Nada há de novo debaixo do Sol
Antes de partir para Moçambique vivi quase dois anos em Campo de Ourique, na Tenente Ferreira Durão (a rua do célebre e tão saudoso "Stop do Bairro", então nossa cantina), foi um período muito bonito, o início da vida conjugal. Fiquei com uma costela local, mais atento ao que por lá se vai passando. Nas últimas eleições autárquicas reparei que a vitória foi... "resvés Campo de Ourique": a lista vencedora, do PS, ganhou por apenas 25 votos. Tendo havido alguma resmunguice local, dada a radical excentricidade dos resultados numa urna..., a decidirem o resultado final.
Sorri ao ler o acontecido. Não só por ter a minha experiência de observador eleitoral internacional - actividade onde se vêem (e aprendem) coisas "engraçadas" sobre a matéria - mas porque recordei a minha curtíssima experiência de estudante de Direito, lá na dita "Clássica". Recentíssimo caloiro, na segunda semana, no anfiteatro apinhado de ouvintes ansiosos das maçadoras perorações (um dos Doutos professores debitava, linha a linha, palavra a palavra, a gigantesca sebenta, em dois volumes, de sua autoria que nós éramos obrigados a comprar, e a preço caro...., isto contado nem se acredita, mas era assim mesmo, e ainda se davam e dão mesuras àquilo), no anfiteatro apinhado dizia eu, entraram dois tipos da associação de estudantes, um tal de José Apolinário orador e um coadjuvante de tez indiana, de olhar e pose nada lenta, lesto e ladino mesmo, notei-o. Pediram uma votação de apoio às suas actividades, alguém da nossa gente respondeu que não os conhecíamos, de caloiros que ainda éramos, eles insistiram, fez-se a votação. E perderam... "resvés Campo de Ourique", face à quase total abstenção da caloirada. No dia seguinte, ao entrar naquela átrio "Estado Novo" lá estava um enorme lençol afixando os votos de todas as turmas daquele sofrido (e sofrível) quinquénio. Os da nossa tinham sido invertidos, a favor dos jovens "activistas" (como então não se dizia).
Uns dias depois houve uma RGA - ocupação então muito em voga -, na qual os grupos lá instituídos se digladiavam por questões que, vim a perceber depois, se prendiam fundamentalmente com a impressão que poderiam causar nas colegas, então já numericamente maioritárias mas ainda minoria sociológica. Irritei-me com a prosápia dos sacaninhas empossados (e emproados). E fui falar - sem ser por motivos profissionais (ou similares) foi a única vez na vida que falei em público ... Corado, transpirado decerto, atrapalhado. Mas com a arrogância olivalense face a uns "tipos vindos sabe-se lá de onde" - na semana anterior, no primeiro dia de aulas, eu e o meu querido Tiago, vizinhos de rua onde crescêramos e amigos para o sempre até hoje, havíamos aportado à Alameda Universitária idos no 31, chegámos à porta da faculdade e deparámo-nos com uns atrevidos ali de porteiros, que nos queriam praxar como o fizeram às centenas de neófitos. Fitámo-los mudos nisso dizendo-lhes "vão-se foder" e entreolhámo-nos, também mudos, dizendo-nos "olha-me estes caralhinhos a quererem praxar dois gajos dos Olivais...!". Os patetas não disseram mais nada, e fizeram-nos entrar pela porta lateral, sem mais... Enfim, era esta a atitude diante daquela casa... Avante, também por isto tudo lá fui falar, resmungando que os mariolas haviam falsificado os resultados da nossa votação. Começaram a contestar-me e ripostei-lhes que perguntassem aos meus colegas ali presentes... E toda aquela enxúndia JS se calou. Logo desci do estrado, comigo vieram ter umas moçoilas da tuna, ou lá o que era, de preto vestidas e em cima de sapatos de salto alto, apetecíveis - como o são quase todas quando se tem 18 anos -, louvando-me. Mas logo regressaram para junto das auréolas dos quartanistas ou finalistas que acolitavam. Mas, no fundo, deixando-me o reconfortante sinal do "cresce e aparece...". Um mês depois fui crescer para outro lado, diga-se...
Enfim, quase 40 anos depois, ao ler sobre a urna complicada de Campo de Ourique, lembrei-me desta historieta. Ri-me, num "filho de peixe sabe nadar". Há poucas semanas, na televisão do café "Tosta" dos Olivais, notei que o peixe júnior ali aparecia como "comentador político", e deixei cair para o lado um "olha este a fazer-se cabecilha de cardume". Há dias li que se demitia de presidente da Junta de Campo de Ourique (a tal ganha "resvés", devido à tal urna...), queixando-se de maus tratos recebidos pelo presidente da Câmara - que exerce o cargo assente numa minoria, convém que os crentes nas suas aleivosias não o esqueçam -, tamanhos que impediam este peixe júnior de exercer o cargo com a competência que clama ter. Dias depois, afinal, o jovem peixe vai para director-geral de um grupo de comunicação. Muito mais do que mero "comentador"... Não terá sido Carlos Moedas a obrigá-lo a tal mudança...
Tenho quase, quase, 60 anos. O meu corpo é um templo. Mas desde há décadas que tenho sido um ateu iconoclasta. Ou, pior, um Átila de mim-mesmo. E estou alquebrado pela tétrica razia que ultimamente tem acontecido entre os meus amigos e conhecidos. Nisso sigo avisado, não terei muito tempo pela frente. Ou seja, já não sofrerei este ainda jovem "filho de peixe". Mas - sublinhem e guardem as minhas palavras - ele virá à tona. Pois "sabe nadar". E como nada há de novo debaixo do Sol, ensina a Bíblia, assombrará as vossas reformas, as vossas estadas nos "lares de repouso", os vossos ocasos profissionais. E os destinos dos vossos filhos. E consegui-lo-á, nem que seja... "resvés", por uma unha ou urna que seja.