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Nenhures

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04
Mai17

Portugal e as Escravaturas

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Rebelo de Sousa foi ao Senegal e meteu-se a falar sobre Portugal e a escravatura. Falou mal, em modo anti-intelectual (e tendo ele  criado para si a figura do “professor Marcelo” obrigou-se a dar outro lustro às suas afirmações). E falou mal em termos políticos, abrindo um tema nas relações políticas com os países africanos que lhe virá, decerto, a ser cobrado.

As reacções logo vieram. Na esquerda radical, sempre prisioneira do catolicismo, do culto do cilício purificador, sequela da filiação iconófila (e talvez também sensual) a São Sebastião, afirmou-se a necessidade da expiação nacional. Nada de novo, pois, como se sabe, se a maldade do capitalismo (e da sua “acumulação primitiva”) é total, a deste rincão e suas gentes é supra-total. À direita surgiu a habitual flatulência adversa às reflexões das “ciências sociais” (assim mesmo, com as aspas) e à análise histórica que fuja à eulogia da gesta pátria. Exemplo até antológico desse “boçalismo a céu aberto” é este texto de Maria João Marques no Observador (um bom jornal, que foge ao paradigma “voz do dono” dos ex-ministros de José Sócrates, que agora recobre a generalidade da imprensa dita de referência no país).

A temática não é assim tão virgem e há uma boa tradição historiográfica nacional sobre o assunto – eu não sou historiador, vou lendo as coisas que encontro (mais do que tudo li Valentim Alexandre, José Capela e João Pedro Marques) e tiro a, minha, mediana.  Do que fui lendo retirei: o tráfico de escravos a partir de África para Portugal (e Europa) e, depois, para a América, foi condição fundamental da presença portuguesa em África desde meados de XV. A resistência portuguesa durante XIX em terminar o tráfico a partir das suas feitorias africanas para as ilhas do Índico e para a América, e em abolir a escravatura nas suas possessões, criaram uma imagem internacional (em particular na Grã-Bretanha) de que Portugal foi o iniciador (“descobridor”) do tráfico e da escravatura moderna, e seu furioso adepto. Durante XX a prática generalizada e intensiva do trabalho forçado nas colónias (uma corveia utilizada de modo discricionário e como tal bem mais violenta do que a tradicional portuguesa) foi associada à continuidade de uma mentalidade escravista, reforçando a imagem internacional de Portugal como cultor da escravatura. A reacção de inúmeros intelectuais e políticos nacionais, desde o início de XIX pelo menos, foi a de negar essa primazia, essa tendência e, até, de afirmar a benevolência da especificidade escravista portuguesa – não só afirmando um povo de “bons amos” como afirmando que a escravidão dos africanos os salvava de uma pior existência nas selvas africanas (pagãs, polvilhadas por antropófagos, subordinadas à radical violência das chefias sanguinárias e escravistas locais).

Nessa reacção nacionalista vingou, desde meados de XIX, o argumento do país como pioneiro da abolição da escravatura, dado ter o Marquês de Pombal abolido o tráfico para Portugal. Foi isso que, vergonhosamente, veio agora Rebelo de Sousa botar. Isto é, pura e simplesmente, uma aldrabice, um “com a verdade me enganas …” que é inadmissível num Presidente da República em democracia. Pode optar por não falar do assunto, seguindo a “política real”, uma ética de responsabilidade, e aceita-se. Mas se fala então tem que o fazer num compromisso com a análise histórica, o conhecimento.

De facto Pombal proibiu o tráfico para Portugal porque escasseava mão-de-obra escrava no Brasil: “Fazendo nos meus domínios Ultramarinos uma sensível falta para a cultura das Terras e das Minas, só vêm a este continente [os escravos importados] ocupar os lugares dos moços de servir, que ficando sem cómodo, se entregam à ociosidade …” (cito o texto legal publicado em “O Escravismo Colonial em Moçambique” de José Capela, 1993, p. 194). E é também por essa necessidade de reforçar o tráfico para o Brasil, tanto para dinamizar as produções na colónia como para reforçar os rendimentos das alfândegas nas feitorias africanas, bem como para dinamizar o comércio escravista em Moçambique, onde os escravos eram muito mais baratos do que na África ocidental, que Pombal promove a reforma administrativa que desliga Moçambique de Goa, algo que terá impacto no estabelecimento da futura colónia (até na delimitação do seu território e, depois, da sua identidade) e do futuro país. Ou seja, a escravatura não é um assunto menor da história (até política) e tem sido sistematicamente silenciada no discurso público e na pedagogia histórica. Tanto que um presidente da república pode dizer, em pleno 2017, um dislate destes. Para os tontos da direita nacionalista a gente pode (e deve) tratar do património cultural (do tangível, de preferência), pode estudar e escrever sobre os Bartolomeus Perestrelo, Dias e Gusmão mas deve-se abster de coisas menos “nobres”. E deve deixar de entender como as velhas práticas moldaram as categorizações que de nós fazemos, dos outros fazemos e que os outros de nós vão fazendo.

Noutro eixo, gauchiste, sempre furibundo, apela-se ao auto-de-fé (fogueira sem torniquete prévio e com lenha molhada de antemão, de preferência, para que tudo demore …) da história nacional. Pois o âmago (do) luso foi, e é, o escravismo. Deste iniciador, na sua versão moderna. Deste único continuador, na versão contemporânea (no XX, para facilitar). E se um tipo torce o nariz a estas tendências (e a esta pobre visão não só da história como do que é o social) é-lhe dito que é um “lusotropicalista” – coisa que, neste contexto intelectual e ideológico, é entendido como um insulto, tipo “imbecil ignorante”. Algo que eu muito bem compreendo, porque é exactamente o que eu associo aos proponentes da “lusofonia”.

Para resolver estas tendências não há como ler. Há um pequeno livro de síntese, “Portugal e a Escravatura dos Africanos“, de João Pedro Marques, publicado em 2004 pela Imprensa de Ciências Sociais. São 140 páginas preciosas, e absolutamente legíveis. O ideal para qualquer leigo que tenha um interesse pela história do país – ainda para mais porque esta temática está sempre ausente do discurso público e dos programas de ensino da história. O problema é que a distribuição das publicações da ICS é muito fraca, e é possível que o acesso ao livro seja relativamente difícil. Mas, até aproveitando este reavivar da temática devido às declarações do PR, poderia o livro ser redifundido (ou reimpresso). Marques começa por apartar, conceptualmente, a escravatura das outras formas de trabalho forçado (dito chibalo em Moçambique ou corveia no Portugal antigo), sem que com isso recuse (bem pelo contrário) continuidades históricas nas formas de conceptualizar a apreensão da mão-de-obra africana. E depois explicita como a estrutura de plantação assente em mão-de-obra escrava, que foi a base do tráfico escravista, é uma herança do contexto mediterrânico pré-expansão (“Descobrimentos”). E refere a importância prévia do tráfico terrestre transahariano e índico, no contexto islâmico. E descreve a estrutura do sistema escravista (produção de escravos, comércio de escravos, consumo de escravos) entre XV e XIX, bem como os passos, titubeantes, da sua abolição em XIX. Explicitando como o tráfico se abasteceu em África em osmose com as estruturas políticas existentes, e dele alimentadas. Bem como as suas sequelas na codificação e prática do trabalho forçado em África por parte das potências coloniais. Nada, no seu discurso, quer culpabilizar ou desculpabilizar. Engrandecer (mitificar) ou denunciar (mitificar). Faz a sua análise. E demonstra-a. 

(Postal no "O Flávio")

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