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Nenhures

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09
Set23

Matar o Boer

jpt

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Acabo de ver que João Pedro Simões Marques publicou um artigo no "Observador", "A Culpa do Homem Branco". Onde aborda o silêncio da intelectualidade portuguesa sobre a actual polémica sul-africana (e  mesmo mundial, até pela intervenção do magnata Elon Musk) em torno da insistência do político Julius Malema em cantar em público a célebre canção anti-apartheid Dubul’ Ibhunu (Matar o Boer). Na qual a frase "aw dubul’ibhunu" [atira no boer] é ritmicamente repetida, e o mote “dubula dubula" [atira, atira] é omnipresente. Julgo que a canção - um hino anti-apartheid - é de 1993, escrita como homenagem a Chris Hani, líder do PC sul-africano e dirigente do ANC, assassinado nesse ano.
 
Apesar da sua letra ser linear, explícita, como qualquer canção a Dubul’ Ibhunu é polissémica, com o sentido dependendo do contexto do entoar. E há literatura sobre isso (só no meu computador tinha três artigos de universitários sul-africanos sobre o assunto - e deixo aqui duas reportagens a dar algum contexto). E apesar dos tais múltiplos sentidos ela fora proibida em 2011 pelos tribunais sul-africanos, dado o seu carácter pouco irenista. Mas agora o peculiar político Julius Malema de novo a recuperou, tendo o tribunal revogado a proibição anterior.
 
A realidade (social, político-económica) da África do Sul é muito complexa e não tenho conhecimento actualizado para perorar sobre tudo aquilo. Mas parece-me óbvio - ainda para mais sabendo que tipo de político é Malema - que a insistente utilização da canção será tudo menos "progressista". Ou, pelo menos, é problemática dado que constitui e reproduz mundividências. E deixemo-nos de rodeios - três décadas depois do final do "apartheid" político-jurídico as desigualdades sociais e económicas do país não podem fazer esquecer o rumo do poder ANC e reduzir a situação a uma continuidade do velho regime. E muito menos podem convocar o apagamento das características ideológicas e práticas do radical populista Julius Malema, o "cantador"-mor de agora...
 
E assim João Pedro Simões Marques terá razão no seu artigo - só li o resumo, pois não sou assinante do "Observador". De facto, numa intelectualidade "activista" portuguesa, sempre pronta a "indignar-se" com o estado do mundo global - seja com uma saída mais ríspida de Melloni, uma hungarice de Orban, umas bastonadas defronte das jacqueries de magrebodescendentes, uma queixa em Kiev sobre qualquer bombardeamento sofrido, mas também com "fait-divers" como uma beijoca espanhola, um aparte de Morrisey, ou até mesmo (imagine-se!) um cruising de estrela de Hollywood, para além das boutades de Von Trier e coisas dessas, já para não falar de nacos de textos (e canções) de antanho -, a tal intelectualidade portuguesa, dizia eu, cala-se diante desta austral "mata o branco".
 
Não que se pudesse esperar que o que estes clérigos viessem a dizer sobre isto fosse de aproveitar - normalmente não se aproveita o que dizem, e ainda por cima nada perceberão da complexa África do Sul. Mas é interessante a atitude silenciosa - pois demonstra o pobre olhar que têm sobre o mundo. E a vacuidade do seu constante perorar "activístico".
 
Por isto tudo recupero este meu postal, de há cinco anos - para quem tiver paciência está aqui. O qual é uma memória de episódio de há quase 30 anos, quando trabalhei na África do Sul. Nele não falo da "Dubul’ Ibhunu" (Kill the Boer) mas sim da sua parente de então, entoada nos comícios do velho e radical Pan-African Congress, a "One Settler, One Bullet". Não só sobre a sua pertinência para aquele país naquela era - e nisso implicitamente aludindo à sua pertinência para agora, nas tais três décadas passadas.
 
Mas também como isso me serviu, já na altura, em Maio de 1994, quando regressei a casa, para perceber a tontice total dos "intelectuais" "activistas" cá do burgo. Estão agora como eram, nada aprenderam. Não porque sejam de facto incapazes de aprender com o mundo. Mas porque se absorvessem algo isso desmontaria o capital que lhes dá dividendos. O qual é, exclusivamente, a atitude...

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