Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Nenhures

Nenhures

01
Ago23

Leituras e Literatura

jpt

capas.jpg

Desde há pouco que acompanho no Facebook o fervilhante grupo "Mostra o que estás a ler..." (43 mil membros, e em crescendo), e tem sido interessante. Porque vem ao contrário da ideia feita, e tão propalada, de que "já ninguém lê". Porque se vê uma heterogeneidade de gostos - na leitura de ficção, que outras áreas raramente são aludidas. E porque há imensas referências a autores portugueses, muitos dos quais desconheço. Vários destes são desvalorizados como literatura "lite", por gente que decerto tem consumos "lite" nas artes plásticas e, em especial, na música. Mas que não percebe a contradição tida nas poses literárias altaneiras, e até acintosas, que decide assumir. 

Outra matéria interessante naquele grupo é a frequência de afirmações ou remoques normativos sobre o que é "literatura", o "dever ser" do leitor, discussões que eu já não assistia há muito tempo. A este propósito lembro-me de uma sessão em Maputo sobre leituras e literatura, há cerca de uma década. O público era vasto, pejado de estudantes e jovens literatos. No debate final um dos jovens perguntou ao trio de palestrantes "o que se deve ler?". Estes, sábios, evitaram emitir um cânone e elaboraram sobre os rumos das apetências e maturidades individuais. Do fundo da sala pedi para intervir. E disse que isto é como a alimentação, um tipo deve comer de tudo, e insistir um pouco para se habituar a alguns alimentos que tenha estranhado. E deve variar o cardápio, não ficar agarrado a uma dieta estreita. Isto tudo sem manias de grandeza - e exemplifiquei esta abrangência virtuosa com o facto de eu adorar as singelas omeletes (simples, mistas de tomate e cebola, com queijo e/ou fiambre, de camarão) do célebre restaurante Piripiri. Ou seja, podia comer um prato excêntrico, rico, uma matapada moçambicana ou um rebuscado pitéu lusitano. Mas depois, mais dia menos dia, lá ia eu à omelete (e imperial...). Um dos palestrantes, ainda muito recente em Moçambique, um excepcional professor de Português e que acabara de publicar o seu primeiro romance, gostou do que ouviu. E fomos os dois jantar ao Piripiri. Omelete, claro...

Nada disto implica que não possamos "catalogar" e mesmo "desqualificar" o que comemos. Afixar os nossos gostos, anunciar uma bela receita, propagandear um bom restaurante. Ou avisar de um péssimo serviço ou jurar que "não como pezinhos de porco". Tal como com os livros. Mas é muito difícil, e espúrio, "definir" o que é bom. Por mais que os profissionais o queiram fazer e os amadores atrevidos também... Tem mesmo a ver com os rumos de cada um.

Ontem fui surpreendido por uma encomenda postal, remetida por uma querida amiga que há décadas vive no estrangeiro. Há meses faláramos ao telefone, também sobre bons "livros de viagens" - eu estava a reler o magnífico "Desmedida", o Brasil de Ruy Duarte de Carvalho e tinha sido ofertado com o esplêndido "Magdalena: Historias de Colombia" de Wade Davis. A esse propósito a minha amiga recordou alguns livros do "género" que tinha apreciado. E enviou-me estes "From the Holy Ground: a Journey in the Shadow of Byzantium", do britânico William Dalrymple, e "The Sign of the Cross: Travels in Catholic Europe", do irlandês Colm Tóibín. Acompanhados de um postal, fazendo votos de que "os livros não tenham envelhecido", pois lera-os já há bastante tempo (são de 1997 e 1995, respectivamente). Eu desconhecia os autores - fui pesquisar, constatando que são renomados (e muito premiados). 

É óbvio que nesta véspera das omnipresentes Jornadas Mundiais da Juventude em Lisboa, e ainda que ateu, não deixei de sorrir diante do "The Sign of the Cross" de Tóibín, anunciado como relato de 4 anos de viagens pelo catolicismo europeu... De imediato o encetei, para ver se me agradava. E na inicial página 2 apanho isto: "I was an altar boy there and I accompanied the priest with a patten as he gave out communion to the faithful. And thus I got to see everyone's tongue at close range. Some stuck it out with great force as though it was a leather strap; others were timid about sticking it out as though it was as intimate part of their body which they preferred to keep hiden. Some had broad flat tongues, the shape of a piece of sole or plaice; others had narrow, thick tongues. And each tongue had a different texture - small wrinkles and indentations filled the surface - and each person had a different colour tongue, pink, for example (some were pure pink), with eddies of brown and grey. Some people had trouble keeping their tongue stuck out, despite their best intentions, and would draw it back in, as though someone was going to commit some ofence against it, and the priest would stand and wait until it ventured out again. And I would stand there too, watching." (2-3).

E logo fiquei sem dúvidas. Este é mesmo o material literário de que eu gosto, a refeição que me saciará - mesmo que me venha a desiludir com o livro. Nem sei ter argumentos sobre isso: é o seu olhar e o seu ritmo, feitos odor. E o tacto, moldando, acariciando ou ferindo. E isto, o gosto, tem a ver com cada um de nós, o rumo próprio feito sensibilidade. No qual se devem ouvir os doutores, os da liberdade, que não querem impor "gostos". E abominar os "doutores" normativos.

1 Comentário

Comentar postal

Bloguista

Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Contador

Em destaque no SAPO Blogs
pub