de parvo; que o serviço público de televisão, que dá publicidade extensa (que ficcionista tem ao seu dispor 23 minutos de divulgação de um novo livro?) a esta abjecção intelectual, tem que acabar.
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Tendo colocado este postal no meu mural de FB uma boa amiga diz-me que estou (como tantos outros) a deturpar as palavras do escritor. Respondi em modo coloquial, que não emendarei. E transcrevo essa minha resposta, sem grandes retoques formais:
Sei - e já o botei ene vezes ao longo dos blogo-anos - que as citações são apropriações, assim podendo ser truncagens manipulatórias. E sei que JRS é alvo a abater no rossio doutoral lisboeta - não tanto por vender muito mas acima de tudo por não ser "camarada e amigo". Por isso contextualizo esta minha reacção (apropriação! Talvez deturpação ...):
1. Eu não venho com o preconceito blasé contra o escritor JRS. Nunca li as suas ficções - leio muito pouca literatura portuguesa actual. (Porque dedicado a Moçambiqeu deveria ter lido "O Anjo Branco", está nos meus preguiçosos planos, mas ainda não o fiz). E abomino a estuporada posição "não li e não gosto" - muito típica dos doutores de Lisboa, recorrente nos direitolas quando falam de Saramago.
2. O que vejo nesta entrevista, e em particular neste trecho, é um tom coloquial, melhor dizendo, um acto coloquial. Não é uma derrapagem, não é alguém a expressar-me com menos ponderação, expressando-me menos acertadamente, a não dizer com exactidão o que quer dizer, devido a uma qualquer incompreensão ou mau manuseio do meio que está a utilizar. Pois este homem há 30 anos que apresenta o telejornal, dominará como poucos as estratégias comunicativas na tv, de aproximação com os ouvintes, de condensação de mensagens. Isto não é uma crítica velada, é uma mera constatação do seu estatuto profissional. Ou seja, não só está totalmente à vontade como sabe imensamente bem como as suas palavras são acolhidas pela sua imensa mole leitora. Que é constituída, na sua maioria, por leitores populares, não exactamente por clones de Carlos Vaz Marques (jornalista que divulgou este excerto) nas suas qualidades e defeitos, nem mesmo por aqueles literatos sub-medianos que dizem serem grandes escritores alguns jornalistas como Lucas Coelho e Araújo Pereira, e que desprezam os leitores de JRS. Sem rebuço, sabe que na sua maioria quem o aprende - e aqui estou a ser assumidamente arrogante, cagão mesmo - é gente menos empenhada nas interpretações textuais.
3. Antes de eu partilhar este trecho li o que JRS respondeu a esta polémica: que a culpa é das "redes sociais". Ou seja, nós-cloaca. E nisso segue pensadores como Sousa Tavares ou Pacheco Pereira, vai bem acompanhado ... Reclama que para se avaliar o que ele pensa e quer dizer sobre o Shoah se deverão ler dois dos seus livros - e aqui tem meia-razão. Pois, de facto, em termos absolutos sim. Mas também se pode avaliar o que alguém diz sobre o que escreve. Principalmente quando se trata de alguém que é peixe graúdo no mar em que fala.
Há vários textos publicados nesta verdadeira polémica e ele respondeu-lhes. Não vou condensá-los aqui. Mas a minha opinião sobre JRS (escritor) impõe-se como quadro de interpretação. Não pelo que escreve (que não li) mas pelo muito que diz sobre o que escreve. Acho que disse há tempos "sou um divulgador" mas de facto é um simplificador, um simplismo constante sobre temas "polémicos". Foi-o quando entendeu postular (para gáudio de tanta direitalha lusa) que o fascismo vinha do comunismo (ou do socialismo). O que é uma pantomina - caramba, eu não sou um "ilustre lente" mas li alguma coisa na vida, nem me vou por a discutir tamanha simplificação de processos intelectuais, político-sociais, que merecem e exigem muito mais do que esta fast-food. Exactamente tal como agora usa Arendt e a sua "banalização do mal" - que, aliás, tanta ofensa causou quando ela publicou o livro sobre Eichmann, por incompreensão de leitura. A mesma incompreensão feita de leituras lineares que são o objectivo mas também o método de JRS.
Por exemplo, se não estou em erro - li aquilo há imenso tempo - Arendt escreveu que muitos judeus (responsáveis) cooperaram com os nazis e foi lido e vituperada como se estivesse a dizer que "colaboraram" com os nazis, e a semântica é tudo nestes casos. É um pouco o mesmo, em sentido inverso, - salvaguardadas as diferenças intelectuais entre o monstro intelectual que Arendt foi e este nosso locutor - como quando JRS anuncia, oralmente, que escreve sobre como os judeus se "adaptaram". Ora que muitos, aqueles a quem foi possível tentá-lo, "estrategizaram" para sobreviver nos campos é muito verdadeiro (basta regressar ás leituras de juventude, Levi ou Wiesel, ou ao magnífico "Maus" de Spiegelman). Mas é isso "adaptação"?
4. Sei que há uma espécie de censura moral para quem ofenda uma forma específica de falar do Shoah. Que parece ser uma menorização daquele horror quando se belisca a especificidade, o "único" que aquilo foi como expressão do mal. Isso é muito produto do seu eco cultural, literatura, cinema e historiografia dedicada. E foi isso o que, em modo "lite", resmunguei no postalito, acima. Claro que aquela monstruosidade foi específica (um cume no antisemitismo euro-cristão de séculos. E que tanto sobrevive em muito da arabofilia actual do pós-marxismo. Temos, aliás, a candidata Gomes como referência disso).
Trata-se da necessidade, qual mandamento moral, de olharmos Shoah como único, exemplo-mor, e o povo judeu como "Escolhido" pois mártir. Algo que se torna uma censora da forma como daquilo se fala (até Arendt veio a sofrer disso, repito-me). E implica silêncios - sobre o genocídio cigano, dele contemporâneo. Ou, ainda mais silencioso, o facto de 3 décadas antes os alemães pré-nazis terem feito um "holocausto" na Namíbia, em modalidade pré-industrial. Ou o imediatamente posterior massacre chinês no Tibete sobre o qual ninguém perguntará ao candidato Ferreira (nem a punhados de sociais-democratas matisianos). Mas, caramba, reduzir essa especificidade, esse Demo-Único, ao nazismo e ao holocausto judeu, afrontar a "maneira correcta" sobre como ele falar, não é nestes termos mariolas do JRS - "li a transcrição de um documento que augurava ser mais humano matar por gás do que deixar morrer à fome" e isso é algo estruturante da "solução final" industrializada. Isto é demais, é um abastardamento do intelecto. Não sou contra a literatura "lite" (eu vejo séries de tv, e como todos que as vêm não posso negar o apreço pelo registo "lite"). Mas contra este abastardamento sou.