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Nenhures

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Ontem, domingo, em Maputo a sede do jornal "Canal de Moçambique" foi atacada e as suas instalações totalmente queimadas. As descrições que leio anunciam que foram utilizadas bombas artesanais - presumo que os sempre chamados "cocktails molotov". E que depois foi o edifício regado com combustível, de seguida ateado. A reportagem que acabo de ver na estação moçambicana STV mostra os restos carbonizados da sede e dois recipientes desse combustível, calcinados. O ataque ocorreu no início da noite de domingo, ninguém estava a trabalhar, não há vítimas a lamentar. 

Cumpre-me dizer que às 11.21 de segunda-feira googlei e ainda não vi nenhum "lamento" das instâncias da corporação jornalística portuguesa. Nem do Estado português. Nem mesmo dos sempre loquazes "colunistas" que grassam no "achismo" luso. Sempre tão lestos noutras situações a expressarem "indignação"  ou "solidariedade" ou "preocupação" com acontecimentos alhures. Noto-o, saliento-o, e entristece-me.

O "Canal de Moçambique" é um jornal de oposição, que não exactamente "da" oposição. Critica, por vezes de forma  muito abrasiva, o Estado, o governo, a justiça. A democracia precisa disso, e o seu desenvolvimento precisa disso. E tem, ou deve der, instâncias jurídicas e instrumentos de controlo deontológico que enfrentem hipotéticas vias infundamentadas na imprensa. 

Eu tenho um particular carinho pelo "Canal de Moçambique". Sou amigo do Fernando Veloso, seu primeiro director. Ainda que pense de forma diferente da dele, tanto sobre Moçambique como sobre o resto do mundo. Os homens podem ser amigos, não apenas "conhecidos", nas suas diferenças. Talvez até mais em Moçambique, onde as agruras do processo nacional e as dificuldades da vida sedimentam companheirismos pessoais, do que neste Portugal, pejado de pequeno-burguesotes muito ciosos dos seus "clubes" e redes de auto-protecção. Sabedores dessa amizade muitas vezes outros se me dirigiam criticando Veloso e seus jornais - conheci-o como editor do Mediafax, cargo no qual sucedera a Carlos Cardoso que veio a ser assassinado, lembro-me dele depois numa breve estada no Zambeze - como se que para lhe mandar recados por meu intermédio. Nunca lho terei dito,pois  também não aceitaria que se intrometesse ele na minha docência ou nos meus textos profissionais. 

Depois, um dia, partilhávamos nós uma mesa no Piripiri e disse-me que ia abrir um jornal. Estava ainda a pensar no nome e tinha algumas hipóteses. E ali se fez um  pequeno "brainstorming", uma avaliação dessas suas hipóteses. Bem-disposto, entre 2M's, propus-lhe o nome "Canal de Moçambique", óbvia ambivalência. Veio a aceitar essa minha proposta e eu fiquei ufano, muito mesmo. Anos depois, na mesma esplanada, e dado que eu continuava com a mania de blogar - então no ma-schamba -, perguntou-me a razão de não escrever eu na imprensa. "Porque não me convidam" ripostei. "Ok, então convido-te eu!", contra-atacou, e passei a ter uma página semanal no jornal. À qual chamei "Ao Balcão da Cantina", numa alusão à cantina presente no magnífico "Nós Matámos o Cão Tinhoso" de Luís Bernardo Honwana, forma de eu me situar, de mostrar onde estava no registo convivencial de escrita. Nunca ali falei de política, mas do queijo do Chimoio, encontros universitários, a música de Stewart, pintura, piripiris, arqueologia, etc, num verdadeiro sortido. Um dia as hostilidades armadas entre a Renamo e o Estado reiniciaram-se. Eu não gostei da abordagem do jornal, que me pareceu conjugar uma compreensão sociológica do fenómeno a uma aceitação da inevitabilidade do conflito. E sem resmungar parei de escrever - voltei apenas uma vez, para bramir, devastado com o assassinato do meu amigo, o escultor Alexandria, linchado pela população, esta crente num fantasmático grupo de violadores que assolaria Maputo.

Lembro esta minha ligação pessoal ao jornal para sublinhar a necessidade da imprensa livre, mesmo que discordemos do seu conteúdo. E de que a discordância não impede a colaboração nem impede os ganhos mútuos (prazerosos ou outros). E não implica estes ataques. Soezes, na pérfida violência. No país de quando em vez há jornalistas ou activistas que sofrem atentados, que desaparecem (há jornalistas desaparecidos), que são assassinados. É certo que a longo prazo estaremos todos mortos, mas a médio prazo (a única escala humana relevante) nada se ganha com estas violências. A conflitualidade interna ao bloco de poder e a existente entre diferentes grandes grupos de interesses originam estas explosões de violência, censória, na vertigem rapace. 

O desenvolvimento é um Processo de Democratização em Curso, para glosar a nossa velha expressão. Mesmo que muitas vezes subordinado ao lema "Um passo em frente, dois passos atrás", como Lenine consagrava. E não é uma "apropriação primitiva de capital" feita de forma bárbara. Queimar o "Canal de Moçambique" é, goste-se ou não do jornal, queimar o futuro do país, queimar o desenvolvimento. É a expressão, desesperada, do ganância dos interesseiros.

(E deveria ser também uma lição para os intelectuais nacionais que continuam a seguir adeptos das ditaduras imperialistas. Mas isso é outra conversa, mais demorada).

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